quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (3)



António Setas

III

A compra do escravo Manoel de Salvador teve lugar no Brasil, coisa de três anos e pico depois da tomada de posse do governador Sousa Coutinho em Luanda. Foi um bico de obra, simplesmente porque na altura em que Silva Porto quis comprá-lo, depois de lhe terem dito que o escravo era Jaga, como esses guerreiros que tinham causado a sua desgraça, já ele tinha sido vendido pelo seu dono, Henrique da Matta, a um capitão do Rio de Janeiro. O ex-proprietário do Manoel explicou-lhe as razões que o tinham levado a vendê-lo. O preto era ladino, atrevido, tinha maus hábitos, e antes de o vender já ele tinha pensado em enviá-lo para o Rio de Janeiro, «junto com outros, também ladinos, que lhe tinham furtado perto de duzentos mil réis de miçangas».
O termo ladino, no Brasil colonial, significava que o escravo assim designado conhecia a língua portuguesa, sabia dos códigos locais e manejava com maestria as regras do jogo da sociedade escravista brasileira. Possuía no entanto todos os defeitos dessas virtudes, sabia safar-se, era capaz de artimanhas e fugas, e tornava-se indesejável por ser ardiloso e não merecer a confiança de ninguém. Geralmente, o que lhe acontecia era ser enviado para outras terras, onde provavelmente acabaria por se revelar ladino novamente. Acontece que o tal capitão quis comprá-lo por ter a possibilidade de o controlar com rédea muito curta, visto que fazia frequentes viagens de barco a Lisboa em busca de peças de roupa a bom preço e «precisava de um da raça deles», afoito e inteligente, como guarda-costas e fiel de armazém, para o acompanhar nessas idas e vindas e facilitar-lhe a vida nos contactos que ele seria levado a tomar em negócios com os gentios. Salvador afigurava-se-lhe com o perfil desejado, por isso é que o tinha comprado. Ao ouvir estas desencorajantes novas, Silva Franco não se conformou com uma simples renúncia, viajou até ao Rio de Janeiro, tentou entrar em contacto com o tal capitão, um certo Gonçalo Fernandes, e conseguiu chegar a sua casa seguindo as indicações que lhe dera o senhor da Matta. Acabou por encontrar a casa e foi recebido pelo Manoel, já ao corrente do seu interesse, que imediatamente o fez entrar, agarrou-o pelo braço e suplicou-lhe que fizesse tudo o que estivesse ao seu alcance para levá-lo para Luanda. Depois largou-o, ajoelhou-se, fez uma prece a Oxalá, ou talvez a Tembanza, mãe de todos os Imbangalas, e retirou-se para ir chamar o seu dono. Passados alguns minutos este apareceu, sorridente. Já sabia do que o tenente-coronel desejava por confidência do senhor Henrique, não havia problema, era só pagar os custos, 45 para a peça, mais as despesas de manutenção, uns 60 mil réis, e o negócio estava fechado. O tenente-coronel torceu o nariz, era muito cacau, discutiu o preço durante meia dúzia de minutos e acabou por dizer que ia pensar. Atrás da porta o Manoel tinha ouvido toda a conversa,«Cem mil réis!?...O homem ‘tá chupá, vô dizê a ele cumé», murmurou. Os dois senhores não se demoraram mais em conversas, dirigiram-se para a porta, o escravo veio-lhes ao caminho e foi abri-la, e em seguida, sob pretexto de ir ajudar o visitante a montar no coche, seguiu-o até à viatura que esperava à porta. «Quando é qu’ embacá Luanda?», perguntou em surdina o escravo, «Eu?, é já para o mês que vem...», «Qual barco?», «Chama-se “Escorrega”, porquê?», «Deixe ‘stá. E mi arranjá tude...». Ajudou-o a subir, fez uma vénia e girou, ao mesmo tempo que os cavalos se punham em marcha.
