segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (5)


António Setas

O menos que se podia dizer era que tudo isso cheirava a negócio escuro, trafulhice, quiçá promiscuidade. De facto, as relações entre o escravo Manoel de Salvador e o tenente-coronel João da Silva Franco pecavam por estar envolvidas numa nebulosa de versões diversas e contraditórias a respeito dos motivos que levavam a que o escravo se comportasse em sociedade com tanta desenvoltura aparatosa e, sobretudo, a tudo o que se referia às condições que presidiram à sua própria compra, envolvidas, também elas, numa áurea de misteriosa engenharia. Corria o boato de que tinha sido o escravo a pagar com dinheiro do seu bolso a sua própria compra. O que, como já é sabido, era verdade pura, mas nem Salvador nem o dono se davam ao trabalho de confirmar.
A páginas tantas as primeiras suspeitas agravaram-se, quando Salvador apareceu nas ruas de Luanda vestido em linhos, chamalote e sedas, chamando a atenção dos moradores pelo facto de não ser compreensível ele ter obtido recursos necessários para pagar tão ricas fatiotas. Um escravo vestido como um civilizado!?...E mais não foi preciso para que aparecessem de sítio nenhum e de toda a parte pessoas desejosas de dar o seu contributo para esclarecer tão profundo mistério, a abrirem-se em confidências, como por exemplo na tasca do Zé da Beca, na Marginal, onde apareceu quem dissesse que ele não era escravo, mas sim cozinheiro do tenente-coronel, mais nada. Mas, cozinheiro ou escravo, qual a diferença para o caso?, no fundo ia dar ao mesmo, fosse o que fosse não se explicava de onde vinha o dinheiro. E logo se levantou uma voz lá de trás a revelar que o Salvador era parente próximo de descendentes do Jaga Bango-Bango - bocas da Teresa -, e que escravo nunca ele tinha sido na vida, o que levantou um rumor de indignação,«É escravo sim, senhor!, mas tem força na verga, isso é verdade, mulheres atrás dele não faltam». Descendo deste modo a conversa ao nível da força libertadora do sexo, alguém aproveitou o silêncio que se instalou depois desta última revelação para confidenciar, «Se é escravo ou não, pouco importa, mas que a irmã pagou a alforria, ai isso é que pagou!...« No Brasil!?...«Não, na cama». Grande chinfrim, risota, venha mais vinho! Mentiras e nebulosas atrás de nebulosas que o álcool enovelava.
Bom, para não faltar à verdade, tem que ser dito que o Manoel de Salvador nunca teve irmã, frequentava de tempos a tempos os axiluanda da ilha e, apesar dessa comunidade ser muito resguardada e dificilmente aceitar gente “de fora”, dizia-se que ele tinha aí uma namorada, e não uma qualquer, uma sobrinha do soba, a menina Rola Tunga. Rola Tunga uma ova!, o soba não tinha filha nenhuma com esse nome.«Não tinha, mas agora tem, é minha! Eu é que dou nome», retorquia o Manoel.
Por outro lado, as actividades comerciais do seu dono, vocacionadas para a venda de tecidos finos, e nem tão finos como seria de desejar, pois o homem debatia-se constantemente com dificuldades financeiras, tinham-no levado a frequentar o alfaiate Manoel da Quitanda, o Surdo, cuja cozinheira, chamada Teresa, de revelação de receita culinária em segredo de molhos picantes, tinha sido lentamente levada por sua graça até à cama, onde começou recebê-lo de braços e pernas abertas. Pessoas idóneas tinham-no visto várias vezes na Baixa, na Praça do Pelourinho, a distribuir dinheiro, moedas de ouro e prata, entre as suas amigas pretas, arreigadas a um outro alfaiate, talvez o mais próspero de Luanda, um chamado Francisco da Silva Barbosa. Era de facto muita farófia para ovo tão pequeno!, o que é que poderia haver atrás disso?...
Por amizade, uma das vizinhas do tenente-coronel preveniu-o do que se dizia por essa Luanda fora, ao que ele ripostou laconicamente que o escravo «podia fazer a obra que quisesse», o que para a burguesia luandense constituía um cúmulo dificilmente admissível. A partir dessa altura, depois de tão displicente resposta, apenas digna de um “está-se-marimbandista”, não da boca de um tenente-coronel, Manoel de Salvador começou a ser controlado pelos moradores das vizinhanças, mais tarde pelos das cercanias da vizinhança e, às tantas, quase se poderia dizer por toda a cidade.

