domingo, 20 de fevereiro de 2011

Militares garantem a transição. Marechal Tantaui assume transição no Egipto


As revoluções têm coisas do arco-da-velha, já dizia Franz Fannon; "Uns pensam na revolução, outros fazem a revolução e outros ainda beneficiam da revolução", é o que está a ocorrer com o ministro da Defesa, até então um amigo de peito do ditador Hosni Moubarak, mas que no mudar dos ventos, soube manter neutralidade bastante, capaz de ganhar a confiança dos populares. Este general formado nas academias americanas e homem de confiança do Pentágono (Ministério da Defesa dos Estados Unidos), foi o único dirigente do regime com coragem para enfrentar os populares eufóricos na praça Tahrir Square. Falou com os manifestantes, tranquilizando-os que não viraria os tanques e as armas contra eles, face às suas legítimas reclamações. Os jovens agradeceram, ovacionaram-no e ele passou a ser um verdadeiro aliado, reunindo a partir daí capital para desempenhar um papel activo neste período de transição.

Willian Tonet*

O viajante que desembarcar, hoje ao Egipto e souber que um general tem as rédeas do poder, poderá pensar tratar-se de um homem desligado da ditadura de Hosni Moubarak. Engano.

O marechal Mohamed Tantaui, de 75 anos de idade, foi um fiel cabo-de-guerra e amigo do antigo presidente, logo conhecedor melhor do que ninguém das entranhas de um regime corrupto e violador das liberdades democráticas.

A única diferença entre os demais membros do defunto regime, foi o marechal Tantaui ter enxergado atempadamente os novos ventos da história que não justificavam o sacrifício de mais vidas inocentes e o derramamento de sangue do povo. Uma fonte de F8, no Cairo disse que Moubarak, começou a vaticinar uma inversão do seu mando, quando numa reunião decisiva, do Alto Comando Militar das Forças Armadas, que deveria decidir, pelo avanço dos canhões e tropas contra os manifestantes, o ministro da Defesa, levantou-se, bateu a pala, ao então comandante-em-chefe, dando meia volta em retirada, seguindo-lhe dois comandantes de ramos importantes.

Ao ser chamado pelo chefe da Casa Militar da Presidência disse, que não mudaria de opinião, permaneceria fiel ao seu amigo Moubarak, mas não viraria, igualmente canhões para derramar sangue contra o povo egípcio.

Esta foi a primeira grande vitória dos jovens manifestantes, que face ao comportamento do exército passaram a considerá-lo um herói da democracia, por escancarar, igualmente, a porta de saída de Moubarak, que viria a consumar-se no 11 de Fevereiro de 2011.

Com esta atitude patriótica o exército, por ausência de partidos políticos fortes e líderes unidos, os militares assumiram o poder pacificamente e com naturalidade para gerirem o período de transição, numa atitude, unanimemente assumida e aceite pelos manifestantes.

O povo demonstrou vontade hercúlea de quebrar as grilhetas da opressão e abrir um novo capítulo de legalidade, liberdade e democracia plena, rejeitando uma terceira via. Assim, na transição só haverá dois poderes: o Exército e os cidadãos. Será difícil a coabitação, por não haver quem possa medir um possível acirrar de desentendimentos entre estas duas novas forças, uma organizada e disciplinada e outra com vários tentáculos, mas ainda assim muitos acreditam ter sido a única possível, capaz mesmo de possibilitar o levantamento das tendas da Tahir Square, por parte dos militares.

Foi o acordo possível, por a oposição ainda estar muito fragilizada e os principais políticos estarem renitentes em aceitar um acordo para assumir uma liderança, nesta fase. "El Baradei mantem uma grande unanimidade, mas ele não acredita muito nos militares, por durante estes 30 anos terem dormido com Moubarak, mas neste momento, em função de tudo foi a melhor escolha, até por o exército, diferente da Polícia ter estado do lado do povo", justificou ao F8 Hammed, um dos principais mobilizadores das manifestações.

