quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (7)


António Setas

De início, o Manoel tinha simplesmente proposto um plano que mais não era do que o legado da sua ascendência Imbangala, súmula das lições das histórias que a sua mãe e os seus irmãos de raça lhe contavam e lhe tinham ensinado a pensar como um guerreiro do kilombo. Nessas lições, aprendeu que um dos mais mortíferos estratagemas de guerra dos seus antepassados consistia em incutir confiança ao inimigo, dando-lhe provas de afecto e de subserviência, para depois atacá-lo de surpresa e, no mínimo, tirar-lhe todas as forças e esmagá-lo. Concebeu pois, nesse intuito, a melhor recepção possível aos ingleses, com grandes manifestações de alegria, festas, batuque, prendas, para depois poder propor-lhes, na melhor altura, quando eles já estivessem bem presos ao isco, uma monumental churrascada, com cantos, danças e muitas mulheres bonitas, em honra do capitão, com o objectivo de atrair quase toda a tripulação do barco à praia. Enquanto isso, uma boa meia dúzia de ndongos carregados de homens em armas aproximar-se-iam do bergantim pelo lado do mar e tomá-lo-iam de assalto. E mesmo antes que os ingleses se dessem conta da cilada em que tinham caído e tentassem reagir, cairiam sobre eles centenas de negros armados, a começar pelos que se encontravam ao lado de cada marinheiro inglês, seguidos pelos outros, até aí escondidos atrás das árvores e dos penedos, e na água do mar, mais dois para cada um dos marujos, sem contar os que estariam em reserva para o que desse e viesse. Não podia falhar.
Na primeira viagem ficou decidido que seria prematuro proceder à operação; na segunda, que talvez fosse melhor fazê-lo na próxima; na terceira nada se fez, faltava isto, faltava aquilo, era perigoso demais...lentamente se esfumou a ideia de realizar esse feito de armas. O Manoel bem fez tudo o que pôde para que a sua ideia fosse avante, chegou a comprometer-se com alguns homens de um outro mwene, o da Corimba, foi à barra do Kwanza pedir apoio aos mais velhos do Kakulu (sacerdotes do culto dos “génios” da ntureza), projectou como se deveria fazer o ataque num exercício de manobra simulada, mas quedou-se pela impotência própria à sua condição de homem isolado num antro de ganância. Chegou mesmo a ser humilhado e espancado pelos pumbeiros, que, de repente, começaram a ver nele um empecilho para o negócio.
A sua última chance era a sabedoria dos mais velhos. Virou-se para o mwene Mussulo e mostrou-lhe o que o velho chefe já via perfeitamente, ou seja, com esses pumbeiros era um fartar vilanagem, mas só para eles, nada para os outros. Meteu veneno na conversa e convenceu o mfumu a vata a agir. Na vez seguinte em que os ingleses apareceram, tudo correu como de costume até ao momento em que os bergantins zarparam. Depois, foi o diabo. O pumbeiro-mor, o que gaguejava inglês, mais dois outros, atraídos pelos chorudos lucros, que tinham vindo com ele e ali tinham pousado como moscas em bosta de boi, começaram a distribuir as peças de fazenda e as missangas que os ingleses tinham deixado, mas o mwene Mussulo disse que não valia a pena. «Essa agora!?, porquê?», perguntou o poliglota, «Porque desta vez tudo isso é nosso. Saiam!» O pumbeiro-mor olhou para os dois acólitos, deu uma vista de olhos pela assistência e reparou que o ambiente era francamente pesado. Dois olhos muito grandes, sobretudo, incomodaram-no sobremaneira, os do Manoel, que ali estava a relembrar as humilhações sofridas e parecia não estar disposto a conversas. O melhor pareceu-lhe ser levantar-se - nessa altura estava sentado na areia e por demais vulnerável – e pedir desculpas pelo incómodo que tinha causado. Levantou-se, ia para abrir a boca, sabe-se lá para dizer o quê, e saltou lá de trás o Manoel. «Meu filho da puta, anté vai pagá porrada que deu. E esse dóis tamém». Saltaram mais quatro em cima dos outros dois, e levaram-nos para a praia. A correr atrás deles foram os mais novos, e as mulheres, e mesmo os kotas, só para ver. E viram: os dois acólitos foram mortos, ali mesmo, na areia da praia, o pumbeiro-mor, que era um latagão de quase dois metros tinha conseguido escapar das mãos do Manoel. Atirou-se ao mar e começou a nadar para longe da trilha luminosa que a lua, quase a colar-se ao horizonte, fazia reflectir nas águas do mar. Atrás dele foi o Manoel, a nadar, a nadar, e desapareceram os dois da vista dos mirones. Passaram alguns segundos, lentos como minutos, até que se ouviram os barulhos de um estranho farfalhar do mar nessa noite sem vento, de águas paradas, um farfalhar que cresceu e depois lentamente se esvaiu para se transformar em silêncio. Silêncio de morte. Enfim, chegaram como o passo a passo do desvendar de um mistério os ruídos das braçadas do vencedor do duelo. Só podia ser o Manoel, tão certo e seguro era o seu ritmo. Saído das águas do mar ergueu-se o atlético corpo do guerreiro Imbangala, e nas suas mãos, pendurada nos dedos, estava uma orelha do pumbeiro-mor.

