António Setas
Com o aumento da procura de escravos a busca para o interior aprofunda-se. Comerciantes portugueses, ingleses, franceses misturam-se com os “da casa” e entram em acirrada disputa, o mais das vezes aberta entre estes últimos, os luso-africanos e os mercadores metropolitanos portugueses, com maiores recursos financeiros, que controlavam respectivamente as rotas e o aprovisionamento das caravanas. Esses confrontos tomavam por vezes proporções inquietantes, que levaram um ou outro governador luso a fazer comentários sobre o assunto. Assim, chegou até aos dias de hoje o comentário feito pelo governador António Mello, nos princípios do século XIX, que afirma, a propósito desses comerciantes, «Poucos são abastados, mas quase todos negoceiam com cabedais alheios e pouca lisura, (...) enriquecem com épocas de seca e fome.»
De facto, quando chegava o tempo de cacimbo a situação agravava-se por causa da falta de água e de produtos das lavras. A água. Esse sempre foi o grande problema de Luanda, e não só, também o de muitas outras regiões de África, a partir do Sahara para sul.
O Sahara, deserto imenso, espécie de rolha ressequida a separar a África do resto do mundo e a isolar os povos de raça negra das civilizações do norte, razão principal da proliferação nas sua terras de tantos magos e feiticeiros, ilamba, imbanda e outros umbanda, adivinhos e “rain makers”, senhores dum poder espiritual que lhes permitia entrar facilmente em contacto com as forças ocultas da natureza, os génios da terra que habitam nas florestas, e os da água, oriundos das fontes dos rios, ituta, yanda, e outros, que descem os rios, como o Kwanza, e até podem ir para o mar e influenciar marés e correntes, regular o fluxo das fontes onde nasceram e providenciar, quando necessário for, a abundância das águas dos rios, ribeiras e lagoas.
Os Portugueses, que nessa altura se instalavam pouco a pouco em terras do Kongo e Ndongo, de Luanda a Mbaka, do rio Zaire às terras da Kisama e de Benguela, e pouco mais, especializaram-se na venda de água durante o período do cacimbo, a estação seca, fazendo concorrência aos tradicionais “rain makers”. Espalharam-se ao longo das rotas comerciais e montaram balcões de venda de toda a espécie de produtos para os que faziam o tráfico e calcorreavam as sendas tortuosas da escravidão, sem se esquecerem, quando chegava o cacimbo e a inevitável falta de água, de fazer alarde da existência nas suas barricas de grande quantidade do precioso líquido, que eles comercializavam a preços exorbitantes. Para eles era o tempo das vacas gordas, quer dizer, da água e dos produtos agrícolas vendidos com grandes benefícios. Resultava deste procedimento, por causa da contenção de capitais, a morte de muitos escravos na espera de embarque, por falta de alimentos, doenças e debilidades diversas.
Em Angola, mais precisamente, em Luanda, e também no Brasil, a onda renovadora do “pombalismo” chegou com a nomeação de governadores imbuídos de ideias novas, dispostos a implementar «os traços civilizatórios nessas regiões do mundo». O objectivo político desses novos administradores era guiar as sua acções para realizações “modernizantes” nas áreas genericamente apelidadas “periféricas”. Em palavras mais pequenas isto quer dizer que era necessário civilizar os pretos. Uma ideia brilhante, realmente inovadora, por considerar a passagem do negro ímpio a cristão como uma milagrosa transformação do autóctone em agente da civilização ocidental.
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No dia 6 de Junho de 1764, dia de aniversário de el-rei D. José, tomou posse em Luanda do seu cargo de governador o nobre senhor Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho. Defensor convicto das ideias do Marquês de Pombal, tinha dado provas das suas capacidades anteriormente, ao servi-lo nas guarnições de Bragança, Miranda, Chaves e Almeida, onde entrara em campanha. Da família dos condes de Redondo, era provavelmente trineto do famoso governador de Angola, Fernão de Sousa, e possuía uma casa agrícola no Brasil, que praticamente se desfez em nada durante o tempo em que ele esteve em Angola. Sacrificara-se em nome da Coroa, e ali estava ele, seguro e convicto de levar avante a sua alta missão civilizadora.
