sábado, 22 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (16)


ANTÓNIO SETAS

Com os reis do Ndongo, num primeiro tempo protegeu o “filho” de Mbande a Ngola (um titular?) para não ser capturado pelo Portugueses. Porém, depois de Nzinga ter substituído Mbande a Ngola, o kaza entregou o “filho” deste a Nzinga, concedendo-lhe assim o ensejo de o fazer assassinar. Coerente consigo próprio, o kaza entregou o “filho” a quem fosse capaz de dignificar o seu nome e protegê-lo, o que não era o caso do legítimo sucessor de Ngola a Mbande. De resto o kaza apenas permaneceu no Ndongo enquanto Nzinga pareceu capaz de suster os Portugueses, pois a vitória portuguesa de 1626 obrigou-o mais uma vez a pôr-se em fuga para a outra margem do Kwanza. Dali começou a mandar recados, afirmando que desejava fazer as pazes com os Portugueses, mas a tradição diz que por volta dos anos 30 ele se deslocou para a Baixa de Cassanje e desempenhou um papel importante na formação do Estado de Kasanje.
Com esta cumplicidade com o kaza, a Nzinga tinha complementado a sua posição como ngola a kiluanje com um casamento simbólico com o kaza, que lhe deu a posição de kembanza (primeira mulher) do chefe do kilombo. Esta função crucial entre os Mbangala, herdeira das funções atribuídas a “Temba Andumba” das tradições, implicava a preparação do maji a samba e permitiu a Nzinga assegurar a liderança do que restava da banda do kulaxingo, após a sua dispersão em 1619. E também explica a forte influência que ela teve sobre o kalandula e o kabuku ka ndonga durante as décadas de 1640 e 1650.
Esta aliança com os Mbangala também permitiu a Nzinga fazer quando necessário fosse as suas retiradas estratégicas sempre que a pressão dos Portugueses a expulsava dos seus redutos a norte do rio Kwanza. Várias vezes ela fez a sua retirada para estas áreas do Kwanza e além-Kwanza na década de 1620 (uma das vezes, em 1629, fê-lo para a área do kulaxingo na Baixa de Cassanje), e só se deslocou para norte, para o antigo reino da Matamba, apenas depois da sua estratégia de procurar refúgio entre os vários grupos de Mbangala se ter revelado incapaz de proteger a sua posição no Ndongo.

CONCLUSÕES

A história dos contactos dos Mbangala com os Portugueses fornece, e de longe, o mais bem documentado exemplo de formação do Estado entre os Tumundongo.
Com a ajuda dos Mbangala, os Portugueses substituíram o Ngola a Mbande por um ngola a kiluange fantoche em Pungo Andondo, deixando Nzinga a Mbande livre para reivindicar a posse do título a partir da sua nova base da Matamba. Enquanto isso, alguns dos makota que tinham abandonado a kulaxingo criaram novos Estados, como que uma linha defensiva que protegia os Portugueses contra os reinos hostis a norte e a leste. Entre esses novos Estados sobressaiu um mais forte que os outros, o reino de Kasanje, o qual, juntamente com a Matamba, se tornou o principal fornecedor de escravos para o tráfico que constituía o principal suporte do Estado português de Angola até meados do séc. XIX
Todos os reinos que emergiram das cinzas das guerras angolanas, ou seja, a própria Angola, Kalandula, Kabuku, os reis mais tardios de Jinga, Kasanje, Holo e mwa ndonje, assim como vários reinos Ovimbundu a sul do Kwanza, ficaram a dever as suas origens aos governantes do kilombo. E tornaram-se Estados dominantes na Angola do séc. XVIII, substituindo completamente os anteriores reinos do Ndongo, Libolo e Kulembe.

Os Tumundongo, cujos antepassados tinham preservado a autonomia das suas linhagens contra ameaças tão diversas como a dos titulares mavunga do Libolo e o reino centralizador do ngola a kiluange, tinham plena consciência de que nenhum dos novos invasores possuía linhagens do tipo que os Tumundongo consideravam fundamentais para a sociedade humana. Tanto os Imbangala como os Portugueses eram vistos como estranhos vindos de muito longe. Nenhum deles, ao contrário dos tumundongo, fazia da agricultura o seu modo de vida, e ambos roubavam ou comerciavam produtos dos agricultores locais. E ambos diferiam relativamente pouco aos olhos dos Tumundongo, do ponto de vista do impacto que criaram ao entrar em contacto com eles. Tinham de facto interesses comuns, pelo menos em termos de proveitos militares e económicos, e por tal razão se uniram, cada um nas suas precárias condições de sobrevivência, a norte do rio Kwanza, mantendo-se numa firme aliança contra os subversivos intentos das linhagens Tumundongo.
A sul do rio Kwanza o kilombo prosperou no seio das instituições sociais dos Ovimbundu, que se lhes adequavam melhor, e a maioria dos Imbangala encontrou ali apoiantes locais que lhes permitiram manter face aos Portugueses uma atitude distante, ou mesmo hostil, até aos primórdios do séc. XVIII. O que corrobora a necessidade de apoio de que eles careciam para se manterem na sua vida errante longe do perigo de simplesmente desaparecerem como entidades sociais.
Os Mbangala deram aos exércitos Portugueses os seus primeiros sucessos consistentes contra os Tumundongo da década de 1610; permitiram aos funcionários Portugueses iniciar guerras em grande escala; consequentemente ajudaram a capturar gente para o tráfico de escravos. Mas também encorajaram o desenvolvimento do contrabando que atraiu os Holandeses e outros para a costa a norte de Luanda. Enfim, eram os Estados Mbangala que protegiam as fronteiras incertas que separavam os Portugueses dos povos hostis que desejavam vê-los dali para fora.

