segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (17)


ANTÓNIO SETAS

Eis o que teria acontecido mais ou menos por essa altura: logo após a morte do rei Mbande a Ngolsa, o seu filho, Ngola a Mbande, ainda muito jovem, tomou o poder e, ao mesmo tempo que tentava atacar os Portugueses, no que foi como já é sabido mal sucedido, decidiu desembaraçar-se de todos os que lhe poderiam cobiçar o trono. Para esse efeito matou o seu irmão, ainda criança, mas que era o único herdeiro legítimo do reino por ser o único que não era filho de escrava, matou o sobrinho, filho da sua irmã, Nzinga, e, “com estranha impiedade, mediante água fervente ou ferros em brasa, como dizem outros, tirou às três irmãs a esperança de conceberem mais filhos (...) (Cavazzi)”. Nzinga a Mbande, a irmã, jurou então que nunca mais perdoaria o irmão nem a quantos tomassem o seu partido. E foi a partir dessa altura que ela começou a votar um ódio visceral a todas as crianças de sexo masculino, pela lembrança do modo como o seu único filho fora tão cruelmente suprimido.
Mas o tempo passou. As feridas cicatrizaram e valores mais altos se levantaram. Havia no pedido de Ngola a Mbande todo o peso da salvaguarda do reino do Ndongo. O rei soube pôr esse argument em evidência. Seguiram-se as desculpas, as demonstrações de grande arrependimento, as promessas e as juras e, finalmente, mascarando o profundo ódio que ressentia, Nzinga a Mbande aceitou ir à corte e mesmo ajudar o seu irmão, depois de ele lhe ter proposto enviá-la a Luanda como Embaixadora (“ngambele”) e medianeira de paz entre ele, rei do Ndongo, e os Portugueses.
De “Cabasso”, termo genérico designando a capital da Matamba, ela foi levada às costas, tal com era costume no reino, ao longo das 100 léguas que a separavam de Luanda. Ao chegar à entrada da cidade o governador foi ao seu encontro acompanhado por um séquito de cidadãos, e saudou a sua chegada com repetidas salvas de artilharia, num espalhafato tal que mais tarde a própria Nzinga confessou a Cavazzi que “não só ficou assombrada por tanta pompa, mas até amedrontada ao ver tantas milícias disciplinadas e pelo estrondo de tantas armas, embora estivesse habituada às batalhas”.
Depois da recepção foi hospedada no palácio de Rui de Araújo e todas as suas despesas ficaram a cargo da Fazenda, que lhe fez grandes presentes e pôs à sua disposição abundantes provisões. A audiência de que ficou o registo que a propulsionaria de imediato para a galeria das figuras que pesam na História, a pontos de poder influir no seu decurso, deveria ter lugar no dia seguinte (…)”.

