Na área da defesa e segurança, têm-se destacado milhares de elementos da nossa elite social, contribuindo de forma decisiva para a formação da nação moderna angolana que, como dizia Agostinho Neto, se constrói a partir dos valores positivos das diversas nações pré-coloniais que são ainda uma realidade incontornável, embora imperceptível para muitos.
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O processo de paz e reconciliação nacional formalizado em 2002 permite que esta mais do que bandeira da unidade nacional ultrapasse as barreiras das divisões partidárias e de outra natureza negativas e perigosas para o devir de um Estado angolano moderno e progressivo.
É necessário que os aspectos positivos prevaleçam, perante os eventuais reflexos negativos de um conjunto de práticas políticas incorrectas de que vimos a falar, em que uma certa participação que sempre se espera contraditória no impulso às mudanças que se impõem não deverá bulir com a necessidade de neutralidade que se deve esperar sempre dessas forças, nas condições de relativa estabilidade que ainda vivemos. Este aspecto é especialmente relevante em relação aos agentes das forças da ordem pública e da segurança de Estado que tendo a elevada missão de assegurar a estabilidade social e defesa da integridade física do Estado e de seus dignitários devem recusar, no entanto, a sua utilização como agentes da eternização de um regime autoritário, personalizado e antidemocrático que nunca trará boas perspectivas para o futuro de quem quer que seja, como se pode ler nos eventos que nos são tão próximos, no tempo e no espaço.
Altas patentes das nossas Forças Armadas estão hoje conotadas com a questão do seu farto enriquecimento, aparentemente, a custa do património público. Porém, se tivermos em conta as circunstâncias em que este enriquecimento se processa ou se processou, cujos aspectos fundamentais temos estado a referir de forma dispersa neste texto e que se prendem essencialmente com o esfarelamento dos mecanismos de controlo numa transição sócio-política e económica em condições de guerra, esta seria e poderá ser uma situação ultrapassável.
Grave seria e será a persistência, generalização e eternização desta forma de aquisição de riqueza muito para lá da cessação das hostilidades bélicas que vai agora completar uma década. A História, a Ciência Política e o Direito apresentam-nos propostas bem pertinentes para se poder ultrapassar, a contendo de todos, essa situação que ensombra o nosso convívio nacional.
Porém, antes de encontrarmos mecanismos que podem ser mais demorados, para equacionarmos questões de fundo, é importante que se ponha fim imediato à conotação das nossas forças de Defesa e Segurança com a tortura e até morte de populares em zonas de implementação de projectos económicos pessoais ou mesmo do Estado.
Devem sobretudo terminar, de imediato, as imagens degradantes de sevícias de nossos polícias fardados ou à paisana, contra menos de centenas de jovens que se manifestam pacificamente contra as condições de uma vida de poucas perspectivas, algo que até vai acontecendo hoje, um pouco por toda a parte, ante a necessidade de revisão do modelo institucional mundial, como o temos referido várias vezes.
Estas últimas referências a elementos da nossa elite nacional, nas nossas forças de Defesa e Segurança provenientes hoje de todos os quadrantes da luta de libertação nacional, que um dia se colocaram em barricadas diferentes mas que hoje se juntaram, elementos que tanto prezamos e com quem lidamos amigavelmente no nosso dia-a-dia, são essenciais para a construção dessa terceira alternativa que aqui propomos, onde todos sairemos favorecidos e ninguém vai perder.
O papel da autoridade moral: igrejas, intelectuais e mais velhos
A Angola moderna é um país que em alguma altura já teve as suas grandes referências morais, fora do estrito âmbito político ou dentro dele.
Provavelmente condicionados pela nossa opção política, desde a juventude, destacamos a aura que saía de Agostinho Neto, que apesar de originário de uma determinada faixa étnico-regional, conseguiu espalhá-la pela vastidão do território nacional, mesmo antes de ele assumir funções formais à frente do MPLA.
Outros dos nossos líderes históricos, independentemente das opções, filosofias e métodos políticos adoptados, onde tem de se destacar necessariamente os grandes Holden Roberto e Jonas Savimbi, também representaram para muitos angolanos referências politico-morais de grande dimensão, na sua persistência de combate pela libertação dos angolanos de vários pontos do território contra as diversas formas do jugo colonial português. Esta é uma compreensão que ainda custa ganhar unanimidade, porque ao longo da nossa História, e condicionados pelas suas vicissitudes, estas três grandes figuras partiram sem antes poderem colocar as suas capacidades de liderança ao serviço de uma Angola verdadeiramente reconciliada e virada para o futuro.
