sábado, 21 de janeiro de 2012

Angola: a terceira alternativa (3). Marcolino Moco, político e professor universitário


- uma Segurança de Estado que é desviada da sua tarefa principal que é a de assegurar o Estado democrático que todos defendemos e proclamamos, para cuidar sub-repticiamente de incomodar quem apenas tenha ideias diferentes;

www.marcolinomoco.com

-uma distribuição de riqueza ostensivamente virada para condicionar a subserviência de tudo o que possa ser oposição independente, num país onde até alguma religião é mobilizada para o culto às honrarias materiais;
-um partido no poder que continua a ser apresentado pelos fazedores de opinião como a instituição dirigente do Estado e da sociedade (onde avulta a situação grave da subordinação do poder judicial) quando essa concepção já ficou formalmente superada pelas Constituições de há cerca de vinte anos para cá, depois das mudanças determinadas pela queda do “Muro de Berlim” e pelo fim do chamado socialismo real; e quando esse partido já não controla, mas é completamente subjugado pelo seu líder;
-uma situação de clara manipulação da estrutura étnico-regional do país, em que com as camadas sociais de todos os grupos étnicos sujeitas aos mais humilhantes eventos, sem excepção, se acena a determinados grupos populacionais, a ideia de sua pretensa superioridade sobre outros, para proteger os interesses da minoria que se apodera das riquezas de todos os angolanos sem distinção de raças, tribos ou regiões;
-uma protelação indeterminada da organização do poder local autárquico, onde o poder local dito desconcentrado é sujeito ao mais estrito poder discricionário de um concentrado e desorganizador poder central.
Natureza do regime em Angola
Com estes aspectos caracterizadores do actual regime angolano, tem-se colocado a questão de se saber se se trata de uma ditadura ou de regime de transição para a democracia que enfrenta algumas dificuldades naturais nesse tipo de fase.
As respostas são, naturalmente extremadas, indo desde os que afirmam a existência de uma verdadeira democracia em Angola, partindo da estrutura formal dos textos constitucionais e da maioria das leis ordinárias, no domínio da organização política do Estado, até aos que atribuem a esse estado de coisas a essência de uma autêntica ditadura apenas disfarçada com a aludida formalidade dos textos e do discurso dos detentores do poder.
Olhando para os aspectos materiais da situação, pondo de lado a preocupação de termos de referir, necessariamente, conceitos habituais num mundo actual de mudanças aceleradas, o que importa não é indagarmos se se trata de uma ditadura do tipo clássico (que hoje por hoje já não é possível reproduzir-se em Angola) ou não. O que importa, segundo acreditamos, é olhar para os efeitos práticos desta situação para o presente e, sobretudo, para o futuro do país, de que teremos de responder um dia, como geração actual.
Temos que convir que independente do nome de baptismo que se dê a esse regime, como uma questão meramente académica, o que nos deve preocupar é que se trata de um conjunto de práticas, quiçá habilmente orquestradas (aparentemente inspiradas nas endiabradas “ 48 Leis do Poder de Robert Greene e Joost Elfers”), cujas consequências em nada diferem das que resultam da acção de ditaduras típicas, cuja característica fundamental é a instilação do medo e do culto à personalidade ao declarado líder, a volta do qual se cria a ideia de ser insubstituível porque de qualidades supostamente inexcedíveis, pelo que tudo se lhe deve perdoar, inclusive as suas excentricidades contra a ordem estabelecida. Neste caso, deve presumir-se que o seu papel o exime de toda a culpa por essas excentricidades para que possa fazer prevalecer os interesses mais elevados da comunidade que de forma geral se traduzem na defesa de uma ideologia pretensamente revolucionária, religiosa ou humanista.
Talvez seja aqui que encontraremos o verdadeiro traço caracterizador do regime “eduardista” angolano, que a si mesmo se intitula de “atípico” quando não se apresenta a justificar-se por impor qualquer tipo de ideologia.
Tivemos, como exemplo o “socialismo científico” para justificar o sistema de Partido-Estado socialista em Angola. Conhecemos o “mobutismo” que dizia defender uma filosofia chamada ”autenticité” na finada “Republique du Zaire”. Temos estado a acompanhar a saga do persistente sistema revolucionário ainda baseado no “socialismo científico” em Cuba ou na República Democrática e Popular da Coreia, não obstante, neste último caso, ter sido praticamente transformado numa dinastia monárquica sui generis. Há, hoje em dia, o “Bolivarianismo” formalmente referendado de Hugo Chaves na Venezuela. Temos ainda a interessante proposta “Um Estado e Dois Sistemas” da República Popular da China, que curiosamente evoluiu para a supressão da eternização dos seus líderes, desde Deng-Xiao-Ping.
