quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (10)



ANTÓNIO SETAS
Quando os makota resolveram matar Kinguri em Mbola na Kasaxe, Kulaxingo fingiu dar-lhes apoio, mas para satisfazer o secreto pedido que Imbe ya Malemba lhe fizera, que não queria que Kinguri morresse de fome, todas as noites ele ia depositar porções de carne das suas caçadas junto de um pequeno buraco da paliçada e acessível ao prisioneiro. Como era de crença geral entre os Tumundongo que os homens sobrevivem apenas 5 dias sem comida, ao sexto dia os makota ficaram muito intrigados quando descobriram que Kinguri ainda estava vivo, e desconfiaram de que além o poderia ter assistido. Os makota nomearam um kota da linhagem de Kandama ka Hite, Kambwuizu, para montar a guarda fora da paliçada e acabaram por descobrir que o fornecedor de alimentos era Kulaxingo e que Imbe ya Malemba era sua cúmplice. Os makota viraram-se contra eles, sobretudo Kangengo, censurando-os asperamente pelos seus esforços de ajudar Kinguri. Quando Kinguri ouviu por acaso esta discussão, que ocorria precisamente junto à palissada, do lado de fora, só então compreendeu que os seus makota o tinham aprisionado e atraiçoado, e lançou uma terrível maldição, que mais tarde matou Kangengo, Mgongo wa Imbe e Kalanda ka Imbe.


Variantes:

1- O encorajamento de Imbe ya Malemba à ajuda prestada por Kulaxindo ao kinguri simboliza a oposição da sua linhagem (Kandama e Kanduma ka Kikongwa) ao plano de assassinato, que foi de facto urdido pelos titulares da outra linhagem, de Kandama ka Hite, de que fazia parte Kambwizu, o kota que apanhou Kulaxindo a deixar comida para o kinguri. Havia portanto duas facções no grupo.
2- Kinguri nomeou Kulaxingo seu sucessor antes de morrer, conseguindo, através do buraco da palissada, colocar no seu braço o bracelete símbolo da autoridade real(o lenge ou lukano).
3- O lukano, milagrosamente, voou do braço de Kinguri no momento em que ele sucumbia e foi enrolar-se no braço de Kuxalindo. Vários makota tentaram retirar o lukano, mas nenhum deles conseguiu.
4- Mal Kinguri morreu, vários pretendentes precipitaram-se sobre o lukano e tentaram pô-lo ao braço, pelo que imediatamente sucumbiram. Mas, quando Kulaxingo pegou nele, e noutras insígnias reais, sobreviveu e foi imediatamente proclamado legítimo herdeiro de Kinguri.
5- Os conspiradores (da linhagem ka Hite), num primeiro tempo conquistaram o poder, mas passado algum tempo perderam-no a favor da linhagem rival de Mbondo wa Imbe e Kalanda ka Imbe, provavelmente ajudado por Kulaxindo e os seus Cokwe/Lwena. Aparentemente, Kulaxindo assumiu uma posição vunga subordinada, tornando-se nessa altura o kasanje (cujos deveres incluíam a condução das relações com os estrangeiros) de Mbondo wa Imbe ou de Kalanda ka Imbe, estreitamente associado aos detentores do poder, mas excluído de todo acesso à autoridade real. Kulaxindo era pois um candidato óbvio para ser apoiado pelos Portugueses para substituir os makota por um candidato mais dócil.
Outras versões, que tiveram origem num período mais tardio, quando os procedimentos políticos em Kasanje requeriam que os makota elegessem os sucessores de Kuxalingo para a posição de kinguri, descrevem-no como vencedor dos relutantes makota, sublinham a legitimidade da sua autoridade na medida em que foi o escolhido, contra vontade, pelos makota.


