ANTÓNIO SETAS
Vasconcelos, aparentemente, tentou trazer uma vez mais os Mbangala para o controlo governamental, mas fracassou. Tudo o que conseguiu foi dispersar o principal kilombo e fazer fugir o kulaxindo para longe, no interior. Quando em 1617 ele deslocou à fortaleza de Hango para Ambaca, a ideia era atacar de fronte o problema Mbangala, escorraçá-los de Angola se necessário fosse, já que eles se encontravam acampados a menos de um tiro de canhão e dificilmente poderiam resistir ao poderio dos morteiros lusos. Mas quando ele chegou ao acampamento mudou de ideias e, pelo contrário, juntou-se aos Mbangala numa grande razia que varreu regiões muito para leste, entrando no Ndongo, e para norte, atravessando o Lucala e penetrando no território Kongo. Juntos atacaram os mais poderosos governantes dessas regiões, sem excepção, incluindo Keta kya “Labalanga”, o ngola a kiluange e alguns dos chefes ndembu. Esta guerra causou tal devastação que o comércio parou completamente, os caminhos ficaram fechados a quaisquer viagens, e a destruição generalizada das colheitas provocou uma sazão de grande fome por todo o lado. Mas qual teria sido a razão de reviravolta tão grande da parte de Vasconcelos? Segundo muitos indícios levam a crer, Vasconcelos deve ter sentido que não poderia derrotar os Imbangala e, assim sendo, envolveu-se nessa campanha de 1617-18 para lhes demonstrar que o seu verdadeiro interesse seria continuar a ficar do lado dos Portugueses, e não com os comerciantes ilegais. Todavia, o espectacular sucesso da razia, não conseguiu esconder o propósito oculto de Vasconcelos controlar mais de perto os Imbangala. Estes já tinham perfeitamente interpretado as razões da instalação de um novo Presídio em Ambaca, um forte e uma guarnição tão perto do seu acampamento principal poderia não só servir para exercer uma forte pressão para que eles abandonem a sua colaboração com os contrabandistas, mas também ser uma ameaça real no caso de eles não acatarem as ordens dos Portugueses. E, embora nenhum documento ateste explícita ou implicitamente este cenário, o certo é que os Mbangala do kulaxindo abandonaram Angola cerca de 1618, com uma quantidade tão grande de Tumundongo da região (escravos e vassalos cristãos do rei português”) assim como mercadorias de variados tipos, que os comerciantes de Luanda sofreram tão substanciais perdas financeiras que só muito dificilmente conseguiram se recompor..
Eis o que diz a tradição a propósito da retirada dos Mbangala em 1618:
1º
Os Mbangala fugiram par leste e levaram tudo o que podiam levar. A sua retirada precipitada deve-se ao fracasso das colheitas cujas sementes eles tinham recebido dos Portugueses e lançado à terra quando se fixaram em Lukamba. Kulaxingo descobriu que as sementes tinham sido torradas ou tinham apodrecido e não se desenvolveriam.
2º
Os Mbangala tinham-se estabelecido em Lukamba e semeado as suas sementes, quando um elefante entrou nos campos e destruiu as plantações. Como os elefantes nunca apareciam por aquelas regiões Kulaxingo interpretou este infortúnio como um mau presságio, e enviou os seus yibinda em perseguição do animal e eles seguiram-no até ao futuro local em que se instalariam mais tarde, no reino de Kassanje.
Análise:
Imagem metafórica corrente nos Tumundongo, a das sementes podres ou torradas que de nada servem, neste caso apenas é a manifestação clara dos Mbangala de abandonarem a vida nómada de atacantes errantes. O temor das consequências espirituais decorrentes de uma fixação permanente à terra levou-os a fugir para o interior, para “voltarem à caça” (com a ajuda do elefante, 2ª versão).
Maturidade da aliança Luso-Mbangala
Depois da campanha vitoriosa de 1617-18, os Portugueses tinham definitivamente ocupado o território da margem direita (norte) do Kwanza, estendendo-se para leste até ao posto de Ambaca, e, muito mais tarde, por volta de 1671, até Pungo Andongo, depois da vitória final sobre o hari a kiluange. Estas terras eram rodeadas por um anel de novos Estados Tumundongo fundados em meados do séc. XVII por titulares (makota) Lunda que chefiavam os bandos de Mbangala e tinham ficado em Angola depois da partida do kulaxindo para o interior. Os Portugueses empregavam estes Mbangala liderados pelos makota Lunda como mercenários de guerra e tratavam-nos tão generosamente quanto lhes era possível. Este acordo predominou entre o Lucala, o Kwanza e o Kwango desde a década de 1620 até 1850.