Nzinga a Mbande a caminho do poder

No exemplar único do primeiro jornal que saiu em Portugal, mais precisamente em Braga, no ano de 1627, Relação Universal, de Manuel Severim de Faria, versa um assunto referente à morte de “ELRey de Angola”:“Por morte de ELRey de Angola sucedeo huma irmaã sua chamada D. Anna, que pretende que lhe mandem Padres da Companhia pera conversão daquelle Reyno, onde se espera que se abra huma grande porta pera a promulgação do Evangelho.(Fls. 212-213)”.
De facto a morte do denominado “ELRey de Angola”, titular da posição ngola a mbande, deu azo a que subisse ao trono do reino do Ndongo uma parente sua, que não tinha sido prevista para tal, mas que, em virtude de algumas manobras bem sucedidas conseguira situar-se no xadrez político do Ndongo de maneira a poder atingir esse objectivo. Quem seria?... tratava-se evidentemente de Nzinga a Mbande, a rainha Jinga dos Portugueses.
A tomada de poder como “ELRey de Angola” por parte de Nzinga a Mbande está muito longe de ser de todo conhecida, e, ademais, as informações que chegaram até aos dias de hoje são naturalmente destorcidas, na medida em que a tradição oral e a documentação portuguesa dão muito mais conta de pontos de vista do que de factos reais. Mesmo assim, passo a passo, tentaremos compreender o que se passou, a começar por uma pequena viagem no tempo passado, asté ao muito conhecido e esbatido encontro no ano de 1622, erntre Nzinga a Mbande, e o governador português João Corrêa de Souza instalado nessa altura em Luanda.
Na tal audiência de que ficou o registo, Nzinga a Mbande apresentou-se “carregada de gemas preciosas, bizarramente enfeitada de penas de várias cores, majestosa no porte e rodeada por grande número de donzelas, de escravas e oficiais da sua corte”.
Mal entrou na sala onde deveria ter lugar o encontro, Nzinga a Mbande reparou que havia “no lugar de honra uma cadeira de veludo com enfeites de ouro para o governador e em frente duas almofadas de veludo dourado sobre o tapete, conforme o costume dos príncipes da Etiópia. Parou e, sem mostras de embaraço e sem proferir uma palavra, acenou só com o olhar a uma das donzelas, que imediatamente se deitou no chão atrás da sua senhora, servindo-lhe de cadeira durante todo o tempo da audiência.
”Espanto!...
Mas o espanto que se apoderarados presentes, deixando-os um tanto ou quanto indecisos quanto à forma como conduzir as negociações que se iriam seguir, foi continuamente crescendo à medida que estas avançavam numa proliferação de inteligentíssimas argumentações, pontuadas pela tirada final que ficou para a história. Na altura em que Corrêa de Sousa, o governador, quis sublinhar com força que o rei Ngola a Mbande, quer dizer, o povo de Angola, seria obrigado a “reconhecer a Coroa de Portugal com ânuo tributo”, Nzinga a Mbande, em resposta imediata e directa afirmou que “tal condição só se podia exigir de uma nação submetida, nunca de uma nação que espontaneamente oferecia uma mútua amizade”. E, reconhecendo a pertinência da riposta, Corrêa de Sousa não insistiu sobre esse ponto e apenas exigiu a restituição dos escravos e a mútua assistência das duas nações contra inimigos comuns, sem contudo ceder sobre um ponto importante das reclamações de Nzinga, a destruição do fortim de Ambaka (Mbaka) construído nos finais da década de1610 (1617-18). Terminado o colóquio, o governador acompanhou Nzinga com a etiqueta devida a uma princesa e fez-lhe cortesmente notar que a donzela que lhe tinha servido de cadeira continuava ajoelhada no seu lugar e talvez tivesse chegado o momento de lhe dar licença para se levantar. Mas Nzinga respondeu-lhe que não era por esquecimento que ela ainda ali se encontrava, que ficasse, não a queria mais, e era esse o seu desejo, pois não era conveniente que uma princesa e embaixatriz do seu reino se sentasse duas vezes no mesmo assento (!).
Deste encontro o governador guardou na memória a extraordinária presença e perspicácia política de Nzinga e começou a estimá-la, a pontos de procurar instruí-la por pessoas idóneas no fito de levá-la a converter-se à religião cristã. E Nzinga não se opôs a essa ideia, certamente nutrindo em mente o conceito de que uma das melhores armas para lutar contra um inimigo é conhecê-lo o melhor possível (“ganhar os corações para mais facilmente poder dominá-los”).
Essa é, talvez, a principal razão que a levou nesse mesmo ano de 1622 a se converter ao cristianismo e a aceitar ser baptizada na igreja da Sé de Luanda, tendo o governador Corrêa de Sousa como padrinho e a sua esposa D. Ana como madrinha, [segundo Cadornega, a madrinha teria sido Dona Jerónima Mendes, esposa do capitão-mor de cavalos, Luís Gomes Machado]. A partir desse momento passaria a chamar-se Dona Ana de Sousa.
Na vida de Nzinga seguiu-se um período de passageira acalmia. Depois de ter conseguido alcançar o seu principal objectivo, isto é, amansar os Portugueses com a sua conversão, levou o seu fingimento ao ponto de se sentir feliz na vida de abundância de bens, e de paz e serenidade com Deus, que os da sua roda luandense lhe propunham, e não se cansava de dar sucessivas mostras de alegria. Passados uns meses nisto ela despediu, e o governador não se esqueceu de lhe fazer “numerosos e magníficos presentes e prometeu-lhe mútua amizade com Matamba”.
Quando chegou a “Cabasso”, Nzinga continuou a interpretar com maestria a sua comédia, cumpriu as sua promessas e conseguiu persuadir o seu irmão, Ngola a Mbande, a pedir ao governador alguns catequistas, o que foi feito e satisfeito ilico por João Corrêa de Sousa, que lhe enviou o Padre Dionísio de Faria, padre preto natural da Matamba, com um capitão Manuel Dias, para ali despachado a fim de servir de padrinho no previsto baptismo do Ngola.
Isto quer dizer que Nzinga tinha convencido o seu irmão dos imensos benefícios a tirar desse tipo de aproximação religiosa com os portugueses, maneira, segundo ela de melhor poder aniquilá-los mais tarde pela argúcia. Porém, tal estratégia deparou-se com uma enorme oposição popular, ninguém compreendia esta súbita reviravolta de Nzinga, e os ânimos exaltados só se acalmaram por via de um acerto improvisado pelo rei, que num primeiro tempo tinha aceitado baptizar-se, mas que depois de ter visto que o padre era da sua raça e mais que provavelmente de estirpe baixa, filho de uma escrava sua, recusou-se a baixar a cabeça diante daquele súbdito sobre quem ele tinha direito de vida e de morte, por mais padre que fosse. Lógica inatacável, dado que ninguém conseguiu explicar-lhe que Grandeza era essa, a do Reino dos Céus dos cristãos, cuja porta lhe era aberta por um escravo!... Não se confessou. E Nzinga anuiu, rendida ao clamor do povo e aos argumentos da humilhação da régia majestade, num delicado jogo teatral, que ela continuava a desempenhar com grande talento.

Imagem: portalsaofrancisco.com.br

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