Logo a seguir à morte de Kinguri, e depois de Kangengo, Mbongo wa Imbe e Kalanda ka Imbe terem tentado usar o lukano e falharam, os restantes makota reconheceram a sua incapacidade de controlar os poderes do kinguri e imploraram Kulaxingo que assumisse o cargo, para os salvar todos da morte. Mas este ripostou, «Eu não sou da Lunda: as misanga (missangas) merecem o pescoço, não os pés». Este provérbio sabu (Tumundongo) representava Kulaxingo como os pés, a parte mais baixa e humilde do povo. Os makota eram o pescoço do bando de Mbangala, portanto a parte mais estreitamente associada com a cabeça, ou seja, o kinguri. O que significa que, segundo o provérbio, a liderança devia ser dos makota e não de Kulaxingo. Porém, segundo o mesmo, os makota insistiram com Kulaxingo e este acabou por aceder aos seus pedidos, fazendo um juramento, «Se eu fizer mal, então que morra também». E, no momento deste juramento, o nzumbi (espírito) deixou o cadáver de Kinguri e entrou no corpo de Kulaxingo. O episódio reflecte e justifica os procedimentos eleitorais em uso em Kasanje, muito mais tarde.
(Esta versão é, basicamente, a explicação da origem do nome Kulaxingo. Xingo significa pescoço em kimbundu e Kula é comer; o nome comemora a derrota dos makota a favor de Kulaxingo)
Seja qual for a versão, os makota de facto opuseram-se a Kulaxingo porque estavam convencidos que seriam capazes de, sozinhos, abolir inteiramente a sua posição. Ademais, embora os dois títulos pudessem vir do mesmo remoto grupo matrilinear - Lucaze na Mwazaza -, Kinguri era Lunda, Kulaxingo não, o seu título vinha de origens diferentes (mas não especificadas), e ele não tinha qualquer direito de tomar para si o lukano de Kinguri.
Kagengo, Mbondo wa Imbe e Kandala ka Imbe sucederam-se uns aos outros, cada um deles ia morrendo vítima da maldição de Kinguri, e os makota compreenderam que não podiam resistir ao herdeiro designado por Kinguri. Foi em desespero de causa que transferiram o seu apoio para Kulaxingo.


Análise:

1) Os detentores de títulos não Lunda, que se tinham juntado ao bando do kinguri em terras Cokwe e do Libolo, e nunca tinham controlado a mais importante posição do kilombo, pois faziam uso exclusivo dos mavunga, acabaram por se apropriar do principal título Lunda
2) Isto significa em termos metafóricos, também, que o kilombo se dissolvera na anarquia, devido às constantes lutas pelo poder.
3) Todos morreram de noite (alusão à maldição). Mas dos três, dois, Mbongo e Kalanda, pertencem à mesma linhagem Imbe, o que indica que o bando se tinha separado em dois grupos principais. Kangengo, o primeiro, pertencia à velha linhagem de Kandama ka Hite, que perdera o controlo em favor de Mbongo e Kalanda ka Imbe, pertencentes a Kandama ka Kikongwa e Kanduma ka Kikongwa.
4) Os detentores destes títulos ainda nessa altura em que encontraram os Portugueses (princípios do séc. XVII) tendiam a unir-se de acordo com as linhas dos suprimidos grupos de parentesco que tinham conhecido na Lunda.
5) A secreta ligação amorosa com Imbe ya Malemba (seguida de casamento), representa a aliança dos Cokwe/Lwena com um segmento, pelo menos, das linhagens Lunda.
6) As ofertas de carne feitas por Kulaxingo representam duas coisas: primeiro, a sua lealdade pessoal para com os makota ; segundo, as obrigações especiais que têm os yibinda para com os chefes políticos.
7) Kinguri morreu, apesar dos esforços de Kulaxingo (e Imba ya Malemba para o salvar, o que justifica e de certa forma legitima o direito de Kulaxingo a tomar a posição de Kinguri, como rei dos Imbangala.

De par com a morte do kinguri, as tradições referem-se também aos primeiros contactos dos Mbangala com os Europeus, contactos que ocorreram quando esta luta pela sucessão ainda dividia o bando.

Imagem: tudosobreangola.blogspot.com

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