terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (8)





ANTÓNIO SETAS

3)...Os makota assassinaram o kinguri fazendo recurso a certos rituais do kilombo, conhecidos por kiluvia. No kiluvia, os Mbangala honravam falsamente os seus prisioneiros de guerra, punham-nos à vontade e confiantes, para, numa viragem repentina os matarem selvaticamente.
4)...Os makota aprisionaram kinguri juntamente com Manyungo wa Mbelenge. Passado algum tempo esta morreu e o kinguri, atormentado pela fome, comeu parte do seu corpo(unicamente a parte superior do corpo, talvez para evitar a indecência do contacto de um varão com as partes genitais da mulher) antes de ele próprio morrer de fome.

Análise:

1) Esta tradição pouco diz sobre as guerras que opuseram os Songo, adeptos do kinguri, e os Imbangala do kilombo. Vários aspectos da narrativa focam apenas crenças dos Imbangala, como por exemplo, a visão sobrenatural, que permaneceu até aos dias de hoje como um ingrediente importante dos poderes de um chefe.
2) Em qualquer uma das versões sobressai a necessidade de enganar o kinguri, cujos dotes de magia lhe permitiam adivinhar os perigos antes de eles acontecerem.
3) A morte pela fome significava o abandono de um título, imagem associada à realidade da sociedade em que eram os súbditos que literalmente alimentavam o rei. Por outra, segundo as crenças da época (dos Tumundongo), apenas os seres humanos sangram quando morrem, ao passo que isso não sucede com os espíritos de um título, os verdadeiros alvos deste ataque.
4) A aparente referência ao kiluvia fornece a confirmação, nas narrativas orais, de que os makota abraçaram o cerimonial do kilombo quando se rebelaram contra o kinguri.
5) Enfim, os makota quebraram também a aliança do kinguri com as linhagens Songo de Manyungo wa Mbelenge, pelo que se pode induzir da versão 4).



VERSÃO CONCEPTUAL OPOSTA:

...Os makota decidiram desembaraçar-se do kinguri recorrendo a uma astúcia subtil. Construíram-lhe um novo e esplêndido palácio e conduziram-no para o seu interior no meio de grande cerimonial. O palácio, tal como a paliçada das outras versões, tinha uma única entrada e, mal o kinguri se encontrou no seu interior, os makota bloquearam a porta e asfixiaram-no, deitando uma grande quantidade de farinha de mandioca através de um buraco que fizeram no tecto.

Concepção oposta, porque, ironicamente, não foi a negação de comida e de lealdade(?), mas o excesso de zelo no cumprimento das caprichosas e disparatadas exigências do kinguri que o levou à morte e à asfixia.
Depois de terem derrotado e abolido o kinguri, os makota conduziram por volta da década de1560 o seu bando de Imbangala para sudoeste, a sul do rio Kwanza, evitando contactos com o ngola a kiluange, que nessa altura já era um poderoso rei. Na sua esteira, os ,makota deixaram um novo conjunto de títulos políticos no Songo(apesar destes se terem aliado ao kinguri) baseados no munjumbo, no ndonje e no kunga. Também deixaram o Libolo muito mais pequeno e fraco do que o tinham encontrado, agora um pequeno Estado, ocupando apenas a província mais ocidental do seu antigo império. Tinham, pela mesma ocasião, forçado o Estado do kulembe a desintegrar-se e reclamaram para si próprios a liderança do kilombo, deixando para o munjumbo o núcleo das antigas terras do kulembe. Viajaram em direcção ao litoral, sempre a evitar contactos com o ngola a kiluange, chegaram a sul da actual cidade de Benguela, e daí se foram movendo para norte, ao longo da costa, durante as décadas de 1580 e 90, chegando às proximidades do rio Kuvo em 1601. Ali, pela primeira vez, tomaram contacto directo com os Europeus, e começou então um nova fase da história do kilombo.