Enquanto tudo isto se passava, nas altas esferas da Câmara de Luanda funcionários zelosos iam tentando pôr em prática as directivas de Sousa Coutinho. Este, depois de ter arrotado as suas postas de pescada, teóricas, digeria mal a realidade que se lhe afigurava, para empregar a sua expressão, como «um labirinto de chicanas». Perante a questão da escravatura entre os africanos, por exemplo, o governador constatou que não lhe era possível saber ao certo quem era escravo e quem não era, no emaranhado de relações de parentesco que não permitiam saber quem era livre, agregado, penhorado ou “legitimamente escravo”. Cumpria, portanto, «arrumar a casa».
Partindo do princípio de que Angola era «um país bárbaro e preguiçoso», caracterizado pela ausência de civilização do seu povo, embora admitisse que ele fosse permeável à cultura, a começar pelo abandono dos seus «vícios de gentilismo» e uma conversão à verdadeira fé cristã, concluiu que era urgente disciplinar a conduta dos representantes do catolicismo, até essa data mais interessados em comerciar do que divulgar a religião. Contava com eles para fazer cumprir a nova lei. Mas qual lei?, não havia lei. Ora essa, qual é o problema? Promulga-se! Assim, estabeleceu um bando (uma proclamação com força de lei) que proibia a adoração ao deus “Bumba” (Bumba a Mbulu dos Songo?), depois outro, para rituais como Estambes (relacionados com os óbitos), e outro ainda, para os “Douzo ou Quicumbes” (xinguilamento e adoração de “ídolos”) e “Mutambes” (sacrifícios rituais de animais em homenagem aos mortos).
O governador continuava a acreditar na eficácia da lei, e para o seu justo cumprimento contava com a comunidade religiosa. Porém, o que mais o indignava e lhe parecia de mais difícil trato era a mistura dos ritos africanos com os da cristandade, como por exemplo considerar que eram dias Santos da Igreja Católica os dias imediatos à lua nova, considerados sagrados pela população, ou a celebração de ritos pagãos nos mesmos dias consagrados pelos católicos, «fazendo todos esses ilícitos actos nos mesmos sagrados dias em que a Igreja com todos os seus fiéis a venerarem os sacratíssimos Mistérios da nossa redenção.» Coutinho tinha razão, porque nunca passou pela cabeça da maior parte dos africanos que se tinham convertido ao catolicismo renegar as suas crenças e cortar, na sua vivência do dia-a-dia, as raízes que sempre os tinham ligado, ligavam nessa altura e continuam ainda hoje a ligá-los às tradições ancestrais.
Não obstante tamanha aresta, na esteira deste bando vieram perfilar-se inúmeras tentativas de implantação de instrumentos jurídicos, teoricamente para proteger a população local. Começaram então a ser promulgadas leis a propósito de tudo, decretos municipais regulamentavam doravante o tráfico local, os balcões do mato eram submetidos a fiscalizações pontuais, a famosa Ronda de Luanda, que controlava a ordem na cidade, foi remodelada, revestida de uniformes novinhos em folha, multiplicaram-se as suas saídas de controlo, doravante de manhã, ao cair da tarde e duas vezes durante a noite. E os luandenses, que tinham por hábito sentarem-se noite vinda à soleira da porta das suas casas a conversar até altas horas, cultivaram o hábito de esperar que a primeira brigada nocturna passasse para se retirarem, tranquilos, nos seus aposentos.

A partir de uma certa altura a vida do Manoel ressentiu-se de tantas medidas jurídicas, tomadas no sentido de disciplinar a vivência citadina e prevenir desmandos. O cerco em volta das suas idas e vindas apertou-se a pontos de o homem sentir que alguém lhe queria fazer mal. Seria mau-olhado? Pelo sim pelo não tomou as suas cautelas e foi falar com o kimbanda. Este pediu-lhe vinho, maruvo, azeite doce e velas, também um frasco de perfume, uma fortuna, para lhe dizer o que ele já sabia: uma mulher tinha-lhe entrado na cabeça e estava a dar cabo da sua vida. Ora bolas!, só podia ser a preta Teresa. E havia um homem, acrescentou o kimbanda, que também lhe complicava a vida, perto da Teresa... Claro!, essa era boa, era o Surdo, só podia ser o Surdo. Se ele soubesse que os ruídos nocturnos que o incomodavam eram os que a cama da cozinheira fazia, misturados com os gritos que ela dava quando o Manoel a cavalgava nos pináculos sexuais que ambos alcançavam, cairiam todos os carmos e trindades de África, e o Manoel... o melhor seria ele fugir para o Brasil. É que o Surdo também dava as suas voltas eróticas com a Teresa, mas diga-se, num estilo muito mais sofisticado. Ao contrário do Manoel, que tinha, como toda a gente sabia, força na verga, o Surdo, de nacionalidade portuguesa, quase nos setenta anos e trinta de África, depenicado no sangue por várias crises de paludismo e uma próstata quase tão inchada como o seu ego, deparava-se constantemente com dificuldades para chegar a vias de facto com uma mulher, mesmo com a Teresa, que primava pela sensualidade contagiante. Por isso, demorava-se nos preliminares, de que fazia o prato quente do seu repasto carnal, temperado com todas as especiarias que a Teresa tinha em reserva só para ele, e contentava-se, depois dos frugais petiscos calientes, com uma sobremesa da sua lavra, um rápido e pouco seguro coito, numa fuga para a frente até atingir os píncaros de um orgasmo teatral. A Teresa interpretava então o papel de uma cantora de ópera e gritava como se estivesse no palco da Scala de Milão. Ela era, realmente, o último rebuçado da vida do Surdo, e se lho tirassem ele seria capaz de matar.

Imagem: historiaempartes.blogspot.com

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