Assim sendo, não restou outra alternativa ao marechal Tantaui, na sua primeira medida, que não fosse a dissolução dos principais bastiões da ditadura do seu amigo Moubarak, que eram o Parlamento e a Constituição (esta última feita à medida e semelhança de Moubarak, por sinal número 56, por sinal ainda com uma corte de constitucionalistas mercenários de França e Inglaterra, pagos a peso de ouro, pelo então regime, para elogiá-la, como referência no Médio Oriente. Agora vemos de que referência se tratava...). No sistema legislativo egípcio caía, também, o Conselho da Shura (anciãos e as duas Câmaras do Parlamento).

Depois disso, os militares, prometeram a realização de eleições dentro de seis meses, a criação de uma comissão eleitoral independente e a supervisão do pleito por organizações credíveis das comunidades nacional e internacional.

No plano internacional prometeram respeitar todos acordos assinados, tranquilizando desta forma, ao mesmo tempo que recebiam garantias, quer do exército como dos manifestantes de não permitirem a substituição de uma ditadura de Moubarak, por outra da Irmandade Mulçulmana, defensora da Sharia, rejeitada pela maioria dos jovens egípcios defensores de maior democracia, liberdade e cidadania.

RISCOS DE MILITARIZAÇÃO DA LEI
Com o poder nas mãos dos militares, pode-se correr o risco da quebra dos compromissos assumidos com os manifestantes, que deram quase um cheque em branco ao marechal Tantaui. E, para muitos a pulga por detrás da orelha, começou a morder, quando no comunicado da nova junta militar se via uma excessiva concentração de poder, nas mãos do novo homem forte. Isso foi o motivo de alguns jovens se manterem na Tahrir Square e noutros pontos da cidade barricados, com receio de reversão da vitória alcançada.

Os militares no seu texto disseram ter conferido ao Marechal Tantaui as funções de presidente no interior e exterior do país, a chefia do Conselho Supremo das Forças Armadas e que este órgão legislará por decretos inapeláveis. Ora sem Constituição e com leis ordinárias haverá um vazio na aplicação da justiça, com o risco de os tribunais comuns se converterem em militares. Mas a enorme influência americana, não ficou de lado neste comunicado, como se o porta-voz, fosse um aluno ou admirador do pai da Declaração da Independência dos Estados Unidos, Thomas Jefferson, quando, no segundo parágrafo, numa cópia quase que perfeita se lê: "o Conselho Supremo das Forças Armadas acredita que a liberdade do ser humano, o império da lei, a fé e o valor da igualdade, a democracia plural, a justiça social e a erradicação da corrupção constituem as bases da legitimidade de qualquer sistema de governo que dirija o país na próxima era (...); também acredita que a dignidade da nação é tão-só o reflexo da dignidade de cada um dos seus membros, e que os cidadãos livres, orgulhosos da sua humanidade, são a tábua mestra de uma nação forte".

Jurídica e constitucionalmente, são palavras bonitas, mas os militares estarão em condições de as aplicar e respeitar. Só o futuro dirá.

Quanto aos passos subsequentes o Conselho Supremo das Forças Armadas garantiu a nomeação de um comité independente, integrado por especialistas e políticos de reconhecida competência e independência, para reformarem a Constituição suspensa e adaptá-la à realidade de um verdadeiro sistema democrático. Mas uma grande maioria de jovens e políticos defendem uma limpeza geral ao texto constitucional, face a imagem impregnada de Mubarak e do seu regime, que visava a sua perpetuação no poder. Recorde-se, que a própria Constituição havia agregado o estado de excepção estabelecido no período militar e de partido único, estabelecido em 1981, pelo ex-presidente e que os militares, nesta fase, parecem dispostos a não abrir mão desse artigo de excepção, sob argumento da situação de instabilidade o justificar.

No entanto existe um compromisso da aprovação da nova Constituição ser antecedida de um referendo, com base num senso populacional, para determinar, na realidade qual é a população eleitoral, que não existia no tempo de Moubarak, pois muitas vezes votavam, até os mortos, que eram os verdadeiros autores das maiorias de 80 a 90% das intenções de voto.