A aliança entre os Portugueses e o kulaxingo, de 1612 a 1619 beneficiava largamente este último em detrimento dos makota. A partir do momento em que o kulaxingo partiu para o interior, os makota, não desejando reconhecer o título kinguri, que tinham abolido, fundaram nas imediações de Angola nada menos que 30 grupos separados. De início esses makota manifestaram uma hostilidade aberta contra as forças oficiais portuguesas que tinham ajudado o kulaxingo, e um deles, detentor do título ndonga, tentou resistir às acometidas da campanha de 1617-18, conseguiu manter-se na região, mas foi derrotado mais tarde, em 1621, pelos Portugueses, que capturaram o chefe e destruíram completamente o seu exército, levando alguns membros restantes do bando a fugir como título para a Baixa de Cassanje, onde se juntaram aos Mbangala do kulaxingo no emergente Estado de Kasanje.
Kabuku ka Ndonga, um titular subordinado ao ndonga, assumiu o controlo sobre as outras partes do bando e decidiu juntar-se ao governador de Angola numa campanha em 1621-22 contra o mani Kasanze, que venceu; continuou para norte, invadiu as províncias meridionais do Kongo, Mbamba e Mpemba, derrotou o exército de Mbamba e matou o duque de Mbamba e o marquês de Mpemba. Em 1623 foi de novo com os Portugueses até ao Kongo, mas desta vez para prestar mão forte ao rei do Kongo que lutava contra dois chefes ndembu que se tinham revoltado. Dessa colaboração nasceu uma parceria que se revelou mais duradoura que a que tinha ligado os Portugueses aos Mbangala em 1612 e de que Kabuku ka Ndonga beneficiou para estabelecer um reino semi-independente na fronteira sul da região dos ndembu, servindo de tampão aos portugueses contra estes últimos, situados a norte, para lá do rio Nzenza. Foram 200 anos de colaboração quase contínua, apenas violada, temporariamente, aquando da chegada dos Holandeses em 1641, em que o portador do título kabuku ka ndonga vacilou, deu mostras de se virar para os recém-chegados Holandeses, mas depressa se retraiu e em 1643 ao sair da sua base de Wumba, a norte do Lucala, para fustigar os chefes ndembu que se tinham aliado aos Holandeses durante a ocupação de Luanda.
Por volta de 1640, o reino da Matamba, centrado no rio Wamba, tinha-se tornado um dos mais poderosos Estados orientais dos Tumundongo, sob a chefia da rainha Nzinga, que lutava para restabelecer ali o título ngola a kiluange, após os Portugueses terem colocado fantoches no lugar dos reis originais do Ndongo. Entre 1641 e 1648 ela pôs-se ao lado dos Holandeses, enquanto Kabuku ka Ndonga continuava a lutar ao lado dos Portugueses. Em 1646, dá-se uma batalha em que Kabuku ka Ndongo é feito prisioneiro pelo exército da rainha Nzinga algures a leste de Ambaca. A rainha, que também protestava a sua fidelidade às leis do kilombo, poupou-lhe a vida por respeito para com a posição ndonga, cujos representantes ela encarava como sendo seus aliados, mas nunca mais o deixaria voltar para os Portugueses. Entretanto, o povo de Kabuku ka Ndonga escolheu para novo governante o seu cunhado, casado com a sua filha Kwanza, que tinha sido detentor da posição vunga de nomeação, funji a musungo (título que se pode traduzir pouco mais ou menos por “mantimento de exército”), e era um dos chefes guerreiros do bando. Uma vez que ele sabia que o seu antecessor estava vivo, não podia reivindicar plenos direitos e governou como regente, graças à ajuda dos Portugueses e através do apoio da sua esposa, que os Mbangala olhavam como legítima guardiã da posição. Por outra, o facto de se aliar aos Portugueses para combater a rainha Nzinga dava esperança ao povo de resgatar o seu chefe ainda vivo, mas todas as tentativas falharam e o velho rei acabou por morrer na Matamba, sem nunca lhe ter sido dada a oportunidade de reintegrar os seus. O novo kabuku ka ndonga lutou ao lado dos Portugueses contra os Holandeses, em 1648 contra os chefes ndembu, e em 1648-49 contra Panji a Ndona, o sucessor de mani Kasanze, próximo de Luanda. Ainda antes da sua morte em 1652 ou 53, os Portugueses honraram a sua fidelidade, concedendo-lhe o título de Jaga, e mesmo “o nosso Jaga”.
O seu sucessor depressa abandonou os Portugueses, para se pôr ao lado da rainha Nzinga sob a bandeira do kilombo. Os Portugueses retaliaram a traição com uma expedição militar em 1655, capturaram o chefe, a esposa (ainda com o nome de Kwanza) e os todos os dignitários do kilombo. De pronto enviaram-no como escravo para o Brasil assim como todos os seus homens(assim de resto como tinham feito com Kasanze em 1622), e substituíram-no por um fantoche escolhido por eles.
O novo kabuku ka ndongo, liderado por Ngoleme a Keta, lutou fielmente ao lado dos Portugueses contra vários chefes do Ndongo durante o mandato do governador João Fernandes Vieira (1658-61). Depois disso a dependência dos posteriores detentores do título em relação aos Portugueses foi aumentando, acabaram por abandonar o kilombo e por fim, um dos representantes admitiu no seu reino um par de missionários Carmelitas e aceitou o baptismo cristão na década de 1670.
Imagem: africafederation.net
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