ANTÓNIO SETAS
A colaboração dos Mbangala do Norte
O kalandula
A história de Kalamba ka Imbe, da posição kota dos Lunda, kalanda ka imbe, ou kalandula, como passou a ser conhecida, é similar à do kabuku ka ndonga. Segundo a tradição, um detentor do título “kalanda ka imbe” chamado Kaxita (sem outra identificação) jurou obediência como vassalo dos Portugueses, tornando-se “Jaga” Kalandula, durante a conquista de Lukamba. O kalanda ka imbe teria pois proposto a sua ajuda aos Portugueses, convencendo-os de que ele, como legítimo líder do kilombo, poderia ser mais eficaz que o kulaxingo, numa altura em que este já se sentia em perigo com a presença dos Portugueses em Ambaca (Mbaka). Essa ajuda, significando em contrapartida um apoio dos Portugueses aos detentores do título, talvez tivesse precipitado a fuga do kulaxindo para o interior, assim como explica a sua decisão de se apoderar do kinguri, sem dúvida muito útil na sua longa caminhada para leste, deixando o controlo do kilombo ao kalanda ka imbe e outros, que tinham ganho o apoio dos Portugueses, apoio de que o kulaxindo tentara excluí-los.
Durante a década de 1640, Kalandula combateu de par com Kabuku ka Ndonga ao lado dos Portugueses contra a rainha Nzinga da Matamba, a leste. Grande parte da actividade guerreira concentrou-se no controlo de uma rota principal de comércio que vinha da Matamba através do território dos ndembu e chegava até Luanda, onde nessa altura governavam os Holandeses. Curiosa é a maneira como Kabuko ka Ndonga passou a colaborar com os invasores lusos.
Por volta de 1640, o reino da Matamba, centrado no rio Wamba, tinha-se tornado um dos mais poderosos Estados orientais dos Túmúndòngò, sob a chefia da rainha Nzinga, que lutava para restabelecer ali o título ngola a kiluange, contra os “Jaga” Kasanje e os Portugueses, após estes terem colocado fantoches no lugar dos reis originais do Ndongo. Entre 1641 e 1648 ela pôs-se ao lado dos Holandeses, enquanto Kabuku ka Ndonga e Kalandula continuavam a lutar ao lado dos Portugueses.
Mal os Holandeses se apoderaram de Luanda, imediatamente Nzinga viu na sua chegada uma boa oportunidade de obter apoios. Enviou-lhes uma solene embaixada, prometendo amizade e pedindo apenas que eles a aceitassem como aliada. Queixou-se dos Portugueses, é claro, de quem disse que apenas tinha recebido ultrajes e mentiras. Os Batavos aceitaram de boa vontade esta imprevista oferta de amizade, mas ficaram de pé atrás, queriam ver para crer. Enquanto isso, o rei do Kongo, Garcia II também pensou que aquela era uma ocasião favorável e nem se deu ao trabalho de ir falar com os Holandeses, entrou armado nas terras ocupadas, retomou a região entre os rios Lufune e Dande, o que o levou, no entusiasmo da efémera vitória, a escrever, mais tarde, precisamente a 22 de Março de 1643, ao Reitor dos Jesuítas que se encontrava com os Portugueses no arraial luso do Gambo: “(...) E creyame pello Senhor que cremos e confessamos que o meu ânimo não há senão de que se me despegem das minhas terras. E esse he o meu intento propozito firme, que ainda me caiam Rayos heide morrer por libertar os meus”. E perante tão concertada rebeldia, os Portugueses, da retirada estratégica de início ao “ai pernas para quero” a seguir, a fugir, acabaram por ficar pouco mais ou menos acantonados nas Fortalezas de Muxima, Massangano, Cambambe e Ambaka, assim como em algumas ilhas do rio Kwanza.
A situação apresentava-se pois sob promissores augúrios para a rainha da Matamba. Bastaria unir forças e, com a ajuda dos Holandeses, escorraçar os Portugueses para longe do solo pátrio. Mas o que veio a acontecer tinha mais a ver com um pesadelo do que com o sonho lindo de vitória sobre o invasor. Nzinga a Mbande não travou combates unicamente contra os Portugueses, também foi obrigada a lutar contra todos os bandos Mbangala que a eles se tinham juntado, numa aliança intimamente ligada a benefícios imediatos.
Como já referido, durante a década de 1640 o Kalandula combateu de par com Kabuku ka Ndonga ao lado dos Portugueses contra a rainha Nzinga da Matamba, a leste. Grande parte dessa actividade concentrou-se no controlo de uma rota principal de comércio que vinha da Matamba através do território dos ndembu e chegava até Luanda, onde nessa altura governavam os Holandeses. Curiosa, como supracitado, foi a maneira como Kabuko ka Ndonga passou a colaborar com os invasores lusos.
