quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (6)


António Setas

O Manoel ouvia o kimbanda e pensava em todas estas coisas. Compreendia. Andavam atrás dele porque o Surdo tinha desconfiado, ou então devia haver pessoas ciumentas que também queriam ter a Teresa e lançavam mujimbos à toa só para ela o deixar. Manoel não sabia bem o que fazer, mas agora sabia já o que não podia fazer, isto é, ir de dia a casa do Surdo e aproveitar a mais pequena distracção do velho para trepar para cima da cozinheira, fosse onde fosse, na cozinha, na sanita, atrás do imbondeiro, dependia do nível de distracção do velho. Por esse lado tudo estava claro na sua cabeça. Agradeceu o kimbanda, prometeu acautelar-se, e despediu. A partir desse dia passou a visitar a preta Teresa a partir de altas horas. Estabeleceu com ela um código de contacto, simples: ele entrava no quintal e miava, miava como um gato com cio. Quando ela ouvisse era só ir abrir a porta. E seria uma noite de festa para os dois.

Manoel de Salvador tinha pelo menos um bom amigo, o Eusébio, o outro escravo do tenente-coronel, seu “matafumo”. Era com ele que o Imbangala dava as suas curvas. Sempre juntos, patinavam com as corruchas, escravas como eles, bebiam os seus copos e trocavam confidências de que ninguém conhecia o teor. Frise-se que em todas essas passeatas pontuadas uma vez ou outra por farras entre autóctones, os dois negros primavam pela discrição. Saíam de casa noite vinda, sobriamente vestidos, iam até à Nazareth, ou então subiam as ruelas que levavam aos altos da cidade, evitando a Calçada dos Enforcados por nela se concentrarem muitas tabernas frequentadas por militares e marinheiros ébrios, que na ofusca realidade provocada pela geribita ou vinho que emborcavam, brincavam por vezes ao kwata kwata e apanhavam incautos negros desprevenidos para levá-los para as suas “oficinas” e depois vendê-los como escravos. Escolhiam pois, caminhos mais tranquilos, arribavam nas calmas ao destino escolhido, contentavam-se quase sempre com algumas horas de convívio na companhias de amigos do Eusébio, e depois voltavam para casa. Mas também acontecia que de regresso só viesse o Eusébio, o que se explica pelo facto de este ser, nesses primeiros tempos da estadia do Manoel em Luanda, uma espécie de cicerone, guia judicioso e eficaz do retornado. Apresentava-lhe pessoas importantes, pumbeiros de alta estirpe, que se evidenciavam no negócio negreiro pela sua ferocidade, e o Manoel aproveitava a deixa para se meter no meio deles e colher informações preciosas sobre a maneira como se efectuava o tráfico em Angola.
Com o passar do tempo, de troca de ideias em elaboração de projectos, brotaram planos a propósito de novas acções, cujo único objectivo seria chegar a uma enorme pipa de dinheiro que poderia muito bem ser surripiada a esses “portugueses de merda”, que queriam tudo para eles. Nessas conversas e planeamentos nunca a componente humana tinha sido posta em questão, até ao momento em que o Manoel de Salvador se apresentou com a sua ideia: deveria acrescentar-se a todos os actos de captura de peças, um meio de recuperá-las depois de se ter recebido o dinheiro que os escravagistas tivessem pago por elas. A ideia foi aceite com aparente entusiasmo, só que havia um problema, realizá-la era praticamente impossível em Luanda. Os escravos eram guardados “a sete chaves” em casas bem protegidas, com muros altos, com cães a ladrar à chegada dos mosquitos, imagine-se se fossem ladrões... havia militares por toda a parte, não, seria uma loucura tentar recuperar peças guardadas no centro de Luanda. E mesmo que fossem libertas, ir para onde com elas?, para o mato?, levá-las a outros compradores? Definitivamente não, por aí a ideia não tinha pernas para andar. Mas ficou no ar. Talvez se pudesse encontrar um caminho para chegar à tal pipa de dinheiro.
Nestas manigâncias e em outras mais, o Manoel tinha descoberto no seu matafumo qualidade preciosa no facto de ele ser sobrinho, afastado, mas mesmo assim sobrinho, do mwene Mussulo, que vivia numa relativa independência da administração portuguesa. Retirado nas suas terras, que as águas da Kasanda separavam de Luanda, e de toda aquela parte da costa continental que se estende para sul até às Palmeirinhas, o chefe negro punha e dispunha nos seus domínios e era considerado quase intocável, pelo facto de ser parente próximo do rei do Kongo, com quem o governador Sousa Coutinho mantinha relações cordiais.
