sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (10)


António Setas

Inconsciente do perigo que o ameaçava, o Manoel prosseguiu na sua senda, sempre em busca de apetrechos que o valorizassem. Essa tendência para o protagonismo, sem levar em conta o meio hostil que o rodeava, era o seu calcanhar de Aquiles. Indiferente a risotas e comentários críticos, continuou a vestir-se como um branco. Comprou um calção de linhagem, uma camiseta de seda, e continuou a exibir-se de modo notório por essa falsamente casta Luanda, na realidade a fervilhar na quentura da sensualidade e do desvario.
Entretanto, no seu púlpito, o governador Sousa Coutinho escrevia cartas atrás de cartas a pedir ajuda à Metrópole, mas esta ignorava os seus requisitos, e todos os seus esforços concentraram-se nos meios próprios de que ele dispunha em Angola, a principiar pela sua imensa energia, determinação e senso do dever, no sentido de dar alguma credibilidade à obra civilizadora do reino de Portugal, sob a bandeira da cristandade. Com tantos bandos publicados, tanta lei nova, o povo de Luanda sentiu-se nem que fosse um quase nada protegido e começou a tentar cultivar uma espécie de pundonor que só podia agravar o caso do Manoel. As pessoas olhavam-no com cada vez mais desconfiança, e nada passava despercebido em seus actos. O silencioso cerco de que era alvo desde os primeiros tempos em que ele começara a vestir-se como gente civilizada apertou-se, apertou-se, e um belo, corria o ano de 1771, em plena estação das chuvas, foi apanhado em flagrante delito de roubo em casa do Machado da Quitanda, o Surdo, e imediatamente levado para a prisão, sem outra forma de processo.

Durante todo o translado do auto de exame e de corpo do delito, a que foi submetido, dos 54 depoimentos entre testemunha e referidos, o foco era sempre como ele se vestia. Os depoimentos eram generosos na descrição dos detalhes das vestimentas de Salvador, nas sedas e linhos. E além de tudo, na descrição dos factos envolvendo esbanjamento de dinheiro. (...) Algumas das testemunhas chegaram perto do juiz com uma única declaração “muito bem vestido e asseado para um escravo”.

VII

Mais espantoso do que a maneira de vestir do Manoel de Salvador, talvez tivesse sido o processo judicial lavrado a fim de julgar o seu delito. Foi coisa nunca vista antes em Luanda, pois normalmente quando um escravo ia parar à prisão, por causa de roubo, o seu destino estava de antemão traçado: era chicoteado, por vezes marcado a ferro em brasa e enviado para o Brasil. E esta!, ir incomodar funcionários do governo, homens de lei, escriturários, contínuos, e sobretudo um juiz e seus assessores por causa de um miserável escravo!!?
Na opinião de quase toda a comunidade europeia esse julgamento era pura estupidez, gastar dinheiro mais nada, numa perca de tempo para condenar um escravo que pela sua própria condição já estava condenado de avanço. Incompreensível. Esse Sousa Coutinho também!... queria ser protagonista ou quê?!
Não, o governador pombalista não tinha vontade nenhuma de ser protagonista, era simplesmente um humanista sincero, e se é verdade que por vezes proferira palavras de maneira agressiva e racista, ofensivas para a dignidade da população negra, também ninguém poderá negar que muitas vezes ele formulara opiniões profundamente críticas sobre os seus compatriotas, demonstrando ser um fino observador de uma cultura muito diferente da sua, respeitando-a nos limites das normas morais que a sua formação cultural e religiosa lhe permitia. Seria tão fácil enviar de requitó o Manoel para o Brasil! Mas ele opôs-se a essa decisão, por uma única razão: nada provava que o Manoel de Salvador tivesse cometido qualquer roubo em casa do Machado da Quitanda. “Que se julgue esse escravo se não há provas concludentes para condená-lo automaticamente”. Foi essa a decisão do Senhor Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho. Cumpra-se.
E cumpriu-se. O Manoel, perante a população inteira de Luanda estupefacta, a maior parte dela escandalizada por ser dada oportunidade a um escravo de poder defender-se, foi julgado pelas razões que se seguem e constam nos autos:
“Em flagrante delito, foi achado e apanhado pela Ronda militar em casa de Manoel da Silva Machado Palhares, com os instrumentos de duas facas (...).”
Quer dizer, houve aparente violação de propriedade privada, e o homem tinha duas facas nos bolsos. Mais nada. Não tinha saco para levar os produtos do alegado roubo, não manifestou nenhuma intenção de fugir, não opôs resistência à acção dos soldados da ronda. Crime ou delito?!... Qual crime?