GOVERNO SUSPENSO E NO ACTIVO
Os militares curaram também de suspender o governo, interditando vários ministros incluindo o primeiro-ministro de se ausentarem do país, por sob eles recaírem suspeições de corrupção, mas, nesta fase e até a nomeação de um outro executivo se manteriam em funções. Reunido na sua primeira sessão no 12, o antigo e em funções primeiro-ministro, Ahmed Shafik, nomeado, por Moubarak à 31 de Janeiro, numa tentativa de amainar os ânimos da população, disse, pese os incidentes que conduziram o derrube do ex-presidente, haver normalidade no país e "empenho do seu executivo, e que não efectuará grandes alterações no método de trabalho, até a nomeação do seu sucessor. Para tal estreitará a sua acção governativa com o Conselho Supremo das Forças Armadas".

Até hoje não se conhece o paradeiro e o estado actual de saúde do antigo ditador, que vê multiplicar-se pelo mundo o confisco da astronómica fortuna roubada aos cofres do Estado. Quando questionado, o seu calife, Shafik, disse ter conhecimento que o mesmo se encontrava na sua casa de férias no Mar Vermelho, na residência de Sharm el Sheij, mas desconhecer o paradeiro do ex vice-presidente, Omar Suleiman.

A PUNHALADA FINAL NO DITADOR
O dia 10 de Fevereiro ficará marcado na história dos manifestantes e do exército egípcio por ter sido, aquele que, ao final de 17 dias de revolução, assistiu um jovem oficial, Hassan al Roweny, abandonar a disciplina dos quartéis, descer a calçada e subir, num palanque improvisado da Tahrir Square, para emprestar a sua solidariedade aos manifestantes e retirando-a a Moubarak. "Cantemos o hino do Egipto", pediu quando pegou o microfone para se dirigir aos milhares de populares. Depois, de forma eloquente, da praça lançou um apelo para dentro do regime de Moubarak: "Tudo o que querem se cumprirá". Após esta frase foi o delírio e a ovação: "Roweny, Roweny, Roweny, corre com Moubarak"...

Estas declarações e a sua convicção catapultaram a crença popular de as horas estarem a chegar rápido para anunciar a nova aurora: a renúncia do ditador.

O comandante do Exército egípcio, Hassan al Roweny, ao deslocar-se à praça e considerar legítimas as reivindicações dos manifestantes estava a dizer que a maioria da tropa estava farta de Moubarak e era tempo de ele partir, caso ainda quisesse ter alguma consideração e respeito, por parte dos militares, para não ser humilhado na partida.

" O povo está no desemprego, tem fome, exige mudanças, pela corrupção e enriquecimento de uns poucos. Todos nós devemos ouvir esse clamor e exigir que Moubarak aceite a partida voluntária como a melhor saída, honrosa e inteligente, para ele!" O aviso foi dado ante a ovação da multidão, porque horas depois chega a notícia da renúncia. "Há mais de 48 horas que ele já estava fora do Cairo na sua residência no Mar Vermelho, não fosse o diabo tecê-las, com garantias de protecção do ministro da Defesa Marechal Hussein Tantaui.

É verdade que a posição dos militares era e foi ambígua, neste processo, porquanto, durante mais de 30 anos defenderam o regime, que proporcionou a muitos enormes riquezas, permitindo-lhes a criação de lucrativas empresas, na qualidade de "generais-empresários" e a necessidade de terem de defender, a disciplina militar, a constituição e a soberania que reside no povo. Contra todos os riscos optaram pela segunda, por reflectir os novos sinais dos tempos.

EUA & o 10º maior exército do mundo
Reconheça-se ainda o facto dos militares terem estado, também, pressionados pelo dever de lealdade aos Estados Unidos, que contribuem anualmente para a manutenção do exército egípcio com 1.300 mil milhões de dólares, para além da formação garantida aos altos oficiais. Como se pode verificar o Exército do Egipto é, na região e no mundo, um dos que mais recebe ajuda americana, desde 1979, quando recebeu mais de 2 mil milhões de dólares. Em 2010, o exército recebeu mil milhões de dólares, enquanto os programas de desenvolvimento se ficaram por uma ajuda de 184 milhões.

