quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (9)



ANTÓNIO SETAS
Entretanto, os portugueses defrontavam-se com outras dificuldades de monta, ligadas essencialmente à falta de efectivos que pudessem por um lado satisfazer o aumento da demanda de escravos, sobretudo para o Brasil, e por outro combater a praga dos “cantrabandistas” por uma boa parte oriundos ou residentes de S. Tomé, que praticavam o tráfico sem pagar as devidas percentagens das receitas ao rei de Portugal, assim como um persistente Estado Kongo chamado Kasanze (ou Kasanje, do nome do seu governante Mbangala, que tinha em tempos, por volta de 1585, capturado 80 portugueses, dos quais matou 20 e devolveu os outros contra resgate – Birmingham), instalado no interior, mas perto de Luanda, o que obrigava a ir em busca de escravos muito mais para o interior. Bento Banha Cardoso, governador de Angola entre 1611 e 1615, repetidamente se queixou da falta de cavalos e de homens para reforçar as forças da costa e do interior, perigosamente fracas em ambas as frentes. E, como a coroa portuguesa não respondia aos seus pedidos, que remédio senão encontrar aliados entre os povos africanos. Ora tanto os talentos de guerreiro como a posição política dos Mbangala, sem falar das necessidades rituais que incluíam sacrifícios humanos, correspondiam às suas necessidades em quase todos os aspectos. Ademais, Cardoso viu que a utilização dos Mbangala como mercenários nas guerras do interior libertaria a magra guarnição portuguesa para as operações costeiras contra Kasanze e os traficantes ilegais de escravos.
Cerca de 1612, tornou-se efectiva uma aliança formal entre os Mbangala e os Portugueses, mas Cardoso, em vez de se atacar aos “traficantes insurrectos” da costa, ou minimizar os inconvenientes causados pela existência do Kasanze (Kasanje?), meteu-se pelo interior com a ajuda dos Mbangala e atacou os Estados africanos do interior., tal como o demonstram os vibrantes protestos do rei Álvaro II do Kongo, que se queixava de que os Mbangala (os “Jaga”, como todas as fontes se lhe referem) estavam a “comer” muitos dos seus súbditos, fazendo deles as primeiras vítimas registadas dessa nova combinação afro-europeia. Em 1615, os resultados dessa empreitada bélica obtiveram novos sucessos com a rendição de muitos sobas Tumundongo da margem esquerda (sul), do rio Bengo e, mais longe, a dos mais poderosos titulares que ocupavam ambas as margens do rio Kwanza: Kafuxi, detentor das minas de sal de Ndemba, na Kisama; o kasanje de Kakulu ka Hango, que vivia próximo da Muxima; Kambambe, que guardava o acesso às lendárias “Montanhas de Prata”, logo acima das quedas do Kwanza; e o próprio ngola a kiluange.
Foi com esta providencial ajuda dos Mbangala que os portugueses, já em perigo de serem escorraçados ou mesmo aniquilados em território africano, consolidaram as suas bases e mesmo se expandiram. Em contrapartida os Mbangala vieram, muito provavelmente, a resolver alguns problemas internos atinentes à amálgama de díspares instituições políticas que constituíam o kilombo dos makota Lunda no princípio do séc XVII (1610-1660), graças à “ajuda” - interesseira – dos portugueses, como veremos, fazendo o ponto da situação que se segue.

O “Estado” Mbangala
Embora sejam poucas as informações sobre a estrutura política dos Mbangala na 1ª década do sèc. XVII, vinga a hipótese de que só um rei, do tipo kulembe, detinha a única posição de poder, permanente e autónoma no seio do bando, enquanto todos os outros chefes detinham títulos de nomeação de tipo vunga. A estrutura formal do kilombo dividia os membros de cada bando de Mbangala em cerca de doze secções distintas (prática que vem das origens do bando), cada uma das quais sob a direcção do seu próprio “capitão”. Estes regimentos viviam e combatiam mais ou menos separadamente, e no acampamento guerreiro, único, havia doze entradas separadas como símbolo dessas distinções, cada uma delas para o seu grupo, pois, por fim, todos acolhiam ao mesmo kilombo para efeitos de defesa. Face à centralização quase total da autoridade dentro dos bandos Mbangala, a aliança com gente de fora tornava-se uma perspectiva atraente para os que fossem detentores de títulos permanentes que estivessem em posição subordinada.
Por essa altura, os “capitães”, provavelmente detentores de títulos vunga e apoiados pelos regimentos que comandavam, tinham substituído, como instituições básicas da estrutura social dos Mbangala, as linhagens com que o grupo original dos Lunda tinha começado, uma vez que essa estrutura não tinha lugar para os numerosos títulos perpétuos dos Lunda, tais como as posições kota ou o kulaxingo (que mais tarde, como se verá adiante, fundou o reino de Kasanje sob um título kinguri restaurado). Assim sendo, vários titulares Lunda do bando principal dos Mbangala tinham continuamente lutado pelo controlo da realeza que Kalanda ka Imbe detinha em 1601. Isto do lado dos componentes de origem Lunda. Por outro lado, os detentores de títulos não Lunda, que se tinham juntado ao bando do kinguri em terras Cokwe e do Libolo, e nunca tinham controlado a mais importante posição do kilombo, pois faziam uso exclusivo dos mavunga, devem ter reconhecido nos portugueses aliados potencialmente valiosos para acabar com a dominação Lunda entre os Mbangala. E estes, como veremos, vão “ajudar” esses titulares sacrificados pela centralização.

