terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A “viagem” de Kinguri. Um reino tranquilo nas margens de um rio (FIM)


ANTÓNIO SETAS

Em 1646, dá-se a batalha em que Kabuku ka Ndongo é feito prisioneiro pelo exército da rainha Nzinga algures a leste de Ambaca. A rainha, que também protestava a sua fidelidade às leis do kilombo, poupou-lhe a vida por respeito para com a posição ndonga, cujos representantes ela encarava como sendo seus aliados, mas nunca mais o deixaria voltar para os Portugueses. Entretanto, o povo de Kabuku ka Ndonga escolheu para novo governante o seu cunhado, casado com a sua filha Kwanza, que tinha sido detentor da posição vunga de nomeação, funji a musungo (título que se pode traduzir pouco mais ou menos por “mantimento de exército”), e era um dos chefes guerreiros do bando. Uma vez que ele sabia que o seu antecessor estava vivo, por um lado não podia reivindicar plenos direitos e governou como regente, por outro, o facto de se aliar aos Portugueses para combater a rainha Nzinga dava alguma esperança ao povo de resgatar o seu chefe ainda vivo, mas todas as tentativas falharam e o velho rei acabou por morrer na Matamba, sem nunca lhe ter sido dada a oportunidade de reintegrar os seus. O novo kabuku ka ndonga lutou ao lado dos Portugueses contra os Holandeses, em 1648 contra os chefes ndembu, e em 1648-49 contra Panji a Ndona, o sucessor de mani Kasanze, próximo de Luanda. Ainda antes da sua morte em 1652 ou 53, os Portugueses honraram a sua fidelidade, concedendo-lhe o título de Jaga, e mesmo “o nosso Jaga”.
O seu sucessor, no entanto, depressa abandonou os Portugueses, para se pôr ao lado da rainha Nzinga sob a bandeira do kilombo. Os Portugueses, numa expedição militar em 1655, capturaram o chefe, a esposa (ainda com o nome de Kwanza) e os todos os dignitários do kilombo. De pronto enviaram-no como escravo para o Brasil assim como todos os seus homens(assim de resto como tinham feito com Kasanze em 1622), e substituíram-no por um fantoche escolhido por eles.
O novo kabuku ka ndongo, liderado por Ngoleme a Keta, lutou fielmente ao lado dos Portugueses contra vários chefes do Ndongo durante o mandato do governador João Fernandes Vieira (1658-61). Depois disso a dependência dos posteriores detentores do título em relação aos Portugueses foi aumentando, acabaram por abandonar o kilombo e por fim, um dos representantes admitiu no seu reino um par de missionários Carmelitas e aceitou o baptismo cristão na década de 1670.
Pela década de 1680 o kabuku ka ndonga tornou-se “um modelo a seguir” de aliança entre os Portugueses e os autóctones. Nesse caso paradigmático, o rei negro alistava os seus súbditos como mercenários nos exércitos portugueses sempre que os funcionários de Luanda requeriam os seus serviços. Necessariamente, em tais circunstâncias, o valor dos seus títulos decaía, de tal modo que, por exemplo, os kabuku ka ndonga abandonaram completamente a sua posição Mbangala no decorrer do séc XVIII, numa repetição do habitual padrão de mudanças nos títulos, para reflectir novas fontes de legitimação. O título original adquiriu um novo sobrenome, tornando-se Kabuku ka Mbwila (o mais poderoso de todos os chefes ndembu, a norte de Ambaca), conhecido daí em diante por ndembu Kabuku. A mudança indicava que o kabuku transferira a sua obediência para o mais poderoso sistema local de títulos políticos, as vizinhas posições ndembu, da parte sul do Kongo (“casamento dos títulos ndembu com as linhagens kabuku).
A história da posição kota dos Lunda, Kalanda ka Imbe, ou Kalandula, como ficou conhecido, é similar à do kabuku ka ndonga. Segundo a tradição, um detentor do título chamado Kaxita (sem outra identificação) jurou obediência como vassalo dos Portugueses, tornando-se “Jaga” Kalandula, durante a conquista de Lukamba. O kalanda ka imbe teria pois proposto a sua ajuda aos Portugueses, convencendo-os de que ele, como legítimo líder do kilombo, poderia ser mais eficaz que o kulaxingo, numa altura em que este já se sentia em perigo com a presença dos Portugueses em Ambaca. Essa ajuda, significando em contrapartida um apoio dos Portugueses aos detentores do título, talvez tivesse precipitado a fuga do kulaxindo para o interior, assim como explica a sua decisão de se apoderar do kinguri, sem dúvida muito útil na sua longa caminhada para leste, deixando o controlo do kilombo ao kalanda ka imbe e outros, que tinham ganho o apoio dos Portugueses, apoio de que o kulaxindo tentara excluí-los.