Entretanto, das Américas, e em particular do Brasil, chegavam cada vez mais pedidos de envio de escravos, e não havia em África “peças” que chegassem para satisfazer tantos pedidos. Como que para agravar a situação, os luso-africanos que tinham acesso aos postos administrativos e militares na Câmara da cidade de Luanda beneficiavam de um conjunto de regalias que os colocavam numa manifesta posição de prioridade, geradora da maioria dos conflitos locais, não só entre eles, mas também com os distintos grupos do tráfico, detentores ou manipuladores de algumas das rédeas da gestão do negócio escravista. Vinha o cacimbo e a coesão social, se é que existia, rebentava pelas costuras perante os impunes abusos de comerciantes gananciosos. E, perante esta confusão de interesses materializada em repetidos confrontos, o governador pombalino reparou que não havia leis em Angola, e que as que eram aplicadas, genuinamente portuguesas, sofriam curiosas distorções, recombinavam-se para adaptar os procedimentos jurídicos a uma ética que se legitimava através dos costumes locais. “Uma rebaldaria!”, opinava o novo governante.
Urgia legislar. Mas a grande questão era determinar até que ponto as leis ocidentais podiam ser aplicadas eficazmente naquele contexto não ocidental. Num meio de desigualdades tão gritantes as regras jurídicas ultrapassariam inevitavelmente a definição de constrangimento, imposto com imparcialidade a todos os cidadãos da sociedade sem olhar a compadrios ou castas, para servir apenas de máscaras a muitas racionalizações dúbias em benefício de juízes, advogados ou outros detentores de interesses próprios, que, na opinião do próprio governador, apenas eram os “que tudo querem fazer seja de que maneira for”.
Mesmo assim, Sousa Coutinho decidiu pôr em prática as directivas pombalinas, decretando, num primeiro tempo, normas destinadas a deixar o grande comércio aos grupos verdadeiramente portugueses e o comércio secundário aos grupos locais, terminar com o contrabando, atribuído aos franceses e ingleses, e dirigir os benefícios do tráfico para o erário público. A sua grande preocupação era pois “racionalizar o comércio”, o que no seu entender passava pela eliminação pura e simples da organização tradicional dos grupos de parentesco, o repúdio do direito costumeiro e dos ritos consagrados a factos de primordial importância para os autóctones, numa palavra, a modificação radical do seu dia-a-dia, ou seja, do mais profundo modo de ser do povo de Angola, aparentemente sem lógica, simples expressão da sua condição de “bárbaros”. Acreditava, mordicus, que as normas de organização por ele impostas resolveriam esse caos, trazendo para o mundo civilizado seres que a ele manifestamente não pertenciam.
História do Jaga “Bango-Bango”
“Bango-Bango” foi capturado pelos Portugueses em 1624, e pouco tempo depois foi-lhe permitido instalar-se a norte do rio Kwanza, em Ilamba, ficou privado do apoio dos outros Imbangala do Sul e desistiu do modo de vida dos Imbangala para se tornar um leal kilamba, ou seja, capitão das tropas auxiliares africanas que combatiam ao lado dos exércitos dos Portugueses. Prestou leais serviços a alguns governadores de Angola, nomeadamente contra os Holandeses, para os quais ele fingiu desertar em 1641, para mais tarde se lhes escapar de volta para os Portugueses, depois de lhes ter causado imensos prejuízos. O rei de Portugal, mais tarde, recompensou os seus serviços, “fazendo-lhe mercê” da Ordem de Cristo; por essa ocasião, o antigo Imbangala “Bango-Bango” aceitou o baptismo cristão, recebendo o nome de João Bango.”
Imagem: grupoescolar.com
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