domingo, 6 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (1)


António Setas
(“encapada em um pedaço de pano e amarrada a um mastro vermelho e lacrado”)

(...) E havia um homem, acrescentou o kimbanda, que também lhe complicava a vida perto da Teresa… claro!, essa era boa... o Surdo, só podia ser o Surdo. Se ele soubesse que os ruídos nocturnos que o incomodavam eram os que a cama da cozinheira fazia, misturados com os gritos que ela dava quando o Manoel a cavalgava nos pináculos sexuais que ambos alcançavam, cairiam todos os carmos e as trindades de África, e o Manoel... o melhor seria ele fugir para o Brasil.
É que o Surdo também dava as suas piruetas eróticas com a ajuda da Teresa, mas diga-se, num estilo muito mais sofisticado. Ao contrário do Manoel, que tinha, como toda a gente sabia, força na verga, o Surdo, de nacionalidade portuguesa, quase nos setenta anos e trinta de África, depenicado no sangue por várias crises de paludismo e uma próstata quase tão inchada como o seu ego, deparava-se constantemente com dificuldades para chegar a vias de facto com uma mulher, mesmo com a Teresa, que primava pela sensualidade contagiante. Por isso, demorava-se nos preliminares, de que fazia o prato quente do seu repasto carnal, temperado com todas as especiarias que a Teresa tinha em reserva só para ele, e contentava-se, depois dos frugais petiscos calientes, com uma sobremesa da sua lavra, um rápido e pouco seguro coito, numa fuga para a frente até atingir os píncaros de um orgasmo teatral. A Teresa interpretava então o papel de uma cantora de ópera e gritava como se estivesse no palco da Scala de Milão. Ela era, realmente, o último rebuçado da vida do Surdo, e se lho tirassem ele seria capaz de matar.

DEDICATÓRIA

Dedico este livro à minha razão de ser,
as minhas duas filhas, Lia e Elsa.


À laia de prólogo

ADVERTÊNCIA

Que os historiadores e a História, ciência fascinante da autenticação de probabilidades, me perdoem. Neste trabalho fiz exactamente o contrário, servi-me de factos verídicos, baseados em documentos oficiais datados, declarações de testemunhas, e outras relações de que a história se serviu para lhes dar o devido crédito, para compor uma narrativa imaginária. Quase todos os relatos que se seguem são construídos a partir de factos históricos, mas alguns deles, sobretudo ao princípio, tiveram lugar largas dezenas de anos antes da data a que corresponde esta narrativa. Sem vergonha nenhuma dei-me à ousadia de os transferir para o futuro, reconstituí-los, dar outros nomes, estatuto e origem aos protagonistas, e entrar a pés juntos numa ficção de que muito me orgulho, por ter conseguido inseri-los perfeitamente no contexto histórico a que eles se referem.
O importante é que esta “obrazinha” seja interpretada como uma homenagem à resistência dos povos negros perante a invasão das suas terras pelas etnias de raça branca, num confronto tão desigual, que qualquer uma das suas vitórias sobre o invasor, por mais pequena que tivesse sido, ressalta aos olhos de todos os que se consagram ao estudo da história como um feito de armas assombroso.

O Gaga (“Jaga”) Calando tinha o cabelo muito comprido, enfeitado com muitos colares de conchas de bamba, muito apreciadas entre eles, e à volta do pescoço um colar de mazóis, que também são conchas que se encontram na costa e são vendidas entre eles pelo valor equivalente a 20 xelins cada uma; próximo da cintura usava umas contas feitas de ovos de avestruz. Usava também um tecido de palma fino como seda à volta da cintura. Seu corpo era esculpido e cortado com desenhos secos ao sol e todos os dias se untava com gordura humana. Tanto através do nariz como através das orelhas usava pedaços de cobre com cerca de duas polegadas de comprimento. Trazia o corpo sempre pintado de vermelho e branco e tinha sempre vinte ou trinta mulheres que o seguiam quando se deslocava; uma carrega com os arcos e as flechas; quatro delas seguem-no com taças por onde ele bebe, e quando o faz todas se ajoelham, batem palmas e cantam. (Descrição do rei Imbangala Kalanda ka Imbe).
I