A pedra de toque dessa astronómica ajuda está para chegar este ano, com o fornecimento de um milhão e duzentos tanques de guerra M1A1 Abrams, enquanto entre 2012 a 2013, a construtora Lockheed Martin Corp, fornecerá 20 aviões de combate F-16C/D, actualmente em construção. Recorde-se ter sido o Egipto o primeiro país árabe a comprar aviões F-16, símbolo das alianças políticas da América.

O Egipto é considerado como tendo uma das dez maiores Forças Armadas do mundo, com mais de 468.000 efectivos e 479.000 na reserva, sendo o exército Terrestre composto por 340.000 militares, o alistamento voluntário. A marinha está equipada com quatro submarinos colocados em zonas estratégicas, para além de 3.723 tanques de guerra a maioria de última geração. As Forças Armadas são também o maior empregador, uma vez acolher no seu seio muitos jovens antes no desemprego, que lhes garante comida e roupa.

QUEM SÃO OS NOVOS HOMENS FORTES DO EGIPTO
O Marechal Mohamed Husein Tantaui, ministro da Defesa e agora chefe do Conselho Supremo das Forças Armadas é ou foi o mais fiel, como nenhum outro, amigo de Hosni Mubarak, durante o seu consulado, sendo também a preferência do Pentágono (Ministério da Defesa americano). Este veterano militar de 75 anos de idade, casado e pai de 3 filhos, é ministro da Defesa desde 1991 e tal como o ex- vice - presidente Omar Suleimán, teve um papel importante na guerra de Yom Kippur contra Israel em 1973, feito que lhe fez nunca mais parar na ascenção militar.

A fidelidade deste militar ao regime nunca foi questionada, até que ante a pressão popular e a degradação da imagem do regime decidiu inverter o seu papel, colocando-se como voz credível, junto dos americanos, israelitas e manifestantes. Tanto assim é que nos últimos dias foi ele quem negociou com o secretário de Defesa americano, Robert Gates, o plano de saída da cena política de Mubarak.

CHEFE DO ESTADO – MAIOR GENERAL DAS FA SAMI HAFEZ ENAM
O segundo homem forte na nova estrutura do poder é o chefe de Estado Maior das FA, general Sami Hafez Enan, que, paradoxalmente desde o dia 25 de Janeiro se encontrava em Washington à frente de una delegação militar, reunido com altas patentes do Exército americano. Este dado havia passado despercebido por muitos observadores, mas na política não há coincidências, logo a visita não foi mera casualidade, uma vez com o corte da Internet e a recusa de Mubarak negociar com os manifestantes, os Estados Unidos, como principal financiador do exército egípcio teria de ter a mão de semear um oficial da sua confiança e ao que parece este esteve presente para o relato pormenorizado...

OS NOVOS ROSTOS CIVIS
A maior potência regional na África do norte, felizmente não está presa aos velhos tubarões da política como Mohamed el Baradei ou Amr Musa, para desempenharem um papel decisivo na fase de transição. Hoje e a manifestação foi disso um exemplo, o novo Egipto conta com cerca de 30 jovens profissionais, que amam o seu país e dominam as novas tecnologias de informação das redes de Internet, principalmente do Facebook, o correio electrónico que foi a mola impulsionadora das maiores manifestações espontâneas de sempre.

O líder deste movimento da Revolução Verde, que visou resgatar a cidadania amordaçada é sem dúvidas Wael Ghoneim, um jovem executivo, responsável pela direcção Comercial da GOOGLE no Médio Oriente e Norte de África. Casado com uma americana, Wael é ideologicamente identificado com a esquerda liberal, que condena a sharia e as formas de islamização da sociedade, pugnando pela democracia e cidadania activa, como forma dos cidadãos controlarem os actos do poder, evitando a corrupção institucional, como a que vigorou no Egipto por mais de 30 anos.

*No Cairo

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