Durante a década de 1640 Kalandula combateu de par com Kabuku ka Ndonga ao lado dos Portugueses contra a rainha Nzinga da Matamba, a leste. Grande parte dessa actividade guerreira concentrou-se no controlo de uma rota principal de comércio que vinha da Matamba através do território dos ndembu e chegava até Luanda, onde nessa altura governavam os Holandeses. Apenas uma vez o kalandula abandonou os Portugueses, quando passou para o lado da rainha Nzinga com kabuku ka ndongo em 1653. Como sobredito os Portugueses capturaram kabuku ka ndongo, mas não foram capazes de resgatar kalandula, nem tão-pouco manipular a sucessão ao trono como era o seu hábito. De maneira que tiveram que negociar. Fizeram-no em 1656 por meio de um tratado com a Nzinga, no qual se estipulava que esta renunciava a uma inimizade de 30 anos para com os Portugueses e devolvia o kalandula à vassalagem destes. Os posteriores kalandula, em associação com os kabuku ka ndongo, participaram numerosas vezes nas guerras dos Portugueses.
A localização das terras dos dois chefes Mbangala (o território, conhecido por Kitukila, fazia fronteira com as terras dos ndembu e de Nzinga a norte, e do Ndongo, a sul) na margem norte do Lucala, acima de Ambaca, mantinha-os dependentes do apoio dos Portugueses, uma vez que se encontravam em perpétua ameaça de acometidas por parte dos seus belicosos vizinhos do norte. Os reis do Kongo mataram pelo menos um kalandula, no quadro de uma flagelação geral de chefes fiéis a Portugal. Outro kalandula lutou contra o ndembu Nambo a Ngongo na década de 1660, acompanhou a expedição portuguesa ao Soyo, no Kongo, chefiada por João Soares de Almeida em 1670, e de novo contra o ndembu Mbwila em 1693. Os Portugueses concederam ao kalandula o título de “Ngola a Mbole” ou “Kyambole do rei Português” e forneceram-lhe armas e suprimentos a troco da sua participação em muitas expedições militares ao longo dos séc. XVII e XIX.
Nzinga, governante da Matamba e pretendente ao título de ngola a kiluange, após a derrota do Ndongo, adoptou o rito do kilombo na década de 1620 e considerava-se a si própria Mbangala. Sempre acompanhou muito de perto as peripécias que envolviam os seus “irmãos” Mbangala, mostrando-se normalmente hostil aos que se associavam aos Portugueses. Mas o seu reino desenvolveu-se de forma muito atípica, embora ela tivesse sido capaz de manter uma oposição às actividades portuguesas em Angola muito mais consistente do que a que lhes opunham os bandos de guerreiros Mbangala oriundos das terras de leste. Nzinga foi a única Mbangala do norte que reivindicou uma autoridade política (certos títulos locais da Matamba) derivada do sistema autóctone de títulos dos Tumundongo, por ser a única a possuir fontes locais de legitimidade. Embora elas fossem pouco seguras, permitiram-lhe comandar o seu próprio povo com maior margem de segurança do que os instáveis bandos Mbangala titulares de exóticos títulos Lunda, que nunca ganharam a confiança das linhagens cujo domínio reivindicavam.
A economia do tráfico de escravos também lhe permitiu conservar uma certa autonomia em relação aos Portugueses até 1656, em virtude de a rota passar pelo território dos ndembu e os Holandeses ocuparem Luanda na década de 1640, ao longo da qual ela deteve um monopólio virtual sobre o tráfico de escravos vindos do interior, em detrimento dos kalandula, que antes eram os principais fornecedores dos Portugueses.
No reino de Kassanje, os sucessores do kulaxindo preservaram um certo grau de independência em relação aos Portugueses, através de alianças com o mwa ndonge e alguns títulos Songo de origem Lunda. Só após 1648, quando a renovada hegemonia portuguesa junto ao litoral restabeleceu uma segunda importante rede de tráfico de escravos em Angola, a oficial (quase paralela à ilegal, que passava pelos ndembu), é que o Kassanje começou a controlar o término (e a fonte) do sistema. A grande distância que separava a Matamba de Luanda permitia aos kinguri de Kassanje manter uma política mais ou menos independente. Além do mais, os Tumundongo orientais do Kassanje manifestaram, ao invés dos ocidentais, um certo respeito pelos títulos Lunda, como ficou demonstrado pela proliferação de títulos aparentados entre os Songo. Kassanje também incorporou uma variedade de posições nativas dos Tumundongo, vindas da área do Libolo. Todas estas condições impediram Kassanje, tal como a Matamba, de ser representativo dos Mbangala, embora eles se reclamassem da sua raiz.