Ora acontece que nesse tempo começaram a aparecer por alturas da barra do rio Dande uns barcos ingleses muito grandes, chamados bergantins, dos quais eram lançados ao mar barcos pequeninos, como se fossem crias paridas pelo grande. Esses ndongos, a que chamavam lanchas, por serem pequenos e facilmente manobráveis, podiam entrar nos rios, e era isso mesmo que os ingleses faziam, à força de uma boas e vigorosas remadas metiam-se pelo rio Dande acima à procura de peças. Traziam tecidos finos, mais bonitos do que os dos portugueses, e era um ver se te avias para recebê-los em troca de pacíficos cidadãos, não os que tinham raiz naquelas terras, mas os que por ali se encontravam acidentalmente, seja por terem sido presos por algum motivo, seja por terem vindo numa passeata à procura de cacussos, saborosos peixes do rio. Surpresos, viam-se a ser levados nos ndongos dos ingleses para o grande barco que esperava, ancorado em mar aberto. E lá iam.
Esta trama, clandestina nos seus primórdios, depressa foi do conhecimento de luandenses que negociavam em tecidos finos e outros produtos, mas principalmente tecidos, e a páginas tantas Sousa Coutinho, posto ao corrente do facto, tomou medidas para impedir que tal desrespeitosa intrusão em território sob sua jurisdição se repetisse. Foram enviados alguns militares para a zona norte de Luanda, e, oficialmente, os ingleses deixaram de frequentar a embocadura do rio Dande. Mas era mentira, foram efectivamente apanhados por duas vezes, admoestados, numa delas tendo sido mesmo apresada a lancha, e os negros intermediários do negócio castigados, mas bastou-lhes insistir, subornar uma meia dúzia de soldados portugueses destacados para aquela zona para continuarem tranquilamente a comprar escravos, a principiar pelos que um chefe do destacamento armado luso chamado Quintas, lhes trazia na ponta da espingarda!
A certa altura, porém, os ingleses deixaram de aparecer, para grande decepção dos negreiros profissionais e dos soldados portugueses. Que se teria passado? Eram bem recebidos, as peças de boa qualidade, levavam o que queriam, ninguém compreendia a razão de tão surpreendente desfecho. Ninguém compreendia não é bem assim. Manoel de Salvador compreendia, porque tinha sido por obra da sua subtil inteligência que eles tinham sido desviados da barra do Dande para o Mussulo.
Para conseguir tal proeza o Imbangala tinha-se servido de um pumbeiro da sua banda, que dava uns toques em língua inglesa, homem de confiança de Domingos Dias, o mais rico contratador e maior trafulheiro da praça, atributos de suficiente valor para ele ser apelidado pelos outros de pumbeiro-mor. Esse homem já tinha comerciado com os ingleses algumas peças de boa qualidade, jovens e robustos negros que por acaso vinham de uma região do norte de Luanda banhada pelo rio Dande, também chamada Mussulu, de facto ponto de partida, qualquer coisa como três séculos antes, de muitos refugiados Basolongo do reino do Kongo, que tinham nesses remotos anos ocupado essa terra e a dada altura decidido ir mais longe, sempre para sul, até chegarem, mais tarde, a ocupar uma parte da Mazanga, (ilha de Luanda), que passou a ter o mesmo nome que a terra de origem, Mussulo.
(No século XV a Mazanga era um arquipélago com umas dez a doze léguas de comprimento, sem a separação marítima actual, entre o Mussulo e a ilha de Luanda).
Os ingleses, esses que subiam o rio Dande, ficaram muito surpreendidos quando ouviram um negro (o pumbeiro era mestiço, mas muito escuro) a falar inglês, e elegeram-no rapidamente intérprete e guia. Foi então que o Manoel meteu a sua bicada, graças à intermediação do seu matafumo, depois de ter ido falar com o mwene Mussulo, levando-lhe pela ocasião peças de fazenda lindíssimas, obtidas nas negociatas com os ingleses. O mwene Mussulo, mfumu a vata (ancião e chefe) de uma vasta comunidade Kongo, exercia toda a sua autoridade, com direito de vida e de morte, sobre quantidade de vassalos mundongo, descendentes dos que tinham ocupado o seu território antes do primeiro mwene Mussulu o ter invadido, séculos atrás. Ao ver o que o Manoel lhe apresentava decidiu que era interessante entrar em contacto com esses ingleses. E foi desse modo que os bergantins ingleses começaram a ancorar em frente às praias da contracosta do Mussulo e nunca mais foram ao rio Dande.

Esta vitória, digamos, diplomática, do Manoel de Salvador, apenas serviu, num primeiro tempo, para ele ser reconhecido nos meios afectos ao tráfico como um homem de recursos e mais nada. Primeiro, porque quem tirou dividendos da mudança foram os mandantes dos pumbeiros; segundo, porque, às duas por três o Manoel deu-se conta de que a sua principal preocupação, resgatar os escravos aos negreiros que os tinham comprado, tinha passado para segundo, depois para terceiro, e enfim para última das ralações dos que participavam no tráfico. Os escravos que fossem para casa do Diabo, o que eles queriam era ganhar dinheiro. Isto sem falar do mwene Mussulo, que à parte navios pouco ou nada via como benefício do ousado projecto inicial, imaginado pelo Manoel: armar uma cilada aos intrusos e tomar-lhes o bergantim de assalto!

Imagem: pt.wikinoticia.com

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