No plano meramente político, depois da morte de Jonas Savimbi em combate, e da assinatura do acordo de paz de 2002 que aqui várias vezes referimos, José Eduardo dos Santos poderia hoje ocupar o lugar vazio deixado por aquelas três grandes figuras, dotado de um manancial de lições históricas e vivências que outros não tiveram, e tornar-se uma grande referência moral neste domínio.
Mas não. O Presidente optou, à custa de diversos artifícios, por continuar na senda dos caminhos que, provavelmente, em particular Agostinho Neto e Jonas Savimbi não puderam evitar, nas circunstâncias em que actuaram, ou seja: afastar tudo o que brilhe demasiado ao seu lado, para se contentar com as falsas vénias de chamados jovens turcos, sedentos de ascender na escala social e política, não importa com ou sem benefícios para a sociedade; ou de mais velhos conformados com qualquer coisa que se lhes ofereça, que “a vida só são dois dias”.
Enfraquecido o sistema de comando e controlo político-moral, Angola está a ser transformada nisso que vemos: uma teia de jogos de interesses em que ninguém, a partir desse comando, tem moral para questionar as atitudes imorais de ninguém.
Conta-se que um mais velho, perguntado sobre o porque é que ninguém reage contra tantas situações escandalosas no domínio da moral público-política em Angola, ele terá sentenciado o seguinte:
− Meu filho, Angola está hoje como uma loja assaltada por um pistoleiro. A loja é única do bairro e o pistoleiro meteu tudo num grande embrulho, mas de forma tão desajeitada que a medida que vai arrastando o grande saco, alguns produtos vão caindo, para os quais todos se atiram para garantir um mínimo de subsistência para os próximos dias; em vez de arriscarem a levar um tiro do gatuno ao tentarem agarrá-lo[2].
Neste campo político-moral, descomprometido com a gestão de tachos e honrarias, temos ainda vivo o “velho” Mendes de Carvalho, a quem a idade e o cansaço de tanto bradar no deserto, já não favorece grandes rasgos. E temos o respeitado Dr. Onofre dos Santos, um homem de sabedoria farta, arrancada de imensas universidades da vida. Porém, hoje por hoje, como juiz do Tribunal Constitucional, não pode subtrair-se do linguajar politicamente correcto que a formalidade do cargo lhe exige, num ambiente em que “os donos do poder” nem sequer procuram disfarçar o empenho com que se movem para sufocar a independência do poder judicial.
No vasto mundo intelectual, cultural e artístico, de onde noutras eras se levantaram vozes corajosas contra a anormalidade, hoje, quer pelo abafamento imposto pelo próprio regime[3], quer pelo comodismo, de certo modo causado pelo cansaço e pela aparente inutilidade do esforço, só ouvimos mensagens conformadas, quando não se juntam às vozes da bajulação da mais baixa e despropositada.
Justiça seja feita a Pepetela, o nosso maior romancista, que não só na metáfora literária como na directa intervenção cívico-política, tem sabido fazer jus à sua estatura de grande homem das nossas letras, conseguindo soltar-se da muralha com que se tenta cercar todas as figuras históricas do MPLA, no sentido de colá-las eternamente aos erros colectivos do passado, para que não se pronunciem sobre os males do presente.
Os nossos reis e rainhas (vulgo “sobas”, “seculos”, “muatas”, “butamuntos”, “dembos”, etc. etc.) à maioria dos quais reiteramos o papel de serventes do poder e ou activistas de partidos políticos, mal podem fazer emergir a sua voz, onde a Língua Portuguesa, que pouco dominam, é a única que chega aos céus. Mas sobretudo porque não os libertamos dos medos a que foram submetidos durante o colonialismo e durante as nossas guerras.
Restariam as respeitadas vozes de grandes líderes das nossas igrejas, sobretudo as cristãs, um credo (o Cristianismo) que se tornou património irremovível e talvez um dos maiores traços-de-união dos povos de Angola.
Em fases decisivas de Angola, membros das igrejas Católica e Protestantes fizeram da sua estatura moral a alma de Angola, nos seus diversos espaços territoriais, tanto nos levantamentos que se impunham contra o retardatário colonialismo português, como especialmente na formação de várias gerações de jovens e dos cuidados espirituais e mesmo materiais de várias camadas do povo afectadas pelas diversas desgraças que contra elas se abateram.