O regime angolano, com as suas iniquidades, apenas existe, sem se justificar por qualquer ideologia especial que não seja a necessidade de condescendência com toda uma enormidade de incongruências e práticas de uma gravidade inaudita, cujos resultados esperáveis não diferem de nenhum modo dos que se esperariam no fim das ditaduras puras e duras.
Há cada vez mais gente a acreditar, como nós, que estamos perante um regime autoritário, com mal disfarçada roupagem democrática, cujo objectivo é o açambarcamento despudorado das riquezas nacionais e regionais, a favor de uma minoria aferrada ao poder, com consequências imprevisíveis para um futuro que pode não estar muito distante.
Mudanças em curso e à vista
O carácter despiciendo e até dispersivo da convocação para a excogitação da natureza ditatorial ou não do regime angolano actual é tão evidente quanto, determinado pela situação dos chamados “Ventos do Norte”, os sectores mais activos desse regime, com o Chefe de Estado à cabeça, entraram num frenesim de actos e acções contraditórias, em que os habituais gestos e discursos intimidatórios cedem, aparentemente, perante gestos de magnanimidade e vice-versa, o que pode confundir ainda mais aqueles que tanto se preocupam com os aspectos formais do verbo e de gestos para conceberem e concederem nomes aos casos e às coisas.
Na persistente táctica do pau e da cenoura, entrou-se numa das fases do espreitar da cenoura pelas frestas palacianas.
Estamos inteiramente convencidos que se não houver uma acção concertada e inteligente dos agentes interessados na construção de uma sociedade verdadeiramente aberta em Angola, que é a única a poder coadunar-se harmonicamente com a edificação coerente de um Estado democrático e de direito, assente na nossa realidade, este regime dificilmente abdicará de accionar os mecanismos para fazer prevalecer o statu quo que vivenciamos.
O papel da juventude no advento de novos tempos em Angola
Como tem acontecido em todos os momentos decisivos da História de Angola, é mais uma vez a juventude a dar o pontapé de saída, na reacção contra a anormalidade.
Desde que se vem procedendo à perversão do regime democrático que encetamos como um todo nacional e que acima descrevemos de forma sintética, que sucessivas vagas de jovens são subliminarmente colocadas perante fantasmas do passado, como as guerras étnico-partidárias de 1974/75 e de mais adiante, os acontecimentos do 27 de Maio de 1977, entre outros aspectos que haviam tido lugar nos antigos cenários determinados pela desaparecida e internacional Guerra-Fria e reflexos da sua inércia. Esses intimidadores dos mais jovens, a partir do estarrecido da generalidade dos mais velhos, já entrados nas idades do conformismo e dos “gatos escaldados que até de água fria têm medo”, esqueceram-se dos ensinamentos que os tempos trazem. Bastou estalarem os acontecimentos da África do Norte e arredores, para se darem conta que afinal já há um número considerável de pessoas que, pela sua faixa etária, começam a descortinar que aqueles acontecimentos do passado já não lhes dizem muita coisa, quando relacionados com os seus actuais e palpitantes problemas.
Entre uma explosão revolucionária e a conclusão da mudança transicional
Pensamos que estamos mais uma vez perante uma encruzilhada em que ter-se-á que optar, entre manter este regime iníquo, e nos aspectos mais flagrantes, assimilável aos regimes actualmente contestados no âmbito das revoluções no Norte de África e noutros cantos do mundo árabe e muçulmano, com consequências altamente negativas para os respectivos Estados e nações, que se não irão resolver a toque de mágica; ou assumir-se uma posição realista e retomar o percurso de construção de um regime de democracia transparente e em benefício de todas as camadas sociais do país e de todas as suas regiões com toda a sua diversidade e riqueza.
Com efeito, nessas circunstâncias, a História, a Ciência Política e a Ciência Jurídica (Direito Constitucional Comparado), anotam duas formas essenciais de saída: ou revoluções, nas mais das vezes violentas e devastadoras em relação mesmo a aspectos positivos mantidos no “ancien régime”, desembocando num redemoinho de acções e reacções emotivas que chegam a ser incontroláveis e com reparação de difícil espectro; ou mudanças transicionais, por iniciativa, nas mais das vezes, partidas de sectores mais moderados do próprio regime ou de áreas mais activas da sociedade civil aceites pelos lados aparentemente extremados da conflitualidade política em eminência de explosão.
Noutras circunstâncias, situação semelhante se nos apresentou em finais dos anos 80 e princípios dos anos 90.
