sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (4)


António Setas

Com o seu regresso a Luanda, de mãos a abanar, carrancudo e meditabundo, amaldiçoando a sua má-sorte, o tenente-coronel Silva Franco tinha razões de sobra para andar de trombas viradas para a vida. A sua carreira militar tinha sido esse já citado fracasso de que toda a Luanda falava em surdina, e a sua demissão parecia-se muito mais com uma auto-bofetada do que com a corajosa e dignificante renúncia voluntária, alvo principal do seu alarde, que lhe permitia ainda sair de casa com a cabeça levantada. O pecúlio que recebera da Coroa portuguesa tinha caído num poço sem fundo do Mato Grosso, depois de ter pairado nas alturas, em tentativas infrutíferas para alcançar as miragens de um Eldorado inacessível. No entanto, diga-se em abono da verdade, de início sua iniciativa não carecia de lógica cartesiana, em moda nesse tempo. Ele sabia que havia ouro nas terras do interior do Brasil, tinha homens fiéis dispostos a acompanhá-lo, também com direito à sua parte, claro está... tinha a rota traçada, sabia onde estava o bagunço, sabia também quem deveria contactar para chegar “à fonte”, homens seguros e idóneos, e assim, corajosamente, tinha enveredado pelas sendas promitentes do Mato Grosso, em busca de ouro em pó. Só que se esqueceu de que nesses remotos sítios impera o Malígno, o Diabo em pessoa, metamorfoseado em mulher, padre, homem político importante ou indigente, tudo lhe serve. Vale a pena contar a história, a todos os títulos edificante e digna de reflexão.

Como planeado, as coisas correram menos mal até ao momento em que o tal ouro em pó, que ele se propunha comprar por dez réis de mel coado o quilate, se lhe escancarou em frente dos olhos. Era um saco grande, com puríssimo pó, mais de 70% de ouro, que seria dele contra pagamento a pronto em moedas de ouro e prata do reino de Portugal. O tenente-coronel pagou o ouro e escondeu-o de noite, a altas horas, num buraco que fizera no mato, perto do acampamento que tinha levantado para concluir o negócio. Mas o seu homem de confiança, o escravo Fagundes, que tinha o sono leve, topou o sítio onde o dono escondera o saco, e na sua cabeça passou um filme em que a vedeta principal era a negra Berenice, veja-se a coincidência do homónimo (ou será que não era coincidência?), e viu-se ao lado da sua amada, dono de uma fazenda rica, a viajar em caleche, com escravos a abanar folhas de bananeira, cozinheiras a servir-lhes os repastos, enfim, “uma vida igual à dos brancos”, nem soba lhe chegaria aos calcanhares!...Mas não, não podia fazer isso, estava contra os seus princípios de obediência a um dono que era bonzarrão e displicente. Aguentou, deitou-se e continuou a sonhar com caleches, fazendas e escravos ao seu serviço. De madrugada, ainda o sol não se tinha despegado da linha do horizonte, apareceu-lhe a quente Berenice, lânguida, afamada de sexo, que se abriu para ele como uma ostra pronta a ser devorada. E ele devorou, e tornou a devorar, até ficar vazio, estatelado na cama, exausto. No fim, a moça disse-lhe, «Vamo fugi. Tenho sítio onde podemo ficá.» Fagundes levantou a cabeça e olhou para a negra. Tão linda!...«Fugir!?, tá maluca!»... «Vamo!». Fagundes pensou no saco cheio de ouro, nas folhas de bananeira a abanar, pensou na vida...era muita bufunfa! «Aonde?», «Em Ilhéus. Tenho tio, terra boa. É prá nói, vem só.» Fagundes pegou nele, em si próprio é o que se quer dizer, meteu a coragem nas mãos, não havia enxada, não havia pá, não havia nada ali ao lado, e escavou a terra no sítio onde estava escondido o saco com o ouro do seu dono. Pegou nele e fugiu com a negra.
Não foram longe. Nessa mesma manhã, a favor de uma paragem para comer qualquer coisa, na aldeia de Tipiruacu, estavam eles a comer uma sopa, apareceu de flagrante o Fragoso, chefe de coisa nenhuma e de tudo, porque não havia nada em que mandar e ele mandava em tudo o que ultrapassasse o nível do pensamento da planta do mato. Falou pouco, só disse, «Tá fazê aqui o quê, pêto sujo?» O Fagundes ia para se levantar, mas não teve tempo, o Fragoso matou-o no movimento. Depois pegou no saco e na Berenice e desapareceu do olhar indiferente dos clientes da velha Piluca, ex-prostituta convertida em dona de casa de pasto, sem nenhum prejuízo para a prostituição, que continuava a exercer-se nos quartos do primeiro andar do seu albergue.
Quando o tenente-coronel Silva Franco deu conta do desaparecimento do seu saco de ouro e do Fagundes, de pouco lhe serviu procurá-los, quer dizer, depressa encontrou o Fagundes, mas morto. Do saco com o ouro nem cheiro tinha ficado. A Piluca disse-lhe que a tinham assaltado. A polícia (?) apareceu para ver se havia mais alguma coisa para roubar. E foi assim que o tenente-coronel Silva Franco regressou do Rio de Janeiro, com uma mão atrás e outra à frente, guardando nos seus dentros uma réstia de felicidade por não ter perdido tudo, se considerarmos que a sua vida, mesmo assim, era um bem precioso.
Agora tinha que se desenrascar, fosse de que maneira fosse.

