sábado, 21 de janeiro de 2012

Angola: a terceira alternativa (2). Marcolino Moco, político e professor universitário


Caracterização do momento actual e os perigos que comporta para o futuro
Como se disse, depois da assinatura do Protocolo de Paz entre o governo angolano e a UNITA, a 4 de Abril de 2002, esperava-se pela imediata normalização das instituições, em Angola, para o prosseguimento da consolidação da democracia pluralista ao mesmo tempo que se fortalecessem os processos de reconciliação nacional e se iniciasse a fase da reconstrução nacional.

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O processo de reconciliação genuína passaria pelos apelos das lideranças no que diz respeito à importância do perdão entre os angolanos que, durante anos, especialmente estimulados por factores externos, ligados directamente ou por inércia ao anterior fenómeno da Guerra Fria, deveriam colocar uma pedra sobre as prolongadas desavenças no passado. Este desiderato foi conseguido, não tanto pelos apelos das lideranças políticas, poucos dadas a perder o seu tempo, com este tipo de proselitismo pacificador, mas especialmente porque o cansaço da guerra ensinou o próprio povo a olhar em frente, depois de sucessivas desgraças.
Quanto à reconstrução nacional, e no âmbito de uma pré-campanha eleitoral, foi notório um louvável esforço do governo, priorizando, correctamente, a abertura das vias de comunicação e a construção de escolas e hospitais um pouco por toda a parte.
É assim que, 6 anos depois do Protocolo de Paz, se realizaram as eleições legislativas, em Setembro de 2008, dentro de um pacote que previa as eleições presidenciais no ano seguinte (2009), garantia dada pelo Presidente da República, que por imperativos da situação (início e prolongamento inesperado da guerra civil, em 1992) se manteve nestas funções sem nunca ter sido sufragado pelo voto popular.
Surpreendentemente, logo a seguir às eleições legislativas que, a atestar a vontade de consolidação da paz e reconciliação nacional, decorreram sem incidentes de monta e deram uma esmagadora maioria ao partido no poder – o que devia ser lido como a vontade do povo em contribuir para o prosseguimento, em ambiente de estabilidade, de todo um processo com os consensos fundamentais já estabelecidos – aparece o Presidente da República a introduzir novos elementos de instabilidade institucional.
Estes elementos de instabilidade institucional podem desdobrar-se em vários tipos de actos e atitudes subsumíveis em duas espécies, sendo uma de natureza formal e outra de natureza material.
Como elemento de natureza formal mais desconcertante pelo seu carácter irresponsável e inusitado, recorrendo a métodos sofisticados de manipulação sócio-política, José Eduardo dos Santos alterou a nossa Constituição histórica. Nessa alteração acabou com os aspectos simbólicos e reais da separação dos poderes que caracterizam os regimes democráticos e formalizou, na nova Constituição, as práticas irregulares de concentração desmedida do exercício de poderes estaduais na sua mão com a consequente anemia das instituições administrativas centrais e locais. Tudo isso, como se disse, foi feito contra todos os consensos então alcançados num âmbito nacional, sendo que alguns deles estavam salvaguardados por cláusulas pétreas na Constituição então vigente.
José Eduardo coroou toda essa insensatez exigindo à Assembleia Constituinte e ao Tribunal Constitucional o prosseguimento do seu longo consulado por mais quatro anos, na altura já com 30 anos de duração, sem ter sido eleito formalmente pelo Povo de Angola.
O tempo foi clarificando qual era o objectivo da introdução daquele elemento formal: consolidar o elemento material de instabilidade que, no fundamental, se pode resumir no seguinte:
1-Ganhar tempo para reforçar a organização da sua eternização no poder, através de si próprio e ou de seus próximos.
2-A custa do erário público enriquecer uma minoria de gente a sua volta, só merecendo a honra de pertencer ao grupo restrito, quem tenha demonstrado total subserviência àqueles objectivos absolutamente discriminatórios e perigosos em relação a um país de diversas camadas sociais, na sua diversidade regional e étnico-cultural.
Quanto ao elemento formal, ele naturalmente cobra os seus custos, especialmente através de uma camada mais culta da sociedade que nunca entenderá como, num país que tinha tudo para andar estavelmente, no plano institucional, se chegou ao ponto de se impor um verdadeiro golpe constitucional por vontade de uma pessoa, seja qual tenha sido o seu papel histórico, nos últimos anos de Angola.
