sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (14)



ANTÓNIO SETAS

Na década de 1680 o kabuku ka ndonga tornou-se “um modelo a seguir” de aliança entre os Portugueses e os autóctones. Nesse caso paradigmático, o rei negro alistava os seus súbditos como mercenários nos exércitos portugueses sempre que os funcionários de Luanda requeriam os seus serviços. Necessariamente, em tais circunstâncias, o valor dos seus títulos decaía, de tal modo que, por exemplo, os kabuku ka ndonga abandonaram completamente a sua posição Imbangala no decorrer do séc XVIII, numa repetição do habitual padrão de mudanças nos títulos, para reflectir novas fontes de legitimação. O título original adquiriu um novo sobrenome, tornando-se Kabuku ka Mbwila (o mais poderoso de todos os chefes ndembu, a norte de Ambaca), conhecido daí em diante por ndembu Kabuku. A mudança indicava que o kabuku transferira a sua obediência para o mais poderoso sistema local de títulos políticos, as vizinhas posições ndembu, da parte sul do Kongo (casamento dos títulos ndembu com as linhagens kabuku).
A história da posição kota dos Lunda, Kalanda ka Imbe, ou Kalandula, como ficou conhecida, é similar à do kabuku ka ndonga. Segundo a tradição, um detentor do título chamado Kaxita (sem outra identificação) jurou obediência como vassalo dos Portugueses, tornando-se “Jaga” Kalandula, durante a conquista de Lukamba. O kalanda ka imbe teria pois proposto a sua ajuda aos Portugueses, convencendo-os de que ele, como legítimo líder do kilombo, poderia ser mais eficaz que o kulaxingo, numa altura em que este já se sentia em perigo com a presença dos Portugueses em Ambaca. Essa ajuda, significando em contrapartida um apoio dos Portugueses aos detentores do título, talvez tivesse precipitado a fuga do kulaxindo para o interior, assim como explica a sua decisão de se apoderar do kinguri, sem dúvida muito útil na sua longa caminhada para leste, deixando o controlo do kilombo ao kalanda ka imbe e outros, que tinham ganho o apoio dos Portugueses, apoio de que o kulaxindo tentara excluí-los.
Durante a década de 1640 Kalandula combateu de par com Kabuku ka Ndonga ao lado dos Portugueses contra a rainha Nzinga da Matamba, a leste. Grande parte dessa actividade guerreira concentrou-se no controlo de uma rota principal de comércio que vinha da Matamba através do território dos ndembu e chegava até Luanda, onde nessa altura governavam os Holandeses. Apenas uma vez o kalandula abandonou os Portugueses, quando passou para o lado da rainha Nzinga com kabuku ka ndongo em 1653. Como sobredito os Portugueses capturaram kabuku ka ndongo, mas não foram capazes de resgatar kalandula, nem tão-pouco manipular a sucessão ao trono como era o seu hábito. De maneira que tiveram que negociar. Fizeram-no em 1656 por meio de um tratado com a Nzinga, no qual se estipulava que esta renunciava a uma inimizade de 30 anos para com os Portugueses e devolvia o kalandula à vassalagem destes. Os posteriores kalandula, em associação com os kabuku ka ndongo, participaram numerosas vezes nas guerras dos Portugueses.
A localização das terras dos dois chefes Mbangala (o território, conhecido por Kitukila, fazia fronteira com as terras dos ndembu e de Nzinga a norte, e do Ndongo, a sul) na margem norte do Lucala, acima de Ambaca, mantinha-os dependentes do apoio dos Portugueses, uma vez que se encontravam em perpétua ameaça de acometidas por parte dos seus belicosos vizinhos do norte. Os reis do Kongo mataram pelo menos um kalandula no quadro de um flagelamento geral de chefes fiéis a Portugal. Outro kalandula lutou contra o ndembu Nambo a Ngongo na década de 1660, acompanhou a expedição portuguesa ao Soyo, no Kongo, chefiada por João Soares de Almeida em 1670, e de novo contra o ndembu Mbwila em 1693. Os Portugueses concederam ao kalandula o título de “Ngola a Mbole” ou “Kyambole do rei Português” e forneceram-lhe armas e suprimentos a troco da sua participação em muitas expedições militares ao longo dos séc. XVII e XIX.
Voltando atrás no tempo, vejamos qual foi a trajectória de Nzinga Mbande. A governante da Matamba e pretendente ao título de ngola a kilwanji, após a derrota do Ndongo, adoptou o rito do kilombo na década de 1620 e considerava-se a si própria Mbangala. Mas o seu reino desenvolveu-se de forma muito atípica, uma vez que ela foi capaz de manter uma oposição às actividades portuguesas em Angola muito mais consistente do que a que lhes opunham os bandos de guerreiros Mbangala oriundos das terras de leste. Nzinga foi a única Mbangala do norte que reivindicou uma autoridade política (certos títulos locais da Matamba) derivada do sistema autóctone de títulos dos Tumundongo por ser a única a possuir fontes locais de legitimidade. Embora elas fossem pouco seguras, permitiram-lhe comandar o seu próprio povo com maior margem de segurança do que os instáveis bandos de Mbangala titulares de exóticos títulos Lunda, que nunca ganharam a confiança das linhagens cujo domínio reivindicavam.
A economia do tráfico de escravos também lhe permitiu conservar uma certa autonomia em relação aos Portugueses até 1656, em virtude da rota passar pelo território dos ndembu e os Holandeses ocuparem Luanda na década de 1640, ao longo da qual ela deteve um monopólio virtual sobre o tráfico de escravos vindos do interior, em detrimento dos kalandula, que antes eram os principais fornecedores dos Portugueses.
Em 1648, porém, os Portuguese expulsam os Holandeses, e a supremacia de Nzinga termina aí, dado que os Portugueses reabrem as rotas para o interior e desviam o tráfico de escravos para Kasanje, que, pela sua simples existência, levou a rainha a se reconciliar com os Portugueses em 1656.
No reino de Kasanje, os sucessores do kulaxindo preservaram um certo grau de independência em relação aos Portugueses, através de alianças com o mwa ndonge e alguns títulos Songo de origem Lunda. Só após 1648, quando a renovada hegemonia portuguesa junto ao litoral restabeleceu uma segunda importante rede de tráfico de escravos em Angola, a oficial (quase paralela à ilegal, que passava pelos ndembu), é que o Kasanje começou a controlar o término (e a fonte) do sistema. A grande distância que separava a Matamba de Luanda permitia aos kinguri de Kasanje manter uma política mais ou menos independente. Além do mais, os Tumundongo orientais do Kasanje manifestaram, ao invés dos ocidentais, um certo respeito pelos títulos Lunda, como ficou demonstrado pela proliferação de títulos aparentados entre os Songo. Kasanje também incorporou uma variedade de posições nativas dos Tumundongo, vindas da área do Libolo. Todas estas condições impedem Kasanje, tal como a Matamba, de serem representativos dos Mbangala, embora se reclamassem da sua raiz.