Em 1646, dá-se uma batalha em que Kabuku ka Ndonga é feito prisioneiro pelo exército da rainha Nzinga, algures a leste de Mbaka. A rainha, que também protestava a sua fidelidade às leis do kilombo, poupou-lhe a vida por respeito para com a posição ndonga, cujos representantes ela encarava como sendo seus aliados, mas nunca mais o deixaria voltar para os Portugueses. Entretanto, o povo de Kabuku ka Ndonga escolheu para novo governante o seu cunhado, casado com a sua filha Kwanza, que tinha sido detentor da posição vunga de nomeação, funji a musungo (título que se pode traduzir pouco mais ou menos por “mantimento de exército”), e era um dos chefes guerreiros do bando. Uma vez que ele sabia que o seu antecessor estava vivo, não podia reivindicar plenos direitos e governou como regente, graças à ajuda dos Portugueses e através do apoio da sua esposa, que os Mbangala olhavam como legítima guardiã da posição. Por outra, o facto de se aliar aos Portugueses para combater a rainha Nzinga dava esperança ao povo de resgatar o seu chefe ainda vivo, mas todas as tentativas falharam e o velho rei acabou por morrer na Matamba, sem nunca lhe ter sido dada a oportunidade de reintegrar os seus (Miller).
O novo chefe kabuku ka ndonga lutou ao lado dos Portugueses contra os Holandeses, em 1648 contra os chefes ndembu, e em 1648-49 contra Panji a Ndona, o sucessor de mani Kasanze, próximo de Luanda. Ainda antes da sua morte em 1652 ou 53, os Portugueses honraram a sua fidelidade, concedendo-lhe o título de Jaga, e mesmo “o nosso Jaga”.
O seu sucessor depressa abandonou os Portugueses, para se pôr ao lado da rainha Nzinga sob a bandeira do kilombo. Os Portugueses retaliaram com uma expedição militar em 1655, capturaram o chefe, a esposa (ainda com o nome de Kwanza) e todos os dignitários do kilombo. De pronto enviaram-no como escravo para o Brasil, assim como todos os seus homens (no final de contas, assim como tinham feito com Kasanze, em 1622), e substituíram-no por um fantoche escolhido por eles.
O novo kabuku ka ndonga, liderado por Ngoleme a Keta, lutou fielmente ao lado dos Portugueses contra vários chefes do Ndongo durante o mandato do governador João Fernandes Vieira (1658-61). Depois disso a dependência dos posteriores detentores do título em relação aos Portugueses foi aumentando, acabaram por abandonar o kilombo e por fim, um dos representantes admitiu no seu reino um par de missionários Carmelitas e aceitou o baptismo cristão na década de 1670.
Pela década de 1680 o kabuku ka ndonga tornou-se “um modelo a seguir” de aliança entre os Portugueses e os autóctones. Nesse caso paradigmático, o rei negro alistava os seus súbditos como mercenários nos exércitos portugueses sempre que os funcionários de Luanda requeriam os seus serviços. Necessariamente, em tais circunstâncias o valor dos seus títulos decaía, de tal modo que, por exemplo, os kabuku ka ndonga abandonaram completamente a sua posição Mbangala no decorrer do séc XVIII, numa repetição do habitual padrão de mudanças nos títulos, para reflectir novas fontes de legitimação. O título original adquiriu um novo sobrenome, tornando-se cabulo ka baila (o mais poderoso de todos os chefes ndembu, a norte de Ambaca), conhecido daí em diante por ndembu Kabuku. A mudança indicava que o Fabulo transferira a sua obediência para o mais poderoso sistema local de títulos políticos, as vizinhas posições ndembu, da parte sul do Kongo (“casamento dos títulos ndembu com as linhagens do ex-kabuku ka ndonga).
Quanto a Kalandula, a sua adesão à causa lusitana deve-se a outras contingências. A localização das terras dos dois chefes Mbangala (o território, conhecido por Kitukila, que fazia fronteira com as terras dos ndembu e de Nzinga a norte, e do Ndongo, a sul) na margem norte do Lucala, acima de Ambaca, mantinha-os dependentes do apoio dos Portugueses, uma vez que se encontravam em perpétua ameaça de acometidas por parte dos seus belicosos vizinhos do norte. Os reis do Kongo mataram pelo menos um Kalandula no quadro de uma flagelação geral de chefes fiéis a Portugal. Mais tarde, outro chefe kalandula lutaria contra o ndembu Nambo a Ngongo na década de 1660, acompanhou a expedição portuguesa ao Soyo, no Kongo, chefiada por João Soares de Almeida em 1670, e de novo contra o ndembu mbwila em 1693. Os Portugueses concederam ao kalandula o título de “Ngola a Mbole” ou “Kyambole do rei Português” e forneceram-lhe armas e suprimentos a troco da sua participação em muitas expedições militares ao longo dos séc. XVIII e XIX. Kalanda ka Imbe pertencia a uma das linhagens do título kulaxingo. Algumas décadas atrás, em Mona Kimbundo, o primeiro chefe kulaxingo a integrar o bando errante do “kinguri”, assim como toda a sua gente, havia sido capturado para permitir que os sacrifício de vidas humanas em honra de Kinguri não incluíssem gente da sua própria casta. Mas Kulaxingo, pela sua submissa postura, conseguiu ganhar os favores dos makota, principalmente Mwa Cangombe, Ndonga e Kangengo, os líderes de uma secção do bando, a de Kandama ka Hite, designada para escolher as vítimas que deviam morrer sob os punhais de Kinguri. Ainda antes de o grupo deixar Mona Kimbundu, Kulaxingo tinha obtido o estatuto de kibinda, mestre caçador, e quando regressava de uma caça bem sucedida dava sempre carne aos makota a fim de assegurar a sua permanente boa vontade. Além disso mantinha uma secreta ligação amorosa com Imbe ya Malemba, a mãe de Mbondo e deste Kalanda ka Imbe.
Imagem: business.wfu.edu
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