Kalamba ka Imbe detinha o poder do kilombo quando os portugueses se encontraram com os Mbangala, em 1601. Durante os 50 anos que precederam esse facto histórico, a posição tinha passado frequentemente de um kota Lunda para outro. Segundo a tradição, o kota Kangengo tinha inicialmente reclamado a liderança do kilombo, mas governou apenas 3 “dias” e depois morreu, alegadamente vítima da maldição que Kinguri lhe lançara antes da sua morte. Sucedeu-lhe Mbongo wa Imbe, que só governou durante 2 “dias”. O terceiro foi o actual, Kalamba ka Imbe, que por também ter desafiado a maldição de Kinguri veio a viver apenas 1 “dia”., antes de ter o mesmo destino que os seus predecessores.
(Isto significa em termos metafóricos que o kilombo se dissolvera na anarquia, devido às constantes lutas pelo poder. Todos morreram de noite (alusão à maldição). Mas dos três, dois, Mbongo e Kalanda, pertencem à mesma linhagem Imbe, o que indica que o bando se tinha separado em dois grupos principais. Kangengo, o primeiro, pertencia à velha linhagem de Kandama ka Hite, que perdera o controlo em favor de Mbongo e Kalanda ka Imbe, pertencentes a Kandama ka Kikongwa e Kanduma ka Kikongwa. Os detentores destes títulos ainda nessa altura tendiam a unir-se de acordo comas linhas dos suprimidos grupos de parentesco que tinham conhecido na Fundador outro lado, os detentores de títulos não Lunda, que se tinham juntado ao bando do kinguri em terras Cokwe e do Libolo, e nunca tinham controlado a mais importante posição do kilombo, pois faziam uso exclusivo dos mavunga, devem ter reconhecido nos portugueses aliados potencialmente valiosos para acabar com a dominação Lunda entre os Mbangala).
Os Portugueses rapidamente se aperceberam de tais dissensões e, mais depressa ainda lobrigaram as vantagens oferecidas pela presença de titulares sacrificados pela centralização. Algum tempo depois de Battel ter deixado os Mbangala, então ainda sob a liderança de Kalanda ka Imbe, um detentor do título kulaxingo(não Lunda)encabeçou uma rebelião da componente Cokwe/Lwena contra o prolongado e tumultuoso domínio dos titulares Lunda. O governador Cardoso aceitou apoiar o kulaxingo a troco deste pôr o grupo de Imbangala ao serviço dos seus desígnios militares. O kulaxingo tomou o poder com a ajuda dos Portugueses e entrou deliberadamente em luta contra os vassalos do Kongo e do ngola a kiluange. Os Portugueses tinham dessa maneira obtido um poderoso apoio nas suas guerras contra os Mbundu, e um aliado autóctone, agradecido e aparentemente dócil, no tráfico oficial de escravos, em vez de ser o que se considerava até aí: uma terrível ameaça para os alienígenas lusos.
Vejamos o que relatam as tradições orais sobre este período da história do kinguri:

Os makota viam desde há muito que o chefe Kinguri e as suas insaciáveis exigências de sacrifícios humanos ameaçavam a sobrevivência do seu povo. Por essa razão, ao chegar a Mona Kimbundu (depois de terem atravessado o rio Kasai) agarraram um certo número de estrangeiros, incluindo Kulaxindo, para oferecer a Kinguri no lugar dos seus próprios seguidores. Porém, Kulaxingo, pela sua submissa postura, conseguiu ganhar os favores dos makota, principalmente Mwa Cangombe, Ndonga e Kangengo, os líderes de uma secção do bando, a de Kandama ka Hite, designada para escolher as vítimas que deviam morrer sob os punhais de Kinguri. Ainda antes de o grupo deixar Mona Kimbundu, Kulaxingo tinha obtido o estatuto de kibinda, mestre caçador, e quando regressava de uma caça bem sucedida dava sempre carne aos makota a fim de assegurar a sua permanente boa vontade. Além disso mantinha uma secreta ligação amorosa com Imbe ya Malemba, a mãe de Mbondo e Kalanda ka Imbe, para ganhar a confiança do grupo Kandama e Kaduma ka Kikongwa, das linhagens Lunda.

Imagem: outrostemas.blogspot.com

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