Os Mbangala a sul do Kwanza

Para sul do rio Kwanza as relações entre Portugueses e Mbangala caracterizam-se por uma hostilidade quase constante pelo facto de as conivências entre o kilombo, os diversos títulos vunga e outros derivados do kulembe, terem uma boa aceitação por parte desses povos do sul largamente influenciados pelas tradições dos Ovimbundu e dos seus antepassados, ao invés do que acontecia no norte, em que os Tumundongo, salvo raras excepções (ver rainha Nzinga), manifestavam uma firme e determinada repulsa ao kilombo e aos Mbangala em geral, o que os levou a colaborar com os Portugueses.
Esta recusa não se deve em todo o caso a uma falta de tentativas dos Portugueses para obter acordos de colaboração como o kulaxindo do sul, pois já Manuel Cerveira Pereira, o antigo governador de Luanda (de 1615 a1617) que tão abusivamente tinha recorrido aos préstimos dos Mbangala do norte, ensaiara estender a sua aliança com eles á margem sul do Kwanza.

Manuel Cerveira Pereira nas suas obras
Organizou uma expedição, que navegou para sul, em direcção ao Kunene, procurando bandos de Mbangala. Encontrou alguns, mas por toda a parte foi recebido com manifesta indiferença, e apoios não recebeu por assim dizer nenhum, o que dificultava de sobremaneira o seu projecto de progressão para o interior das terras do sul de Angola a partir de um novo porto da mar situado perto da foz do rio Kuvo, em Benguela Velha. Goradas as suas intenções, continuou para sul, até que encontrou um grupo de Mbangala acampado perto de um rio a que chamou “Murombo”, e conseguiu persuadi-los a fazer razias na população local para obter escravos. Contudo, as coisas não se passaram lá muito bem, porque os Mbangala só aceitavam fazer “kwata kwata” durante o dia, e durante a noite, sorrateiramente, vinham libertar os escravos apanhados durante o dia. O rei Mbangala, de que não ficou o registo, também deu abrigo a outros escravos foragidos do campo dos Portugueses, e a páginas tantas Cerveira Pereira acusou-o de duplicidade. O líder do kilombo negou qualquer conhecimento sobre os escravos e ameaçou atacar os Portugueses se eles não o tratassem com mais respeito, numa atitude de independência que exasperou de tal maneira o chefe Português que este decidiu atacar o acampamento dos Mbangala, para recuperar os seus bens perdidos. Depois de duas tentativas falhadas, cerca de 80 homens a pé e dois cavaleiros conseguiram romper as defesas indígenas e os Portugueses ganharam a batalha, capturaram o chefe, decapitaram-no, recuperaram a maior parte das mercadorias e escravos e escravizaram todos os guerreiros Mbangala que conseguiram capturar. Continuando mais para sul, pouco tempo depois Cerveira Pereira tentou aliar-se com outro bando de Mbangala chefiado por “Ka Ngombe”. Este aceitou a parceria, mas muito cedo compreendeu que o Português queria os figos e deixava-lhe as folhas, relegando-o para uma posição de subordinação a fim de evitar que se repetisse a mesma experiência que tinha acabado de viver com o bando do rio “Murombo”. “Ka Ngombe” não gostou, reconheceu o perigo e fugiu para as colinas sob pretexto de ter ido procurar mais presas de guerra. Só que, quando partiu, roubou algum gado dos Portugueses e levou-o para o seu acampamento, no cimo de um monte inacessível. Os Portuguese conseguiram tomar de assalto o acampamento e recuperar alguns bens, mas depois bateram em apressada retirada para a sua base principal situada perto da costa marítima, debaixo de ataques constante dos Imbangala reagrupados. As expectativas de Cerveira Pereira de um tráfico proveitoso não se tinham concretizado.

Imagem: espadadeogum.blogs.sapo.pt

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