Em 1648 os Portuguese expulsam os Holandeses e a supremacia de Nzinga termina aí, dado que os Portugueses reabrem as rotas para o interior e desviam o tráfico de escravos para Kassanje, que, pela sua simples existência, levou a rainha a se reconciliar com os Portugueses em 1656.
Paixão e morte de Nzinga
Entre as várias fontes de informação sobre os acontecimentos imprtantes ocorridos em Angola no tempo da rainha “Jinga”, grande parte provêm de fontes eclesiásticas, nomeadamente da parte do preciosíssimo António Cavazzi, porém, outras nos chegaram por via de relações dadas pelo adido militar holandês Fuller, visto ele ter sido testemunha ocular de muitos desses acontecimentos. Esse homem lutou ao lado de Minga a Mbande durante alguns anos, viveu parte das suas vitórias, mas também alguns dos seus desaires. Partilhou com ela momentos de euforia, quiçá de “folia”, mas também conheceu momentos de grande desilusão.
Segundo consta, esse lado desolador de Nzinga foi-se acentuando à medida que ela se apercebia que Holandeses e Portugueses era tudo “igual ao litro”, passe a expressão, uns “couve branca” e os outros “branca couve”, ambos exímios manipuladores, facilmente dando o dito por não dito e pródigos, isso sim, em promessas miríficas nunca cumpridas. É igualmente por intermédio de Fuller que chegaram aos dias de hoje testemunhos da «adoração que o povo angolano tinha por essa extraordinária mulher, chegando muitos dos seus súbditos a se vergarem para beijar o chão quando ela se aproximava (…) Para o capitão Fuller, ela era tão generosamente valente que nunca feriu um português depois de este se render, e tratava os seus soldados e escravos como iguais».
Mas a passagem do tempo é impiedosa, e com ela, Nzinga foi lentamente levada a fazer o seu acto de contrição. Com a progressiva perda de energia, de saúde e de confiança nos seus aliados europeus, as suas convicções foram sendo postas uma a uma, exaustivamente, nas gavetas secretas da sua alma. E esta, ontem virada para a terra dos seus antepassados, para a defesa das suas seculares tradições, elevou-se pelo menos na sua vivência do dia-a-dia, para a palavra de Cristo, e Nzinga, já velha, triste e profundamente ferida pela felonia de tudo e todos os que a rodeavam, assim, talvez, como por causa das suas próprias incoerências, acabou por estabelecer um último acordo de paz com os Portugueses.
Esse acordo aconteceu depois da saída compulsiva dos Holandeses de Luanda, em Outubro de 1656. Por essa ocasião, cento e trinta escravos foram trocados pela princesa Bárbara (nome de uma das irmãs depois de baptizada) e deu-se então início a um tempo de tréguas que pronunciavam grandes mudanças na atitude de Nzinga. Esta, aceitou os préstimos da asa protectora e muito influente de António Cavazzi, seu confessor, e dos seus seguidores religiosos “Capuchinhos”, que, a partir de 1657 se aproximaram dela e convenceram-na a voltar à fé cristã e a vestir-se de mulher.
Quem irá ter um papel importante nesta conversão, como já anunciado entrelinhas, será o frei João António Cavazzi de Montecuccolo, conhecido simplesmente por Cavazzí. Com ele a rainha vai trocar cartas importantes. Os frades capuchinhos vão tomar a responsabilidade de edificar uma igreja paga não pela rainha Jinga, mas pela arrependida Anna de Sousa. A igreja de Santa Maria da Matamba é benzida em Agosto de 1663 por Cavazzi.
Aos 75 anos, o “rei”/ rainha Jinga deu por terminado o seu reinado. Os seus últimos oito anos de vida serão os de uma pacífica e devota católica que assegurou a continuidade do reino ao aconselhar o casamento da irmã Bárbara com um general do seu exército. A sua longevidade foi extraordinária para a época. Morreu aos 83 anos, a l7de Dezembro de 1663, na presença de Cavazzi. Mas a memória dos seus feitos e a extrema dignidade do seu porte permanecem como uma referência para todos os angolanos. E para o mundo.
Sublinhe-se que, ao contrário de muitas outras histórias de rainhas africanas, Jinga não foi uma figura lendária. Existiu em carne e osso, há documentos mais que suficientes que o comprovam, entre os quais se contam cartas suas, o que para a época era raríssimo numa mulher africana. Nzinga a Mbande, de facto, tinha sido educada por frades italianos e aprendera a ler e escrever.

Imagem: ocandomble.wordpress.com

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