Passados uns quinze ou vinte dias, Silva Franco recebeu a inesperada visita do Manoel de Salvador. Este vinha acompanhado por uma negra graúda, um mulheraço todo em curvas, «Só pra dá prazê ó siô», explicou, e trazia na mão uma caixa de chifre preto encapada em um pedaço de pano e amarrada com um mastro vermelho e lacrado, e uma carta lavrada no fundo, e 45 mil réis para fazer o seu resgate de cativeiro. O tenente-coronel, que tinha pegado a medo naquelas curiosas oferendas, mais valia não ter pegado nelas, aquilo era um feitiço, mas como o dinheiro estava lá dentro, e ele não acreditava em feitiços, pegou e só disse, «Não chega, é preciso mais dinheiro», e o Manoel a interromper, «Nada. Siô Rodrigues tamém tê mulhé, vai chigá». Mesmo assim, 45 mil réis era muito dinheiro, onde é que o raio do preto o tinha ido buscar? Fez-lhe a pergunta, e o escravo explicou, «Tá vê, meu mano. Tenho irmão aqui no Baziu, tá bem. Muita grana. Eli pagá», «E o capitão, onde está?», «Já não vir. Vem siô Matta. Tá chigá. Vem falá cu siô. É só dá caixinha, eli sabe».
Menos de uma hora mais tarde, de facto, o Henrique da Matta apresentou-se em casa do Silva Franco e explicou-lhe que o capitão tinha passado por uma crise de fúria terrível, quase tinha enviado a tropa à caça do Manoel, mas depois tinha-se acalmado, quando recebeu a visita de uma negra chamada Berenice, com uma caixa de chifre preto encapada em um pedaço de pano e amarrada com um mastro vermelho e lacrado, e uma carta lavrada no fundo. Essa mulher disse-lhe que era dele, sabia cozinhar, fazer quicuiçás e rissoletes de marisco, na cama também era boa, e disse mais, «O Manoel, o pobizinho!, fugiu com medo do feitiço!...», «Mas qual feitiço, aonde, e porquê?», perguntou o Silva Franco. O da Matta olhou para a caixa, «É isso que você aí tem. Essa caixa é minha, e lá dentro tem o meu dinheiro. Você dá-me a caixa, com o dinheiro, e o Manoel é resgatado. Eles acreditam nessas coisas, o capitão também». Silva Franco insistiu, «Sim, mas a caixa do capitão...também era feitiço?», «Era... Não era. Não sei. Não era a minha, como ele pensou, era outra. Mas como ele tem medo do “xingó”, sabe que eu tenho uma caixa assim, e ainda por cima não me pagou o que me deve, não quis tocar. Nem na caixa, nem no dinheiro que a negra tinha dito que estava lá dentro. E também não quis a negra, mandou tudo passear e largou o escravo. Esse aí - apontou para o Manoel -, é que veio a minha casa pedir para ser resgatado por si. Eu concordei se me pagassem os 45 mil réis, e como ele me assegurou que podia ter de volta a caixa com o dinheiro em sua casa, eu vim. Você dá-me a caixa e fica com o Manoel». «Mas ainda uma coisa, quando é que essa caixa desapareceu de sua casa?», «A caixa não desapareceu! Ela sempre andou com o Manoel desde que ele chegou da África. Agora que ele volta para Luanda... como forro, já não precisa da caixa. A caixa é minha, estou-lhe a dizer. Dê-me a caixa». O tenente-coronel olhou para a espada pendurada na parede. Pareceu-lhe ser um bom meio de lutar contra o feitiço, e também ficou com a impressão de que o senhor da Matta, à semelhança do capitão, acreditava no feitiço. Olhou para o Manoel e questionou-se, «Mas em que espécie de sarrabulhada é que eu estou metido?». Deu a caixa ao senhor da Matta, e este, quando se viu com ela na mão, deu corda aos vitorinos, despediu à pressa e desandou. Mal ele saiu o tenente-coronel clamou, «Não quero esta mulher cá em casa», pegou num molho de patacas deu-as à negra, e esta, a sorrir, a baixar e a levantar a cabeça, foi recuando até à porta até lhe bater com a bunda. Virou-se para abri-la, tornou a virar-se, fez mais uns salamaleques e foi-se embora.