Mas o elemento que está na base do maior mal-estar no país está relacionado com o aspecto material, conjugado com as comparações que se fazem, naturalmente, com os regimes que estão a ser agora depostos por revoluções internas, apoiadas ou não por interferências externas.
Com efeito, e especialmente a partir de 1998, com o afastamento da direcção de figuras importantes do MPLA no seu Congresso desse ano, por algo que só pode ser apelidado de artes mágicas, a par do abandono da linha de diálogo na vertente das abordagens com a UNITA de Jonas Savimbi, o Presidente José Eduardo dos Santos foi fortificando estruturas a si afectas, com carácter absolutamente anómalo num regime democrático.
Deve sublinhar-se que essas estruturas nem sequer existiam no sistema de Partido Único, aliás, caracterizado pela existência de órgãos colegiais de direcção. E deve dizer-se também, que elas nasceram de forma inesperada e sorrateira. Por esse motivo, mesmo com alguma estupefacção, foram sendo toleradas por círculos do partido no poder que, teoricamente, não deviam hostilizar o seu próprio líder num momento de concentração nas tarefas dos processos de guerra e paz interna.
Por outro lado, a sociedade debilitada pela sua inexperiência de vivência em regime democrático e transparente e, sobretudo, traumatizada por uma guerra fratricida desnecessariamente prolongada, nada podia fazer para reagir contra esse tipo de anormalidade institucional.
Assim nasceu e cresceu a FESA (Fundação José Eduardo dos Santos) uma estrutura de natureza híbrida, de inacreditável existência, para ser afecta a um Presidente no activo, onde meios do Estado são mobilizados para a glorificação pessoal de quem exerce a sua função mais nobre. Assim nasceu, cresceu e se fortificou o chamado “Movimento Espontâneo”, afecto ao Presidente do MPLA e da República sem qualquer enquadramento plausível dentro das instituições do Estado democrático e de direito. É esse o “movimento” que tivera como sua acção mais lembrada a organização de uma manifestação secretamente preparada, contra um membro da própria direcção do MPLA, acabado de ser exonerado do cargo de Primeiro-Ministro, num acto aparentemente de normal refrescamento governativo, em período difícil de processos de guerra-paz e construção democrática.
Essas instituições anómalas, acrescidas depois de outras como a AJAPRAZ, alegadamente criada para o abjecto social de acudir retornados da Zâmbia, mas que rapidamente se transforma num elemento do presente sistema de glorificação programada de José Eduardo dos Santos, Presidente da República, passam a ser elevadas a categoria de Instituições de Utilidade Pública, com direito a utilização formal de fundos do Estado através do OGE. A par disso, e funcionando dentro deste mesmo mecanismo de natureza pessoal, embora equivocadamente atribuído a toda estrutura do MPLA, surgem fenómenos como a existência de “empresários sem empresa”, que com a complacência de todas as instituições do Estado de natureza fiscal que fecham os olhos a todos os seus actos de despesismo de origem suspeita, também o fazem a coberto do culto à personalidade de José Eduardo dos Santos.
O Presidente José Eduardo dos Santos e as pessoas que o cercam estão claramente a incentivar uma cultura de desrespeito aos princípios de um Estado democrático e de direito, subvertendo violentamente a interpretação dos mais importantes preceitos constitucionais, aproveitando-se do prestígio que lhe é legítima e politicamente atribuído por, depois de um longa guerra civil, aparecer como o grande promotor da paz e reconciliação nacional e pelo alcance de uma aparente estabilidade do país, depois da assinatura do Protocolo de 4 de Abril de 2002.
O aparente e nunca desmentido enriquecimento sem causa de elementos próximos do Presidente por laços de parentesco ou de subserviência política, efectivado através de um aparente e autêntico assalto ao património económico-financeiro nacional, onde não são poupados elementos do acervo histórico-cultural e ambiental, especialmente da capital do país, a violação dos direitos fundamentais em tributo a esse enriquecimento, sob o pretexto da criação de uma burguesia nacional e de uma classe empresarial, atinge níveis de um descaramento que hoje dificilmente pode ser comparado com qualquer outro regime vigente.
Por esta mesma ideia, de veneração da perversidade, enveredam alguns líderes de organizações religiosas que vão perdendo toda a autoridade moral, ao se transformarem em autênticos louva-deuses de um regime que do “mobutismo” só difere pelo facto de fazer a mesma coisa debaixo de uma constituição nominalmente democrática, o que é deveras extraordinário sob o ponto de vista do cinismo com que se dirige o país.
