quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (12)


António Setas

Tudo começara com as primeiras visitas de embaixadores portugueses a Mbanza Kongo na década de 1480, em que o que o soberano conguês em exercício nessa altura tinha sido presenteado com tecidos finos, de seda e de damasco, privilégio exclusivo da realeza. Em seguida, o uso de tecidos importados estendeu-se à Corte Real e só muito mais tarde passou a servir para diferenciar os assimilados ou pseudo-assimilados dos que se mantinham acantonados nas suas velhas tradições. O pano também foi abundantemente utilizado tanto em Angola como em Moçambique no lugar de moeda corrente, servindo mesmo como meio de pagamento do soldo das tropas e para quitar as contas na venda de escravos. E, além do valor de troca e marca de status social ou político, os tecidos eram usados “como adornos pessoais e nas cerimónias dos rituais aos antepassados, em funerais e casamentos”. Portanto, o que as cinquenta e quatro testemunhas denunciaram em bloco foi a incompreensível riqueza patenteada por um miserável escravo. Inadmissível! Se juntarmos aos dezasseis logistas queixosos, os ajudantes, os alfaiates e os militares, que também negociavam tecidos, mais de metade dentre elas afirmava ter sido vítima de roubos cometidos por Manoel de Salvador. E, claro está, quando os bens apreendidos ao Imbangala foram apresentados em público, cada uma delas reconheceu uma ou outra peça de tecido que lhe pertencia e que ali estava como prova do roubo. O mais guloso foi o Surdo, que reconheceu “algumas “peças” e “fitas” que tinham desaparecido da sua loja, entre elas “uma peça de borralho encarnado sua com o selo da Casa da Índia de Lisboa de que ainda tinha duas irmãs, e os lenços também irmãos dos que ele testemunha que tinha na sua loja”.
Enfim, o destino do Manoel ficou assim traçado, sem que nada nem ninguém pudesse vir ao seu socorro. A única pessoa que se manteve firme na defesa do réu foi o seu “dono”, o tenente-coronel Silva Franco, que pagou caro o sincero afecto que o ligava à sua “peça”. No final do processo, em 17 de Outubro de 1771, Salvador foi sentenciado e o tenente-coronel condenado como cúmplice dos crimes de roubos na Companhia de Pernambuco e no Terreiro.

«No âmbito da discriminação oficial, a própria coroa portuguesa tentou legislar a respeito para demarcar as diferenças, mas se mostrou vacilante, estabelecendo e revogando logo em seguida as leis que proibiam os mulatos e negros de se vestirem iguais aos brancos. Apesar de os “brancos fuscos e mulatos civilizados se vestirem cristãmente”, alguns conseguiam chamar a tenção pelo luxo de seu vestuário, como os sertanejos que se esmeravam em jóias e roupas ricas.»

VIII

Manoel do Salvador foi encarcerado na Fortaleza de São Miguel. E a crónica diz, textualmente, “Em 21 de Outubro de 1772, Salvador morre, sob prisão, em um hospital”, o que apenas corresponde à veracidade dos documentos que comprovam a sua morte, nesse dito hospital.
A realidade, porém, por vezes escapa ao conteúdo da documentação oficial, e neste caso, mesmo se é verdade que existam documentos confirmando a morte de Manoel de Salvador no dia 21 de Outubro de 1772, num hospital de Luanda, o capitão do exército Gonçalo Rodrigues, o ex-dono de Manoel de Salvador, confirmará mais tarde a sua presença no Rio de Janeiro em Julho de 1773! Onde estará a verdade?
O que aconteceu, segundo testemunhas talvez mais dignas de confiança do as que se apresentaram no processo, foi que, depois do julgamento, o tenente-coronel Silva Franco, também encarcerado, beneficiou da intervenção de uma alta patente do exército junto do governo da colónia e rapidamente recobrou a liberdade. Tentou recuperar o seu escravo, mas não conseguiu, fez tudo o que pôde, bateu a todas as portas que podiam fazer valer os seus desejos e todas se lhe fecharam na cara. Essa era boa!, então não lhe chegava estar em regime de liberdade, agora também queria que libertassem o seu escravo!?... O que é demais é erro!...

O tempo passou, e um dia, estava ele em casa a matutar sobre o destino que poderia dar à sua vida, apareceu-lhe a bater à porta uma negra muito bela que se apresentou como sendo uma amiga do Manoel de Salvador. Disse que se chamava Tunga e tinha nas mãos uma caixa de chifre preto encapada em um pedaço de pano e amarrada com um mastro vermelho e lacrado. De imediato o tenente-coronel reconheceu a belíssima Berenice, mas não disse nada, sabia o que ela queria, tinha vontade de ajudar e pareceu-lhe conveniente jogar o jogo dela, simples, ir até à Fortaleza e entregar a caixa ao chefe da guarda, ela encarregar-se-ia do resto. Isso era o que ele pensava, mas a negra disse-lhe que não, anunciou-lhe que o Manoel estava doente e que tinha um morto par substituí-lo (!), que já estava no mesmo hospital, e que esse ia mesmo morrer, era só pô-lo no lugar do Manoel, depois de dar a caixa ao chefe dos enfermeiros.
E assim fizeram, o tenente-coronel foi com ela até ao hospital, apresentou-a como pessoa de confiança ao chefe dos enfermeiros, não obtiveram a autorização de falar com o Manoel, mas, à saída, Silva Franco deixou Berenice em animada conversa com o enfermeiro, que, por sortilégio da negra, foi levado a aceitar a caixa de chifre preto. E nessa mesma noite o Manoel pôde sair nas calmas do hospital, depois de ter posto na sua cama um homem que estava a morrer. Foi deste modo que Manoel de Salvador foi dado por morto dois dias mais tarde, a 21 de Outubro de 1772.
O casal refugiou-se na cubata de Berenice da Xicala, enquanto o tenente-coronel tomou providências para os fazer embarcar para o Brasil por intermédio do inevitável Silva Canoa, que de bom grado se prestou a mais esse “serviço”, e aceitou levar o casal para o Brasil em troca de panos da Índia que ainda havia em casa da Berenice.
Quando o barco chegou ao Rio de Janeiro, um dos oficiais de bordo, o contramestre Sousa, acompanhou-os até à saída da zona de controlo, e teria sido então que eles se encontraram com o capitão do exército, Gonçalo Rodrigues, que depressa reconheceu o seu antigo escravo. Mas este não lhe deu tempo de o abordar e desapareceu no meio da multidão. Ficou para a história o seu testemunho a desmentir a alegada morte oficial do escravo Manoel de Salvador em Luanda.

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