sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (9)


António Setas

VI

As naus das Índias não só vendiam fazendas ditas “de negros”, mas também, iludindo a proibição de fugir à fiscalização das autoridades portuguesas, se serviam de Luanda como entreposto de fazendas finas da Índia que depois eram transportadas directamente para a América sem terem passado por Lisboa, escapando ao fisco.
O governador bem tinha erigido uma Casa de Alfândega junto ao Arsenal da Marinha, com oficiais competentes, escrivão e tesoureiro, para despacho das fazendas da Índia (das quais a alfândega recebia 10% do valor), instituição que aliás, diga-se, desapareceu como fumo mal ele desapareceu da cena política. Em parte porque a finalidade para que fora criada, impedir ou pelo menos minimizar o contrabando, nunca foi alcançada, na medida em que a dita Casa nunca conseguiu identificar as fronteiras que separavam o comércio oficial, com os seus impostos, taxas e outras coimas, do cambalacho puro e simples, por vezes também quase oficial e... e talvez fosse essa a razão da extrema dificuldade para destrinçar o oficial do não oficial. Eram tão parecidos!
De maneira que, não poucas das belas fazendas que vinham da Índia, com destino a Lisboa, iam parar a Luanda como que por negligência ou distracção. Não pagavam direitos nenhuns e ficavam evidentemente mais em conta do que as que vinham do Brasil depois de terem passado por Lisboa e pago as diversas alcavalas atinentes a transportes, armazenamento e requisitos fiscais. Os mentores-mores desses desvios eram os capitães, também mores, dos navios, e o Manoel tinha-se metido na jogada tempos antes, precisamente por intermédio de um deles, “um velho amigo” do capitão Silva Canoa do Escorrega, que fazia a carreira do Brasil e lhe tinha dado a mão por ocasião da troca de fazendas dos ingleses armazenadas então na ilha do Mussulo. Ao tempo, o Imbangala remetia-lhe fazendas, depois o Silva Canoa trazia-lhe geribita do Brasil e os dois capitães lá se arranjavam entre eles. Um bom negócio para os três.
Agora, por acerto do destino, o tal capitão fazia a carreira da Índia e não se tinha esquecido do Manoel. Deixava-lhe fazendas, que fazia passar à noite para a ilha a bordo de um batel e eram recebidas na praia pela cada vez mais perturbante Berenice. O Manoel recuperava-as mais tarde e enviava-as para o Brasil, com a ajuda de um chamado Miguel João, o Mijó, marinheiro escravo a bordo da corveta Escorrega, mais uma vez com a cumplicidade de Silva Canoa. O que ninguém sabia e ninguém podia saber, é que o Mijó era o irmão do Manoel que tinha avançado o dinheiro para a sua alforria.

Com este novo negócio aconteceu uma coisa engraçada. Como o dinheiro que começou a entrar nos bolsos do Manoel dava para esbanjar, viu-se quiçá pela primeira vez na história da escravatura um escravo a sustentar o seu dono! A negra Teresa também aproveitava, vestia-se muito catita, como as brancas, mas aperaltava-se como negra que era, com bué de malengues nos braços, inguelengues nas orelhas, malungas nos pés e um jingondo no pescoço, provocando uma generalizada indignação no seio da vizinhança. Um dia o seu dono perguntou-lhe de onde vinha o dinheiro e ela respondeu que era da avó. Qual avó?, Uma que morreu e deixou dinheiro. O Surdo engoliu, mas começou a vigiá-la. Primeiro ponto negativo para o Manoel, que continuava a frequentá-la de tempos a tempos, depois de anunciar a sua presença, alta noite, a miar como um gato com cio. Na ilha, a sempre suave Berenice, que se tinha integrado na comunidade muxiluanda por meios e motivos que nunca foram elucidados, continuava a manter em respeito os pretendentes que a assediavam e fazia-se respeitar por todos os que pretendiam ser da sua roda, por ter fama de ser abastada e muito protegida por um capitão de navio. Vivia com uma mais velha que passava por ser sua tia, o que era também uma mais valia para evitar dissabores. Enfim, todos os que conheciam de perto o Manoel andavam felizes da vida, não se podia dizer que fossem abastados, mas todos viviam bem.