Os Mbangala e os Portugueses

A tripulação de um navio mercante português, que encontrou os Mbangala chefiados por Kalanda ka Imbe acampados na margem sul do rio Kivo, em 1601, deu origem e desenvolveu uma parceria comercial baseada na escravatura, que conseguiu fazer com que os ngola a kiluange se vissem reduzidos da situação de monarcas de um reino vigoroso e em expansão por volta de 1600, para a de governantes fantoches e quase sem poder a partir de 1630., e criaram em sua substituição um conjunto completamente novo de Estados, um Europeu e outros Africanos, assentes na exportação de escravos de África para as Américas. Um pequeno Estado português, “Angola”, substituiu os detentores de títulos Kongo na superfície costeira a norte do rio Kwanza e os do ngola a kiluange nas antigas províncias centrais do Ndongo e Lenge, numa altura em que os titulares Lunda, à cabeça de bandos Mbangala, com o seu kilombo, se impuseram nas terras onde anteriormente tinham governado o hango do Libolo, os reis malunga dos Pende e diversos chefes subordinados do ngola a kiluange, estabelecendo a pouco e pouco as bases de Estados sedentários que iriam se consolidando entre 1610 e 1650.
Desde os primeiros contactos ficou estabelecido que os guerreiros do kilombo forneceriam cativos em troca de mercadorias europeias, e este negócio, desenvolvido após um ataque a populações a norte do rio Kuvo, prosseguiu com lucros satisfatórios para as duas partes, já que durante cinco meses os Mbangala continuaram a fazer razias e comércio próximo da costa. Depois disso, os portugueses enviaram um grupo de cinquenta homens para o interior, em busca de mais escravos e dos Mbangala, depois dos seus parceiros africanos terem abandonado o litoral. Nessa busca, um dos governantes locais que recebeu os portugueses, aceitou ajudá-los na condição deles deixarem na aldeia um refém como garantia de bom comportamento enquanto procuravam os Mbangala. Os portugueses aceitaram e escolheram deixar com o chefe negro o único estrangeiro que havia entre eles, um marinheiro inglês chamado Andrew Battel, e nunca mais voltaram para resgatá-lo, dando-o como perdido. Todavia, este conseguiu fugir do seu cativeiro e juntar-se aos Mbangala que ele tinha conhecido na costa, que o acolheram e não o molestaram. Durante os dezasseis meses de deambulações com os Mbangala pelas terras entre o rio Kuvo e a margem sul do rio Kwanza, de 1601 a 1602, Batell deu conta do poderio dos Mbangala que se atacaram mesmo à mais importante aglomeração dessa região, “Shillambansa”, aliás xila mbanza, de que se dizia que era a capital de um importante chefe, “tio” do ngola a kiluange, isto é, um dikota do reino do Ndongo, um dos guardiães dos símbolos reais de autoridade. Tal prestígio não lhes fazia medo nenhum!
Descrição de Kalanda ka Imbe por Andrew Battel, in Ravenstein
O Gaga Calando tinha o cabelo muito comprido, enfeitado com muitos colares de concha de bamba, muito apreciadas entre eles, e à volta do pescoço um colar de mazóis, que também são conchas que se encontram na costa e são vendidas entre eles pelo valor equivalente a 20 xelins cada uma; próximo da cintura usava umas contas feitas de ovos de avestruz. Usava também um tecido de palma fino como seda à volta da cintura. Seu corpo era esculpido e cortado com desenhos secos ao sol e todos os dias se untava com gordura humana. Tanto através do nariz como através das orelhas usava pedaços de cobre com cerca de duas polegadas de comprimento. Trazia o corpo sempre pintado de vermelho e branco e tinha sempre vinte ou trinta mulheres que o seguiam quando se deslocava; uma carrega com os arcos e as flechas; quatro deles seguem-no com taças por onde ele bebe, e quando o faz todas se ajoelham, batem palmas e cantam. (The strange Adventures of A. Battell, Londres, 1901)

Indiferentes às leis portuguesas, como é óbvio, os Mbangala vendiam escravos a quem lhes aparecesse com mercadoria para troca, nomeadamente os “contrabandistas”, homens que faziam o tráfico sem pagar impostos ao rei português. Pelo menos numa ocasião eles juntaram a um grupo de dissidentes do exército português na procura de cativos e do saque, na região da Kisama, a sul do rio Kwanza. O governador português da época, João Furtado de Mendonça, respondendo a um pedido de auxílio de chefes locais, enviou uma expedição em busca dos Mbangala, a qual por fim os obrigou a se retirarem para uma posição defensiva, onde se fortificaram e resistiram a todas as tentativas dos portugueses para os desalojar. Deste primeiro contacto litigioso resultou o reconhecimento por parte das autoridades de Luanda de que pela sua valentia os Mbangala poderiam se tornar valiosos colaboradores e abastecedores do tráfico para quem ganhasse a sua amizade. Convinha pois, obter da parte dos makota Lunda e dos seus seguidores, se não a colaboração, pelo menos a sua neutralidade.
Imagem: socgeografialisboa.pt

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