Na mesma linha, partidos políticos da oposição estão completamente vulgarizados, a ponto de serem mobilizados para suportar causas que um dia antes não apoiavam, para no outro dia serem completamente abandonados à sua sorte, como aconteceu com a FNLA e o PRS que fizeram o favor de votar uma “constituição política” sem sentido, alterando a sua posição de um dia para o outro, para hoje não beneficiarem de nada desse grande favor aos desígnios “eduardistas”.
Na própria direcção actual do MPLA, figuras de um prestígio enorme, conquistado ao longo de décadas ao serviço dos ideários mais nobres, também foram transformadas em meros acólitos de ideias improvisadas por uma liderança caprichosa que cobra fidelidades ilimitadas, desgastando-se em longas prédicas dedicadas a um culto de personalidade cada vez mais raro, mesmo nas mais diversas latitudes do chamado Terceiro Mundo. E assim todo o Partido MPLA foi transformado numa autêntica armadura defensiva à mínima contestação das mais incompreensíveis atitudes do núcleo duro do agora chamado Executivo.
Na mesma senda, intelectuais, em todos os domínios, especialmente no mundo do Direito, dedicam-se ao papel miserável de sacristães do templo da decadência e do injustificável, defendendo teses indefensáveis no plano da ciência, da ética e de uma moral mínima, em busca de balofas e ocas notoriedades.
Por essas e outras razões, 36 anos depois da nossa independência, quando Estados com a mesma idade e que atravessaram problemas de natureza semelhante aos nossos, como Moçambique, ou até Estados mais recentes com problemas mais graves vivenciados como Timor Leste, começam a ter o seu dia-a-dia definido em todos os termos, nós continuamos a viver no país da imprevisibilidade em vários sentidos.
No plano institucional, não se sabendo, por exemplo, como vai ser feita uma sucessão presidencial no partido governante − o que em Estados normais não deveria trazer preocupações de monta, por tratar-se de problema interno de uma organização política − acaba por se criar uma situação quase dramática interna e internacionalmente, devido ao tabu que se imprime a um facto que já há muito deveria ser encarado como perfeitamente normal.
Isto repercute-se negativamente no plano económico e financeiro, onde investidores estrangeiros ficam paralisados ou hesitantes nas suas decisões; na mesma senda, endinheirados nacionais (não importa como) se precipitam com nervosismo inusitado a transferir para o exterior valores que deveriam ser investidos num país onde só o sector petrolífero (e, por vezes, o diamantífero) funciona, com prejuízos enormes para o nível de vida de amplas camadas da sociedade.
No plano político-administrativo e burocrático, a mesma tétrica imprevisibilidade, onde nunca se sabe se o Ministro, o Governador, o Administrador Municipal ou Comunal com quem tratamos um assunto hoje, não ouvirá o despacho da sua exoneração amanhã, à hora do almoço, em tributo a boa imagem, chamuscada por alguma razão, do seu superior hierárquico; onde a falta de acesso a um núcleo tão estreito de bafejados pela sorte de pertencer ao círculo presidencial, mesmo este por vezes tão movediço, não encoraja ninguém a participar no desenvolvimento do país, nos mais diversificados sectores da vida nacional e regional; onde tudo o que seja economicamente relevante gira sempre em torno das mesmas pessoas.
Estrutura de sustentação
Resumindo e concluindo, toda esta situação é sustentada por uma estrutura iníqua que apresenta todos os condimentos necessários para a curto ou longo prazo se criar uma situação idêntica a que se vivia ou se vive em países e Estados em situação revolucionária hoje e ontem, compreendendo basicamente os seguintes elementos:
-uma comunicação social que não apresenta os dados reais à comunidade cívico-política nacional e internacional, e, consequentemente, às próprias autoridades que só se deleitam em ouvir aquilo que lhes agrada, fazendo por ignorar a realidade material dos factos, impedindo a livre circulação de ideias;
-na sequência do funcionamento de uma comunicação assim condicionada, um barulho ensurdecedor para desviar as atenções nacionais e internacionais para as questões de curto prazo, enquanto as questões estruturantes são completamente negligenciadas ou silenciadas.
-um Executivo cujo principal responsável não responde perante ninguém (Parlamento, para quem se limita a emitir mensagens não discutidas; comunicação social toda montada para o adular e não o indagar sobre nada; população com quem não se condói nas piores desgraças);

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