terça-feira, 4 de janeiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (7)


ANTÓNIO SETAS

A formação dos Mbangala

A evolução crucial para a fase de maturidade do kilombo teve lugar quando os seguidores que restavam ao kinguri, os titulares secundários designados pelo nome de makota, rejeitaram a opressora liderança da posição central Lunda, e adoptaram, como base de uma nova organização política, a associação iniciática guerreira do kulembe, acrescentando-lhe um certo número de posições vunga de comprovada origem Umbundu. A união do kilombo, teoricamente centralizado, com a multidão de posições perpétuas Lunda, permitiu à associação iniciática fragmentar-se e difundir-se rapidamente através das regiões a sul do rio Kwanza, à medida que se formavam muitos bandos separados de guerreiros, agora chamados Mbangala (do radical Umbundu, vangala, que significa ser valente e/ou vaguear pelo território), sob a chefia de detentores de novos títulos subordinados, de origem Lunda. A grande capacidade das posições perpétuas de gerarem novas posições titulares dava azo a qualquer chefe guerreiro que pudesse reunir um número suficiente de seguidores para se libertar das autoridades políticas e linhageiras existentes no planalto de Benguela. Um homem ambicioso podia adoptar a organização do kilombo, reivindicar apetrechos mágicos e um título que derivasse de outro chefe de kilombo, e impor o seu nome como um novo rei Mbangala. Mesmo as posições Umbundu de origem local, como a do kulembe, cuja dependência dos mavunga mostrava que não tinham originariamente explorado a capacidade de nomear posições “filho”, adoptaram então a técnica Lunda e passaram a conceder posições subordinadas, que apareceram nos documentos de meados do séc. XVII. A fragmentação que acompanhou a introdução dos títulos Lunda a sul do rio Kwanza representou o reverso da centralização que os mavunga dos Ovimbundu tinham produzido entre os Tumundongo.

Se recapitularmos a instável história do bando do kinguri, já mesmo antes de ele ter atingido o Kwango, os makota procuraram novas formas de organização política que os libertassem da dependência que, nos termos da estrutura política Lunda, os ligavam ao kinguri. O abandono por parte de alguns titulares ainda no leste, e as partidas mais recentes do mwa ndonje e do munjumbo, confirmavam a gravidade das dissensões que tinham fragmentado o bando. Os seguidores do kinguri já não concediam ao seu líder a lealdade total exigida pelas forças sobrenaturais que estavam por trás do seu título. Gerou-se um clima de desconfiança, e a insegurança daí resultante levou à busca de novos métodos para controlar o seu povo. Isto explica não apenas o seu pedido do ngoma ya mukamba, mas também o facto de ele conceder às linhagens Songo novos títulos, como o kunga, entre outros, e por fim a esta associação com o kulembe. Por outro lado, o kulembe deve ter considerado essa aliança com os belicosos Lunda um belíssimo meio de resistir, tanto à expansão do Libolo como ao avanço do ngola a kiluange para sul. Assim, seguiram-se guerras em que o kulembe e os makota dissidentes lutaram lado a lado contra o kinguri e os seus aliados Songo. As tradições Mbundu (séc. XVII) referem-se as estas guerras como sendo grandes conquistas que se seguiram à adopção do maji a samba pelo kulembe, associado a outros bravos generais que eram todos, à parte uma única e parcial excepção, posições titulares Lunda. “Calanda” era Kalanda ka Imbe(“Caoimba”), “Caete” era Kahete, e “Cabuco” era Kabuku ka Ndonga, um título subordinado ao ndonga, que viera da Lunda com o kinguri. Apenas “Cassa” (o kaza) tinha origens diferentes, originariamente Libolo aparentado com o hango, embora pouco depois se tivesse tornado íntimo aliado dos títulos Lunda
Mais tarde, as tradições do séc. XVII confirmam que o kinguri “tinha morrido” no Ndongo, não em luta contra os portugueses ou contra o ngola a kiluange, mas sim nas mãos dos makota que o tinham acompanhado desde a Lunda. Estes acontecimentos ocorreram na ilha de Mbola na Kasaxe, no alto Kwanza, onde os reis Libolo em tempos idos tinham instalado um dos seus chefes vunga, como guardião das fronteiras orientais do reino. Por essa altura, porém, já o ngola a kiluange tinha conquistado a área e feito dela uma parte do Ndongo. E essa morte significa a abolição do título de origem Lunda pela sua integração nos títulos linhageiros dos Tumundonga, e não propriamente a morte do seu representante individual (cerca das décadas 1550 e 60). Efectivamente, as forças unidas do kilombo empurraram o kinguri para norte e para oeste, afastando-o em direcção ao Ndongo dos centros de força do kulembe, vitória que se deve à explosiva combinação de um bando móvel e sem linhagens, mas detentor do potencial assimilador e estruturador da sociedade iniciática do kilombo, força aglutinadora essa inexistente no kinguri.
Ironicamente, o kulembe parece ter sido uma das primeiras e principais vítimas do kilombo. É que a expansão teve lugar essencialmente sob comando Lunda, e o reino do kulembe, em tempos idos unificado, desintegrou-se em muitos pequenos chefados guerreiros liderados por chefes de kilombo, alguns dos quais emergiram mais tarde como reino Ovimbundu nos séculos XVIII e XIX. Nas proximidades dos rios Kuvo e Longa, durante a década de 1640, alguns chefes de guerra que aparecem referidos em muitos documentos como tendo-se envolvido em lutas uns contra os outros, teriam sido antigos subordinados do kulembe, que se libertaram do seu chefe supremo para lançar novos fundamentos políticos que viriam a dar origem aos reinos Ovimbundu daquela região. O título do kulembe sobreviveu a estas mudanças, mas apenas como posição secundária. E a respeito de todas essas lutas e da queda, ou “morte” do kinguri, as tradições Mbundu focam essencialmente a queda do título pela aplicação de técnicas mágicas especiais por parte dos makota, como sendo a alteração importante que veio a se reflectir no seu modus vivendi.