Chegou o Natal do ano de graça de 1769. Alguns dias depois, antes das festas de fim de ano, o Manoel apresentou-se na loja do Florêncio Sam Payo e pediu-lhe se podia ver as peças mais bonitas que ele fazia de encomenda para os ricaços e não estavam expostas na área reservada aos clientes habituais, mas sim lá atrás, no atelier, ao abrigo dos olhares cobiçosos. O Sam Payo não gostava do Manoel, tinham-lhe chegado aos ouvidos mujimbos que davam conta dos segredinhos trocados entre ele e a Berenice a bordo do Escorrega. Não tinha apreciado, mas como nessa altura o Manoel ainda era um pobre de Cristo, um borra-botas, não deu seguimento à sua ira e esqueceu-se do caso. Mas quando começou a vê-lo vestido como um branco, subiram-lhe de novo à tona da cachimónia vestígios do antigo rancor, que se manifestavam em risos de desdém que ele distribuía à sua roda e propósitos sarcásticos a seu respeito.
E agora, vejam só, aquele preto fedorento estava ali na sua loja!...Controlou os agressivos instintos que o assaltavam e esclareceu que o que estava no atelier não era para gentio sem patente, mas sim para gente da alta, camuflando a aversão que ressentia num sorriso profissional. E pôs-se a gozar, a dizer que, se o estimado cliente olhasse bem em redor podia ver, ali na loja havia muita coisa bonita, digna do mais alto apreço, por exemplo, esta peça... peço desculpa, este gibão, esta labita de bretanha, ou este jaleco cor de pérola, e ia mostrando as fatiotas mais conseguidas da sua colecção. Estava mesmo a gozar, e o Manoel, como que se não desse conta, fixou o seu olhar no “jaleco de chamalote novo forrado de tafetá, cor de pérola”, e perguntou quanto custava. O Florêncio disse que eram seis mil e quinhentos réis. Apesar do preço ser tão alto o Manoel assegurou que estava disposto a pagar se o alfaiate corrigisse um defeitozinho que lhe desagradava. Mas então o que é?, Tem manga curta, não gosto, mandá botá mangá comprida, tá?, Não tem mais chamalote..., Eu vou buscá. E sem discutir o preço que o Florêncio lhe tinha espetado até ao osso, aquilo não valia nem metade, o Imbangala foi a casa buscar mais chamalote para fazer as mangas. Voltou passado menos de uma hora e mostrou a peça de fazenda, chamalote igualzinho ao do jaleco cor de pérola. O Florêncio não queria acreditar, mas que remédio, estava diante dos seus olhos, engoliu mais uma vez em seco, «São mais quinhentos de mão-de-obra», disse, «Mão de quê?», perguntou o Manoel, «Mão-de-obra. Muito trabalho para fazer novas mangas, tem que pagar», «Tá bem. Fica então como, o preço?», «Sete mil», «Vai, eu pago». Sem discutir, sem negociar, sem nada. «Tem que pagar já», disse o Florêncio, e o Manoel, muito depressa, «Tá qui, tem metade. Faz manga, depois eu pagá tudo».
O alfaiate fez o trabalho, o Manoel recebeu no dia seguinte o seu jaleco e pagou o resto. Sem a mínima discussão sobre o preço, que por ser tão exagerado, quem ficou espantado com a conclusão da venda foi o alfaiate. «Este gajo onde é que vai buscar o dinheiro? Se eu tivesse dito dez, ou quinze, sei lá, também era capaz de pagar.»
Embora não pareça, este pequeno episódio está na origem de tudo o que se passou a posteriori, com todos os emblemáticos preconceitos atinentes às diferenças raciais, desde os que já tinham sido patenteados na compra do jaleco, assim como na reacção do Florêncio, que considerou ter sido uma derrota da sua casta o facto do preto ter tão depressa ultrapassado as chicanas que ele lhe erguera. Seria pois obrigado a continuar a acatar a maneira como o Manoel o encarava, a sorrir, com a sua natural altivez. Era insuportável, tinha que arranjar meios de esmigalhar o preto, pô-lo no seu lugar. Foi o que acabou por acontecer quase um ano mais tarde.

Passados alguns meses, lá para o fim da estação de cacimbo do ano seguinte, apareceu de novo na botica do Sam Payo o cada vez mais empertigado Manoel, portador de uma esplêndida peça de damasco, caríssima, aquilo nas suas mãos até parecia pecado, e o alfaiate não esteve com meias medidas, só podia ser roubo, pegou nele, com a ajuda dos seus jagunços, e levou-o a casa do tenente-coronel com o que para ele era a prova do delito, a peça de damasco, caríssima! Chegaram pelas traseiras, e quem veio abrir a porta foi o Eusébio. Mal viu o Manoel agarrado pelos homens de mão do Sam Payo fugiu, e quem teve de gritar a chamar pelo dono foi o Imbangala, «Patrão! Patrão!!». Este acorreu, abriu a porta de casa que dava para o terreiro das traseiras e viu a cena: o Manoel agarrado pelos jagunços, e o Sam Payo com a peça de damasco na mão a anunciar, mal o viu aparecer, «Trago-lhe este traste, tenente-coronel. Olhe para isto», a avançar para lhe entregar a peça litigiosa. Entregou-lha, Silva Franco olhou para o mambo e perguntou, «O que é isto?», «Não é seu?!», «Não». Seguiu-se um breve silêncio, interrompido pelo Florêncio, «Mas então onde é que ele a roubou?», «Sei lá, aqui em casa não foi», e acrescentou, para que ficasse bem claro que o melhor seria libertar o seu “escravo”, «o Manoel é libre de ir e vir quando quiser, e de fazer o que entender». Ao que se seguiu um outro silêncio, pesado, sem outra possibilidade de quebra que não fosse o que disse o Florêncio, «Nesse caso...», virou-se para os jagunços e ordenou, «larguem o rapaz!», ao que os seus homens obedeceram. O Manoel sacudiu o corpo como que para afastar mosquitos, fez um passo de dança e avançou para o dono de braços abertos, «Obrigado patrão», e ajoelhou-se aos seus pés. O Sam Payo fez um gesto de rejeição e desprezo, e desandou, seguido pelos seus jagunços.
Esta foi a segunda pedra basilar do edifício que, sem ninguém se dar conta, estava a ser erguido para perder o Manoel.

Imagem: pepeolivercabrera.blogspot.com

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