Instaurada a acção penal, o Manoel defendeu-se, afirmando que tinha ido a casa do Machado da Quitanda, o Surdo, “para lhe dar um recado a pedido do seu dono, não fora com o ânimo de o roubar ou de o matar (...)”. E que depois fora passear com o seu matafumo, a fazer horas para ir dormir com a negra Teresa.
O Surdo, no meio da assistência, levantou-se para bravejar, pegaram nele, obrigaram-no a sentar-se e a audiência prosseguiu.
Verdade ou não, que ele tivesse ido a casa do Surdo a pedido do dono não tinha muito a ver com o caso, como de imediato se pode inferir, visto que ele foi apanhado muito mais tarde, depois de ter passeado com o seu matafumo e dado umas boas miadelas de gato para poder ser recebido pela Teresa. E, sempre a tentar defender-se, o Manoel explicou que, como o alfaiate-taberneiro chegara de improviso, ele tinha-se escondido debaixo da cama, onde a Ronda o apanhou. Mas... e a Teresa, onde é que estava? Isso não consta nos autos, porque a negra devia estar em trajes menores, ou talvez completamente nua, pouco importa, pronta a recebê-lo, e tão obscenos pormenores não cabiam em foro tão digno como um tribunal, fosse ele constituído para julgar um mísero escravo. Tudo bem, mas o facto é que ele tinha sido apanhado em casa alheia sem consentimento do proprietário, o que é crime, como explicar tal atrevimento? E o Manoel espetou mais uma facada no orgulho do Surdo, ao revelar que muitas vezes tinha ido a casa dele para se encontrar com a Teresa e nunca tinha surgido problema nenhum, porquê desta vez? Nesse preciso momento o alfaiate-taberneiro “minotaurizado” levantou-se outra vez, conseguiu dar dois passos, disposto a dar uma carga de porrada nesse negro bangão e atrevido, felizmente as pessoas que estavam ao seu lado seguraram-no uma vez mais, o juiz Bernardo Nunes Portela bateu com o martelo em cima da mesa, relembrou à assistência o respeito que se deve à Justiça, «Isto não é uma feira, é um tribunal!», bateu outra vez com o martelo na mesa e os ânimos acalmaram-se. E só então se abordaram os verdadeiros motivos da presença do Manoel de Salvador naquele tribunal. «Mas...se não foi roubo, de onde é que vinha o dinheiro para comprar roupa fina, e distribuir pelas negras da Praça do Pelourinho, da ilha, e mesmo para dar à escrava Teresa?» O da Quitanda fez mais um gesto para se levantar, seguraram-no, e ele sentou-se a resmungar.
A pergunta era boa, só que não tinha resposta. Como poderia o Manoel explicar que o dinheiro que ganhava provinha de negócios escuros com o ilustre mwene Mussulo e com dois capitães-mores assaz respeitados na praça de Luanda? Para sua defesa começou por explicar que o dinheiro que dava para pagar todas as suas extravagâncias era o que o seu dono lhe dava, o que não convenceu ninguém, porque toda a gente sabia que o tenente-coronel era pobre, e levou o juiz a relembrar-lhe repetidas vezes que só podia falar com verdade, “pois se mentisse teria consequências.” Ao que o arguido ripostou, afirmando que nunca tinha usado “veste e calção de chamalote e de guingão e de bretanha”, e que só vestia “jaleco de chamalote, desses que fora acusado de usar”, numa tentativa para centrar as criminações do tribunal no que lhe parecia ser o mais injusto fardo que se abatera sobre a sua pessoa, a culpa de se vestir bem e ser aprumado. Mas o juiz não foi na sua conversa, continuou a pedir-lhe que não mentisse e explicasse de onde vinha o dinheiro para tantas expensas. Vendo-se encurralado, o Imbangala partiu para uma outra explicação, o dinheiro vinha-lhe do seu irmão, no Rio de Janeiro, mandava-lhe dinheiro e ouro em pó, “e com isso, ele, Salvador, podia comprar as roupas e ter moedas de ouro e prata.” O problema foi que não apareceu ninguém a confirmar os seus ditos, e muito menos a sustentar ser o transportador do dinheiro e do ouro em pó, produtos de origem mais que suspeitosa nas mão de um negro. Pelo que o Manoel enviesou, disse que isso tinha sido em tempos idos, e que ultimamente o dinheiro que possuía vinha da venda de esteiras e canudos que mandava por um amigo seu, para o Rio de Janeiro. O “amigo” marinheiro citado por Manoel de Salvador, de facto o seu irmão Miguel João, teve medo de se meter nas maranhas da Justiça e enviou no seu lugar um outro Miguel, que foi chamado a depor e negou que tivesse feito qualquer transacção desse tipo. Ao ver as coisas tão mal paradas, e ao ser advertido uma vez mais para dizer a verdade, o réu não se poupou a meter o dono no barulho, e respondeu que os seus amigos do Brasil traziam-lhe sempre uns cinco a dez mil réis da venda de canudos e cachimbos que ele mandava para os Brasis “e que seu senhor sabia dessa negociação”. Silva Franco confirmou essa alegação!
Interrupção de audiência. As incógnitas eram tantas que urgia averiguar de onde elas vinham.

Imagem: gaxetaveneta.com

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