Como a interminável opressão de Kinguri pesava cada vez mais sobre o seu próprio povo, os makota resolveram dar um passo desesperado: tentariam abater Kinguri e conquistar a liderança do bando para si próprios. Porém, o simples assassinato do rei não destruía as forças sobrenaturais que o protegiam, e, portanto, não serviria de nada. Além dessa aresta, sentiam que não deviam permitir que Kinguri descobrisse a conspiração pois, caso contrário, as suas forças mágicas de protecção, provocadas e enfurecidas, iriam certamente vingar-se, antes de os makota poderem executar os seus planos. Escolheram então, um método baseado no simbolismo do título do rei. O kinguri e os espíritos que o acompanhavam eram vistos como animais carnívoros da floresta (a sede do kinguri pelo sangue era equiparada ao rugido do leão de noite, e o temor que lhe tinham era o mesmo que o que era provocado pelos animais predadores selvagens). Com os Lunda sempre tinham caçado com fossas e armadilhas, os makota construíram uma armadilha simbólica desse tipo, um cercado circular de pesadas estacas, situado na ilha de Mbola na Kasaxe onde estavam acampados nessa altura. O cercado tinha apenas uma única entrada, contrariamente às habituais (para uso corrente das populações) com duas, e um dia, sob pretexto de que os leões que rugiam nas vizinhanças os colocavam a todos em perigo, os makota fingiram estar todos muito preocupados com a segurança de Kinguri e persuadiram-no a entrar no cercado onde, argumentaram, a paliçada de grossas estacas o protegeria do perigo. E Kinguri (cujo radical, nguri, em alguns dialectos de Umbundu significa leão) não compreendeu que a paliçada de pesadas estacas fora feita com a intenção de aprisionar quem eles proclamavam querer proteger. Kinguri entrou no cercado e esperou, enquanto os makota, do lado de fora, procuravam uma oportunidade de fechar e única entrada e deixar o seu rei no interior, a morrer de fome. Mas, como os poderes mágicos do rei lhe permitiam adivinhar qualquer ameaça antes que ela se produza, os makota tiveram que esperar que Kinguri adormeça para fechar a porta da paliçada. Depois desse trabalho feito, todos se mantiveram pelas proximidades até Kinguri morrer de fome. Só depois é que partiram.

VARIANTES:

1)...Os makota aprisionaram o kinguri, mas continuaram a abastecê-lo de comida, dando-lhe, porém, apenas sementes podres impróprias para comer, mantendo-se assim a aparência de lealdade sem a sua substância, e o kinguri depressa expirou.
2)...Os makota cavaram um enorme fosso que cuidadosamente disfarçaram com uma cobertura de folhas e capim para lhe dar a aparência de solo firme. Em seguida colocaram-lhe em cima a esteira cerimonial que o kinguri costumava ocupar em ocasiões formais, e convidaram o rei a receber as suas homenagens na esteira colocada sobre o fosso. O kinguri aceitou, avançou para a esteira e caiu no buraco, onde foi imediatamente enterrado pelos makota.

Imagem: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Zumbidospalmares.jpg

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