quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

As artimanhas do Estado. A sociedade contra o Estado.


O materialismo histórico estabeleceu-se como a principal metodologia analítica do marxismo.
António Setas
Ele é mais do que uma abordagem filosófica da realidade. É, acima de tudo, uma teoria de investigação empírica, de análise da praxis (BOTTOMORE, 1993). A compreensão dos fenómenos do presente a partir do resgate da sua origem histórica no passado constituía, para Marx, o único instrumento capaz de revelar a verdadeira essência do fenómeno analisado. Sob este enfoque – que também é conhecido como histórico-crítico – a própria história é construída pela sucessão de modos de produção material, sendo que a luta de classes constitui a principal força propulsora do processo histórico. A luta de classes é, portanto, o motor da história (MARX & ENGELS, 1993). É por isso que qualquer fenómeno analisado sob a óptica do materialismo histórico deve contemplar as contradições sociais e os conflitos de fundo económico inerentes ao processo de formação deste fenómeno.
Analisar o Estado sob o ponto de vista do materialismo histórico implica, portanto, resgatar a sua origem histórica, o seu processo de formação. Dessa forma, ao se considerar o Estado como fenómeno histórica e socialmente construído está se debatendo a sua razão de ser na sociedade. Se ele passou a existir num momento determinado da história humana, e se permanece até os dias actuais como instituição maior de poder, é inegável o seu papel fundamental no processo de acumulação do capitalismo e no incremento da capacidade produtiva da economia. Decerto, parece incontestável – e mesmo evidente – a sua funcionalidade ao projecto capitalista. Contudo, é necessário tomar cuidado ao pensarmos que Marx e Engels defendem que o Estado seria somente um instrumento a serviço das classes dominantes.
Na verdade, o que sustenta a teoria marxista do Estado é a compreensão da política como uma arena de lutas e de disputa constante pelo poder, onde o objectivo principal é a conquista gradativa da hegemonia. Assim, entender o Estado como instrumento da burguesia é analisar o poder político sob um ponto de vista estanque, deixando de levar em conta a dinâmica inerente às relações sociais (COUTINHO, 1996).
É necessário reflectir. Se Marx e Engels entendessem o Estado somente como instrumento de poder a serviço da burguesia – ou melhor, se vinculassem a existência do Estado à existência da burguesia enquanto classe dominante – não teriam proposto a luta política do proletariado como estratégia contra-hegemónica para a tomada do poder político e/ou para a conquista progressiva de espaços (ampliação dos direitos políticos, criação dos direitos sociais e trabalhistas, por exemplo) no interior do Estado.
A compreensão do Estado, ou seja, do político, como uma dimensão em que se vivencia a disputa pelo poder, e não como o exercício estanque deste, é destacada por Engels (2000) em sua análise “arqueológica” sobre a origem do Estado, apresentada no livro A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Para o autor, o moderno Estado representativo é o instrumento de que se serve o capital para explorar o trabalho assalariado. Entretanto, por excepção, há períodos em que as lutas de classes se equilibram de tal modo que o Poder do Estado, como mediador aparente, adquire certa independência momentânea em face das classes. Nesta situação, achava-se a monarquia absoluta dos séculos XVII e XVIII, que controlava a balança entre a nobreza e os cidadãos; de igual maneira, o bonapartismo do primeiro império francês, e principalmente do segundo, que jogava com os proletários contra a burguesia e com esta contra aqueles (p. 194).
Quando analisamos o Estado do ponto de vista histórico, observamos que ele antecede em muito à emergência do capitalismo como sistema e da burguesia enquanto classe. O Estado não nasce com o Estado burguês; é bem anterior a ele. No entanto, o seu surgimento está vinculado à disputa pelo poder dentro da sociedade, luta essa que é protagonizada pelas classes com interesses económicos antagónicos. Conforme ressalta Engels (2000):
Para que esses antagonismos, essas classes (...) não se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um poder colocado aparentemente acima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem”. Este poder, nascido da sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado (p. 191). Desta forma, na abordagem do materialismo histórico, o Estado teria surgido da necessidade de se controlar e abrandar uma espécie embrionária de luta de classes ocorrida por motivação económica. A condição de barbárie, que para Hobbes seria a luta de todos contra todos, é vista por Engels como mais justa, ou menos opressora, do que o estágio da civilização, no qual se verifica a emergência do Estado como instituição e, portanto, tem início a fase em que se tornam legítimas a desigualdade social e a opressão sobre as classes de menor poder económico. Nas associações gentílicas da Europa3, anteriores à civilização, o poder existente na sociedade era exercido por líderes ou chefes familiares, que geralmente possuíam vínculos de sangue com os demais a eles subordinados (ENGELS, 2000).
Imagem: A Sociedade Contra o Estado – Pierre Clastres
desenvolvimentoemquestao.wordpress.com

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