«Quando gastava com as grandezas, era do que lhe traziam os seus amigos do Brasil em que faziam cinco ou dez mil réis e que mandava para os Brasis seus canudos e caximbos e esteiras pelos seus amigos de que lhe vinha o produto e que seu senhor sabia dessa mesma negociação»
(“A vida é um simples jogo, mais nada, cujo resultado final é do conhecimento de toda agente: a morte.”- palavras de um pumbeiro)

V

Nesta aventura, Manoel alcançou o seu segundo patamar de alforriado, ao chegar a casa do seu dono e ser posto no olho da rua por ausência prolongada sem justificação. Tal gesto era a prova de que Silva Franco não o considerava como escravo, pois se assim fosse ter-lhe-ia dado umas boas vergastadas e posto a ferros. Manoel saiu, correu para as traseiras da casa, e lá estava o seu matafumo a abrir-lhe a porta. «Espera, espera», fez o Manoel, e saiu, desta vez por sua própria vontade, a correr. O Eusébio ficou à espera, cansou-se de esperar e desandou, mas deixou a porta encostada porque sabia que o seu irmão devia voltar. Fez de conta de que nada se tinha passado e continuou a fazer o trabalho que até esse momento o ocupava, varrer o quintal. Apareceu à porta das traseiras da casa o tenente-coronel, «Não viste o Manoel?», «Qual Manoel, patrão?», «Burro!». Foi até à porta do quintal, abriu-a, e apanhou um susto. Deparou-se com um negralhão escondido atrás de um enorme pacote de roupa e tecidos finos. Grande quantidade. «Entre, entre», disse, sem saber de onde lhe vinham as palavras. O negro era o Manoel, claro está. Entrou, pôs o pesado pacote no chão, ergueu-se e, de taxa arreganhada, disse, «Sou eu, patrão». O tenente-coronel olhou para ele e apenas foi capaz de sorrir.

Como fruto destes benefícios obtidos à margem da quase inexistente lei angolana, o Manoel passou a dispor de grande liberdade de manobra. Saía de casa, entrava, ia e vinha quando lhe desse na real gana. O negócio parecia ser fácil, mas não era. Os pombalinos, que tinham começado a deixar as suas marcas em Angola a partir do final da década de 1750, agora, depois da chegada de Sousa Coutinho, exerciam um controlo judicial muito mais influente, o que levava muitos comerciantes a dizer, “O governador tem a mania de fazer leis que só criam distúrbios no comércio”, dado que até aí não estavam habituados a coisa nenhuma, a não ser à lei do mais forte. Contudo, houve coisas que mudaram. Os capitães-mores dos presídios, por exemplo, começaram a ser chamados à ordem. Até essa data, qual governador qual carapuça!, quem mandava nos presídios e feiras atinentes, nos povos ligados às feiras, nos pumbeiros de passagem e comerciantes da zona, eram eles, mais ninguém. Constando a D. Sousa Coutinho o despotismo que os capitães-mores dos presídios praticavam a favor da sua Regência, principalmente para adquirirem riquezas, editou o famoso Regimento dos Capitães-Mores dos presídios, em 24 de Fevereiro de 1765, para que servisse de guia às suas condutas, estabelecendo que no fim dos seus governos se tiraria uma exacta ilação dos seus procedimentos, consoante fossem conformes ou não ao que estava estabelecido *. Aliás, antes disso, logo após a sua chegada, já ele tinha tomado outras medidas cautelares: estabeleceu uma Conferência mensal de comerciantes a fim de promover o comércio «com segurança e com proveito», em 18 de Junho de 1764, e criou logo a seguir o Terreiro Público, para a venda de farinha e do feijão. Toda a farinha vinda dos arimos ou dos presídios devia entrar no Terreiro a fim de evitar açambarcamentos (Bando de 9 de Julho de 1764).
*1- Converter os ímpios; 2- todos os habitantes tinham que pagar dízimo. Evitar abusos dos “dizimeiros”; 3- obrigação de fazer balanço anual da recolha de impostos e das despesas de funcionamento; 4- proteger os sobas contra as extorsões; 5- fortalezas em bom estado; 6- «Não deveriam intervir no governo doméstico dos sobados» e não receberiam emolumentos indevidos; 7- não permitiriam que particulares executassem diligências judiciais; 8- respeitar as decisões das autoridades policiais de Luanda; 9- observar exactamente o Regimento dos escrivães das feiras, não intervindo no comércio; 10- estar sempre em dia no pagamento do soldo dos soldados, as fortalezas seriam cuidadas e os seus almoxarifes escolhidos com cuidado; 11- respeitar as Leis e a Justiça.
Infelizmente, só quase no fim do seu consulado tomou medidas para abrandar as violências do tratamento dos escravos, sobretudo da penosa travessia para o Brasil em que chegavam a morrer mais de 40% da peças embarcadas (Maio de 1770), e proibiu que se escravizassem os negros por motivo de dívida (Bando do 7 de Novembro de 1770), tudo isso a contracorrente dos usos e costumes dos colonos portugueses, pois ninguém, à parte o excluído povo negro, tinha interesse na obediência a leis desse teor.

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