O regime de Partido-Estado de cariz socialista marxista-leninista estava esgotado. A guerra fratricida entre angolanos, configurada no esquema formal governo-rebeldes da UNITA, se por um lado deteriorava ainda mais as condições sociais do povo, por outro lado disfarçava as verdadeiras razões da ineficácia governativa de um sistema sem soluções, mesmo a partir das suas próprias “Mecas”, como o eram a poderosa União Soviética ou a avançada RDA. Foi dessas “Mecas” do chamado “socialismo real”que partiu o tom autocrítico de personalidades visionárias e corajosas como Gorbachov, que não se esconderam em evasivas, perante a evidência do fracasso de um sistema que se enredara sobretudo no próprio veneno da ausência de transparência na condução dos assuntos do Estado.
Perante a queda do Muro de Berlim, símbolo maior do fim da chamada Guerra-Fria, e já no epílogo das conversações entre o Governo e a UNITA que pareciam intermináveis, mas que viriam a ser facilitadas pelo advento de um novo quadro internacional, com a assinatura de Acordos de Paz de Bicesse de 1991, colocou-se, na altura, ao MPLA-Partido do Trabalho no poder a questão de se saber se deveríamos manter o Partido-Estado, expondo-nos perante a possibilidade de uma explosão revolucionária, com os estragos que lhe são inerentes, ou, ir-se pela via sensata que estava a ser seguida por boa parte de regimes africanos e não só que, perante os então chamados “ventos do leste”, convocaram todas as suas sociedades a participar nas mudanças requeridas.
Nós, no seio da direcção do então partido no poder, embora, de forma anónima para o público em geral, como era apanágio nesses tempos ainda de sistema fechado, defendemos sem tibiezas a segunda alternativa, porque a achamos realista e sobretudo porque fundamental para a consolidação da paz que haveria de ser alcançada. Foi assim que, adoptada a nossa posição, facilitada pelo ambiente que se vivia na época, foram sucessivamente elaboradas e aprovadas pela então Assembleia do Povo, as leis constitucionais de 1991 (para abrir o país à democracia pluralista) e a de 1992, que contou já com a apreciação da UNITA e de uma Conferência Multipartidária, com partidos ditos não armados, antes da sua aprovação formal.
O que fundamentalmente faz assimilar o actual regime aos regimes normalmente designados de ditatoriais ou, no mínimo de autoritários, é justamente a perversão desse caminho que havíamos iniciado há mais de vinte anos. É isso que acrescido às dificuldades conjunturais que em situação de legitimidade e transparência de um regime não passariam de questões entendíveis, embora sempre difíceis (a fome em países do terceiro mundo, os problemas da saúde, da habitação, educação, etc. etc.), nos coloca, mais uma vez, perante uma situação de escolha: persistir nas manipulações para sustentar a insustentabilidade e propiciar o aprofundamento de uma situação revolucionária ou retomar o caminho da consolidação das mudanças interrompidas por guerras de vários tipos?
É isso que, bem ou mal, sob o estímulo do que se passa noutras paragens, onde os regimes não lêem as lições da História, traz os jovens angolanos para a rua; sobretudo nas ruas da capital, onde de uma forma geral estão representadas todas as regiões do país e praticamente todas as sensibilidades, colocando a estremecer todo um sistema que de tão arrogante começava já a ultrapassar os limites da razoabilidade, até no plano internacional, como aquela peregrina ideia de exportar a “teoria dos Presidentes Constitucionais”.
É sobre isso que alertamos atempadamente, aquando do processo da aprovação da nova Constituição e do adiamento despropositado das eleições presidenciais que já haviam sido indicadas para 2009. E fomos tidos por frustrados inoportunos.
Na verdade, as consequências da fuga à razoabilidade chegaram mais cedo do que nós próprios pensávamos, fruto da velocidade dos acontecimentos, nos tempos actuais.
Saídas possíveis
Visualizamos várias saídas possíveis, todas elas tendentes a trazer o país para uma situação de razoabilidade, que no fundamental traga de volta o ambiente criado até ao início da guerra pós-eleitoral, em 1992, no que diz respeito à instituição de um Estado verdadeiramente democrático e de direito e em que as prescrições jurídico-políticas no plano institucional se ajustem minimamente às práticas dos dignitários do Estado; em que se rejeite de forma categórica e clara a subordinação de um país vasto, multiétnico e multicultural aos interesses de um grupo minoritário e à volta de um pretenso líder dito clarividente, que se socorre de um partido garantidamente maioritário, tendo ao dispor todos meios legítimos e ilegítimos de influência sobre a sociedade, para a salvaguarda de seus interesses pessoais e familiares.

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