Só para citar algumas figuras da Igreja Católica onde fomos educados: desde a nossa tenra juventude, nos anos sessenta e setenta do século passado, que ouvimos nomes de padres e bispos corajosos. Estas individualidades distintas da sociedade de então, nos momentos mais delicados, onde era complicado erguer a sua voz, fizeram-se ouvir na sua carismática e moral autoridade, chegando alguns deles a pagar com a vida ou com cadeias prolongadas, a sua ousadia: clérigos como Cónego das Neves, Alexandre do Nascimento, César Viana, Eduardo Kambua, Joaquim Pinto de Andrade, Mata Mourisca, Valdo, Sanches e Santos Neves, entre outros que tanto nos inspiraram, nos primórdios da nossa adesão às ideias nacionalistas.
Numa fase mais recente, quando era necessário clamar pelo fim do conflito militar, conhecemos e colaboramos com figuras proeminentes das igrejas católica e protestantes. Homens de uma coragem inaudita, atacados de todos os lados da contenda, mas que não deixaram de erguer a sua voz contra a guerra fratricida que parecia nunca mais acabar. Algumas dessas figuras já as citámos, quando falamos do seu papel no passado, como os agora jubilados Cardeal D. Alexandre do Nascimento e o Arcebispo Mata Mourisca. Mas nesta fase juntaram-se nomes conhecidos como o Reverendo Tony Nzinga e o também agora jubilado Arcebispo D. Kamuenho, nosso educador, que acompanhamos pessoalmente, quando recebeu o prestigiado Prémio Sakharov, em Estrasburgo, França. Ainda ecoa a voz corajosa, clamando no deserto, de Frei João Domingos dos púlpitos de Luanda, que há tempos, pelo seu desaparecimento físico, deixou o povo dessa cidade (já que não podia ser ouvido por todo o país) mais órfão.
E hoje, “os tempos estão mudados”, como diz o poeta.
Das instituições religiosas, ágoras da Sabedoria, da Justiça e do Direito, mal se ouviu um mugido, contra a imoral violação dos princípios fundamentais da nossa Constituição Histórica; violação imposta por um Presidente que nem sequer se preocupou em se eleger primeiro, para ter alguma legitimidade. E se isso são assuntos de César e não de Deus, as igrejas (algumas das quais já proclamaram José Eduardo o Moisés dos povos de Angola) calam-se perante escândalos como Zango, Tchavola, Tchimutue, etc, etc., onde seus fiéis são submetidos a actos inauditos de indignidade e humilhação nas próprias terras e terras de seus próprios antepassados, só para referir aspectos dessa desumanidade que pessoalmente constatámos[4].
A Igreja Católica submete-se, ela própria, ao opróbrio da injustiça e da falta de razoabilidade, em relação a Rádio Ecclésia que o regime não quer que contribua para a evolução da abertura e o despertar da sociedade em toda Angola, perante o já garantido controlo despudorado de toda a comunicação social pública, em que canais da televisão são entregues, de mão beijada, aos próprios filhos do Presidente da República.
Entendemos que perante as dificuldades que todas as instituições vivem nos últimos tempos, algumas delas aparentemente criadas propositadamente no âmbito da facilitação da manipulação, as igrejas, feitas de homens de carne e osso não têm muito por onde fugir, o que é aliás bem retratado na metáfora do ladrão de loja a que acima aludimos. Mas o que é mais preocupante é que, em relação à Igreja Católica, só com hipocrisia de fariseus é que não conseguiríamos ver que a paralisação dessa respeitada instituição universal perante anormalidades tão graves em Angola, é conseguida através de uma manipulação baseada nas diferenças étnico-regionais dos seus prelados.
Não queremos “ensinar a missa ao vigário”, mas a verdade é que, a enveredar por esses caminhos, os da complacência com a iniquidade, a pretexto de que são “assuntos de César”, as respeitadas vozes do nosso clero, vão perder toda a enorme autoridade que ainda possuem, para o bem de uma Angola onde não faltará nada para ninguém, se forem instauradas as bases verdadeiras de uma sociedade justa e equilibrada, nas suas mais relevantes vertentes.
O papel da comunidade internacional
Vamos usar aqui o conceito de comunidade internacional num sentido muito amplo, onde cabem instâncias políticas, económicas e sociais governamentais e não-governamentais, Estados com relevância relacional com Angola e tantas outras entidades colectivas ou individuais no plano internacional.
Com os acontecimentos no Norte de África e noutros cantos do mundo árabo-muçulmano, estamos convencidos que acabamos de ser munidos com mais algumas lições importantes para a necessidade da comunidade internacional alterar significativamente a forma como lida com determinados líderes e países do chamado terceiro mundo, esse fornecedor simples de matérias-primas.
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