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A partir desse dia Manoel de Salvador passou a ser cozinheiro do tenente-coronel Silva Franco. Porém, esse estatuto sofria alguma distorção em relação às pessoas estranhas à casa, porque para elas, e toda a gente estava convencida disso, o Manoel era pura e simplesmente escravo de Silva Franco. Por que razão esta duplicidade? ...É o que vamos tentar descobrir.

Alguns dias depois desta inusitada compra, dono e “escravo”, como previsto, embarcaram na corveta “Escorrega” rumo a Luanda. Todos os embarcadiços passaram mal durante a viagem, com um tempo horrível, borrascas e ondas aterradoras - mau-olhado, na opinião do Manoel, que ia morrendo de medo -, e no meio de tanta desdita uma boa surpresa para todos os viajantes, mau grado o cronista a tivesse qualificado de “esotérica e inquietante”: a presença a bordo da bela Berenice, a beldade que se tinha apresentado com uma caixa de chifre preto encapada em um pedaço de pano e amarrada com um mastro vermelho e lacrado, e uma carta lavrada no fundo, ao ex-dono de Manoel, o capitão Gonçalo Fernandes, negra de corpo esguio e muito belo, alforriada por obra e graça de um carioca chamado Florêncio de Sam Payo, homem rijo e fero, que se propunha invadir Luanda com as suas “imbambas comerciais” e montar uma oficina de alfaiate de luxo.
No decorrer da travessia, o movimento oscilante do “Escorrega” depressa provocou uma espécie de pânico geral, pontuado por uma agonia persistente da Berenice. Esta, que habitualmente exibia uma subtil força de felino, com o seu corpo muito belo a cheirar a fêmea no seu balançar, começou a vomitar tudo o que tinha para vomitar, até os sucos gástricos e bílis, quebrou-se toda, atirou-se para o chão a chorar, a querer morrer, e depois não, a dizer que eram os espíritos, e só se acalmou quando, a dada altura, o Sam Payo lhe trouxe uma caixa de chifre preto encapada em um pedaço de pano e amarrada com um mastro vermelho e lacrado. Daí a asserção do cronista, testemunha ocular do evento, para qualificá-la de mulher “esotérica e inquetante”, certamente depois de já estar altamente perturbado com a sua cara linda, o seu sorriso angélico alcandorado num corpo de sereia, mas sem cauda de peixe, e no seu lugar duas coxas esguias e musculosas a servir de apêndices redondos e sumarentos a um sexo muito resguardado, apenas aberto a solicitações dignas de respeito, isto é, anunciadoras de amparo e, sobretudo, muita compreensão pela sua condição de cativa. Berenice era feiticeira sem ter ideia precisa do que era o feitiço. Pecado não sabia o que era. Gostava de homens da mesma maneira que macaco gosta de bananas. Mas, de corpo e alma, só se tinha dado ao Manoel de Salvador, e a sua própria presença no “Escorrega” devia-se apenas ao facto de desejar a qualquer preço segui-lo, o que a levou praticamente a se oferecer ao Sam Payo, que estava de abalada para a África no mesmo navio que o homem que ela amava. Algumas testemunhas disseram mais tarde ter visto o Imbangala sussurrar coisas e loisas ao ouvido da bela Berenice quando o Sam Payo não estava presente, o que acontecia raríssimas vezes, visto que o carioca sabia que uma prolongada separação da sua cativa significava um par de chifres a juntar ao que tinha servido para fazer a caixa. Enfim, tudo o que veio a acontecer em Luanda, segundo o que rezam as crónicas e os mujimbos, aponta para uma cumplicidade secreta entre os dois recém-alforriados, com o consentimento expresso, ou pelo menos o beneplácito do tenente-coronel Silva Franco.

Imagem: sustentabilidadenaoepalavraeaccao.blogspot.co

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