“ O idioma dominante é o ambundo. As senhoras costumadas a fazerem-se entender às suas escravas por esta linguagem, são verbosas nas conversações familiares, mas mudas nas polidas assembleias(...). Os homens falam português e são elegantes no ambundo”. “Nos arrabaldes a cidade, a religião é mescilânica, composta da católica, da maometana, e da pagã (...)”

IV

Depois de o “Escorrega ter fundeado na baía de Luanda, os passageiros desembarcaram e cada um foi à sua vida, Silva Franco com o seu “escravo” novo, agora ao lado do que tinha vindo a correr de casa até ao cais para recebê-los - o Eusébio de Paulo, um rapagão de 26 anos de idade, homem de mão e segurança -, e lá foram, ambos carregados com as biquatas trazidas do Brasil; o Sam Payo levou a sua Berenice pela mão; o restante povo seguiu o seu destino.
Nesses momentos que se seguiram à chegada do navio, espectáculo digno de ser visto era o grande número de pipas de geribita brasileira, de todos os tamanhos, a serem levadas pela cidade rumo às tabernas, que “constituíam duas terças partes dos edifícios da Cidade”. Espectáculo imutável mal chegasse um barco do Brasil carregado de uma boa quantidade de pipas. Estas, no preciso momento em que eram desembarcadas encontravam comprador e desapareciam das ruas de Luanda nesse mesmo dia. E era então que se viam os escravos carregados, comerciantes e taberneiros de par com homens letrados e militares, bandidos e putas, padres e investidores de fundos a dispersarem-se pela cidade e a desaparecerem nos seus recantos de acolhimento. Mas o que mais se via, de longe, eram os taberneiros, especialistas na venda dessa famosa geribita, “agoardente extraída das fezes do Assucar, e por isso de menor preço do que a extraída da Cana doce”.
Silva Porto tinha casa na ilha de Luanda, na Xicala. Quando lá chegaram, arrumaram a mercadoria e em seguida o dono quis mostrar a cidade ao Manoel e aproveitar a ocasião para ir de visita ao sôr Manuel da Silva Machado Palhares, conhecido por “Machado da Quitanda”, ou, se o quisessem ralar, por “O Surdo”, porque por mais que o solicitassem nunca descia os preços, um velho amigo seu, português, de Guimarães, a caminhar para os setenta, ao mesmo tempo dono de uma boa loja de roupas, alfaiate e taberneiro, o tudo na mesma casa. Tinha sido um dos poucos que apoiara o tenente-coronel aquando das suas desfeitas militares, «Isto é uma terra de loucos, ninguém pode estar seguro de nada», tinha ele dito na altura para explicar o falhanço do ex-candidato a herói da pátria. Apreciavam-se, tinham respeito um pelo outro. Festejaram o reencontro num abraço, enquanto o Manoel se fazia pequenino num canto.«Quem é aquele?», perguntou o logista-taberneiro, «É o meu novo escravo», sussurrou em jeito de confidência Silva Franco, «vou ver se o consigo meter a pumbeiro. Fala português, é esperto», «Assim seja, amigo». Entretanto, a favor da animada conversa que se seguiu, vinda do seu canto foi-se aproximando a negra Teresa, que de imediato tinha topado no negro Manoel uma “peça”, que poderia perfeitamente convir para apertá-la na cama. Enquanto os comerciantes continuaram a falar, a comentar a viagem e as mudanças que se operavam em Luanda por causa desse tal Sousa Coutinho, a Tereza e o Manoel, com muito, muito cuidado, acabaram por fazer uma espécie de junção, e iam trocando impressões que arribaram a uma inequívoca conclusão: mal possas vem e eu sou toda tua, mal possa cá estarei, e tu serás toda minha. Pouco tempo depois, esvaziada a caneca de vinho, que tinha sido servida a pedido do Machado para festejar o regresso do amigo, os dois homens despediram-se, prometendo-se rever em breve.

Pouco a pouco, o “escravo” Manoel começou a fazer o seu casulo. Depressa a negra Teresa caiu nos seus braços; a bela Berenice não ficou mais de uma semana em casa do Florêncio de Sam Payo, desapareceu misteriosamente sem deixar rastro, mas o Manoel sabia onde ela estava.
Entretano, Silva Franco passou progressivamente a dar-lhe mais liberdade, quando se deu conta de que as suas caminhadas no mato, ou noutro sítio qualquer, pois ninguém sabia ao certo para onde ele ia quando desaparecia da vista dos luandenses, eram fontes de receitas surpreendentes. Alguns meses mais tarde, após vários eclipses, o preto começou a aparecer em público com um à-vontade que ofuscava muita gente. Questões embaraçosas circulavam de boca à orelha a propósito de tão despropositada postura, e sobretudo da desfaçatez do dono, que não tugia nem mugia e deixava o seu escravo fazer tudo o que lhe apetecia.

Imagem: andrielli.pbworks.com

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