A “rainha Jinga” e os Mbangala

Quando em 1617, o governador de Angola, Luís Mendes de Vasconcelos, deslocou a fortaleza de Hango para Ambaca, a ideia era atacar de fronte o problema Mbangala, escorraçá-los de Angola se necessário fosse, já que se encontravam acampados a menos de um tiro de canhão e dificilmente poderiam resistir ao poderio dos morteiros lusos. Mas quando chegou ao acampamento mudou de ideias e, pelo contrário, juntou-se a eles numa grande razia que varreu regiões muito para leste, entrando no Ndongo, e para norte, atravessando o Lucala e penetrando no território Kongo. Juntos, atacaram os mais poderosos governantes sob tutela do “ngola a kiluange” dessas regiões, sem excepção, dizimando quanta sanzala encontrassem pelo caminho.
A certa altura a quantidade de escravos capturados era tão grande que o mercado do tráfico legal já não podia dar vazão a tanta quantidade de peças. Abriram-se novas rotas em direcção à costa e apareceram como que por encanto novos portos de embarque, longe da mão pesada do imposto Português. Floriu o tráfico clandestino.
Porém, apesar destes sucessos, militar e comercial, e embora nenhum documento ateste explícita ou implicitamente este cenário, o certo é que os Mbangala do kulaxingo aliados dos Portugueses abandonaram Angola por volta de 1618, com uma quantidade tão grande de tumundongo da região (“escravos e vassalos cristãos do rei português”) assim como mercadorias de variados tipos, que os comerciantes de Luanda só muito dificilmente conseguiram se recompor de tão pesado desfalque.
Enquanto tudo isto acontecia, por alturas de 1617 falecia o “rei do Ndongo”, Mbande a Ngola e sucedeu-lhe de forma violenta o seu filho, Ngola a Mbande, que, passado pouco tempo, quis fazer guerra aos invasores lusos.
Levado pelo seu instinto de jovem conquistador, invadiu os terrenos sob controlo dos Portugueses, mas, evidentemente, o seu projecto era irrealista e depressa ocorreu a sua debandada, seguida da de todas as suas tropas, perante um adversário muito mais bem armado e organizado, para além de dispor da ajuda de bandos Mbangala.


Perante tais argumentos de força, Ngola a Mbande decidiu fazer as pazes com os Portugueses, e estes, em posição de força, exigiram-lhe juramento de vassalagem ao rei português, acompanhado pelo pagamento de bom número anual de escravos e a restituição de todos os prisioneiros lusos e escravos foragidos que se encontrassem em sua posse. Ngola a Mbande aceitou, porque não havia mesmo nenhuma outra solução possível.
Mas, uma vez reposta a paz, o rei não cumpriu a palavra dada, atrasando-se sucessivamente na libertação prometida dos prisioneiros que os Portugueses tinham reclamado. Prevendo naturalmente uma reacção intempestiva por parte das suas forças armadas, lembrou-se da irmã, Nzinga, da sua vivíssima inteligência e da formidável sagacidade de que ela sempre tinha dado provas e convidou-a a ir de visita à sua corte. Só que a irmã não se tinha esquecido da morte do filho e para ela, encontrar-se de novo em frente ao irmão, que lho tinha morto, dizia-se, só se fosse também para o matar.
Segundo João António Cavazzi de Montecúccolo, Nzinga, a futura rainha Nzinga a Mbande (Jinga), era filha “bastarda” do rei do Ndongo, da sub-etnia Tumundongo, nzinga a mbande a ngola e duma “concubina” sua, chamada Guenguela Cacombe (Nganguela ka Kombe), provavelmente de origem Mbangala, que lhe dera também mais duas irmãs, Cambo e Funji, e um irmão, o futuro Ngola a Mbande. A menina depressa mostrou possuir dons que a elevavam acima de todas as outras da sua idade e o rei não se enganou ao lhe proporcionar uma educação apropriada, como reconhecimento da sua sagacidade e grande vivacidade de inteligência, consagrando-lhe, para além disso, mais amor e abençoando-a frequentemente segundo os ritos do reino. Quando já mais crescida o pai entregou-a a uma ama que lhe ensinou à sua maneira todas as subtilezas que tornam a vida sexual, que ela começava a descobrir e a levou a conhecer vários parceiros de sexo, com um dos quais ela engravidou e deu à luz, ainda rapariga, um menino que passou a os olhos da sua cara, a sua mais preciosa jóia.
Imagem: pensotopia.com.br

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