Chamava-se Manoel de Salvador, não do Nosso Senhor, mas da Bahia, cidade que ele viu pela primeira vez na vida quando chegou ao Brasil, anos atrás, a bordo de um grande barco à vela, devia ter então uns nove, talvez dez anos, não se sabe bem ao certo. Nessa altura o seu nome ainda era o de nascença, Nzenga ka Imbe, que apontava para uma descendência relacionada com os terríveis “Jagas”, de facto nome impróprio dado pelos portugueses aos Imbangalas, de que até a rainha Nzinga a Mbande (“Jinga”) se orgulhava de ter como raiz.
Manoel não gostava de falar dos seus antepassados, «Não dá jeito lembrá», dizia ele, com o seu sotaque brasileiro tamisado de kimbundu, e todos os que eram da sua roda compreendiam. Os Imbangalas tinham má reputação, não só entre os residentes de Luanda, mas também entre os mundongo da periferia, agarrados à cidade como mexilhões à rocha batida pelo mar, depois de terem fugido dos seus kimbos na esperança de escapar à ferocidade dos guerreiros do kilombo (acampamento que servia de base para as acções guerreiras dos Imbangalas, e, por arrasto, nome dado à sua instituição política. Etimologicamente, campo de circuncisão dos antigos Ovimbundu do kilombe, reino florescente no século XV).
Esse povo, no fundo, não era povo nenhum, mas sim uma mistura de povos reunidos por uma força que se dizia sobrenatural, e lhes dava a reputação de serem invencíveis. Chegasse um bando de Imbangalas perto de um acampamento mundongo – esses sim, um povo unido, que vivia nas imediações dos rios Kwanza e Lucala –, e de imediato era o pânico, o povo fugia numa corrida desordenada, num salve-se quem puder angustiado, mesmo antes do ataque se realizar, anunciado por cantos, danças e grandes fogueiras. Até os portugueses, armados até às algibeiras, tinham medo deles.
Manoel era “peça”. Com a idade que tinha ao tempo da sua chegada ao Brasil, acompanhado pela mãe e um irmão, nos fins da década de 1740, nem isso era, pois a palavra “peça” designava o escravo, coisa do seu proprietário, e ele, ainda menino, era uma meia-peça, “cria” sem valor.
Na sua mente tudo era muito vago, não se lembrava direito, sabia somente que depois de ter desembarcado foi vendido a um chamado Henrique da Matta, caixeiro da Companhia de Pernambuco, com quem viveu durante alguns anos, e que, mais tarde, já adolescente vivo e vivido no regaço das negras maduras, frutos doces da sua terra, tinha sido vendido a um capitão do Rio de Janeiro, que por sua vez o vendera ao seu actual patrão, um português residente em Luanda, nessa altura de passagem pelo Brasil, prestes a regressar a Angola depois de infortúnios diversos sofridos na diáspora sul-americana, com estórias de matar bicho, putas e sacos de ouro à mistura, um tal tenente-coronel João da Silva Franco. Lembrava-se também de que chorou de alegria quando a âncora da corveta “Escorrega” caiu no fundo de areia da baía de Luanda, no dia 5 de Maio de 1768. Esquecera-se de tudo o resto, ou não tinha vontade de se lembrar.

Não se pode dizer que o seu novo dono, esse tal João da Silva Franco, fosse grande espingarda, apesar de ser militar de carreira. Ia nos seus sessenta anos de idade, mas já uns tempos atrás tinha pedido a reforma antecipada em virtude de problemas de saúde, reforma essa que lhe fora prontamente concedida pelo simples motivo de que a verdadeira razão não era a saúde, mas sim uma série de contratempos que, em parte por sua obra, tinham chegado a abalar a governação portuguesa em Angola. E, como só causava transtornos e anunciava desaires, o governador desse tempo, D. António de Vasconcelos, pediu-lhe para ele abandonar as lides militares, «Deixe-se de trazer problemas à Coroa, retire-se. É melhor para todos». E João Franco retirou-se. Recebeu algum dinheiro, “por inestimáveis serviços prestados à Coroa e comportamento exemplar”, e meteu-se em negociatas de alto voo que o conduziram até ao Brasil.
As razões que tinham levado o governador a pedir-lhe que desse a sua demissão prendem-se, primeiro, a uma desastrosa campanha que a companhia na qual ele estava incorporado organizou, uma expedição que navegou para sul em direcção ao Kunene, à procura dos derradeiros sobreviventes de bandos de Imbangalas. Encontrou alguns, mas por toda a parte foi recebida com manifesta indiferença e apoios dos indígenas não recebeu por assim dizer nenhum, o que dificultava sobremaneira o projecto lusitano de progressão para o interior das terras do sul de Angola.

Imagem: pt.wikinoticia.com

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