sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (FIM)



António Setas

Depois, pouco ou nada se sabe do que lhes aconteceu, a ele e à Tunga, para onde foram, como e com quem. Ficaram apenas notas esparsas e concordantes, relacionadas uma vez mais com os quilombos do Brasil. Mas, para compreender o pouco que ficou das notícias sobre a vida de Manoel de Salvador, é necessário fazer uma pequena incursão no passado.

Coisa de três anos antes, no dia 18 de Agosto de 1769, o mestre-de-campo Inácio Correia de Pamplona, de nacionalidade portuguesa, iniciara uma longa jornada pelo sertão da capitania de Minas Gerais, mais precisamente pelas regiões do Campo Grande, Caieté e Paracatu. A tropa era constituída por « (...) quase 100 homens, incluindo 13 cavalheiros, padres, “cirurgiões” médicos, músicos, na maioria escravos, e ainda 58 cativos “com armas de espingarda, clavinas, facões, patrona, pólvora, chumbo e bala. Para seu abastecimento a expedição trazia “52 bestas de carga, com comestíveis e bebidas, de várias qualidades, tanto da terra como do Reino, em que também entrava uma bem preparada e sortida botica.» Objectivos: desbravar novas terras, descobrir outras áreas para mineração, e destruir mocambos (quilombos).
Entre Agosto e Novembro a expedição percorreu centenas de léguas em busca de ouro. Desbravaram novos caminhos, ergueram igrejas e capelas, construíram pontes, fundaram arraiais e vilas. Extensivas lavouras foram estabelecidas, levou-se a justiça (resolução de contendas) a populações longínquas. A fé católica foi propagada aos quatro ventos em todos os cantos da região e alguns mocambos acabaram destruídos e os escravos fugitivos (quilombolas) que os ocupavam foram capturados».
Assim reza a crónica, e por uma vez ela não esconde quase nada a ninguém, nem deforma a realidade de maneira grosseira, como por vezes é o caso. Tratava-se de uma larga campanha de exploração do território, é verdade, mas intimamente associada à repressão dos levantamentos de escravos que deram origem à formação dos quilombos, essas autênticas fortalezas selvagens erguidas para se oporem à força ainda mais selvagem dos negreiros, um caso por assim dizer único na história da escravatura, por ter surgido espontaneamente e se ter alastrado de maneira alarmante sem que num primeiro tempo as autoridades tivessem podido reagir com eficácia para fazer impor a sua lei.
Em certas regiões do sertão brasileiros desenvolveram-se sociedades negras com todos os atributos das que existem em África, reis, sacerdotes, tribunais e meios de praticar uma política de Estado. Nessa expedição de Inácio de Pamplona, foram encontrados oito quilombos, entre os quais se contava o do Buraco de Tatu, que tinha renascido dos escombros da sua destruição, conseguida alguns anos atrás com a ajuda do Manoel, e em que tinham sido capturados alguns escravos depois da maioria ter fugido para o mato. Como já se sabe, a existência desse quilombo tinha sido denunciada pelo Imbangala, alegadamente por ele ter sido ameaçado de morte em virtude de relações suspeitas que mantinha com os homens brancos. Uma vez mais esta versão camuflava uma outra realidade, pois o que se passou nada tinha a ver com relações amistosas com o colonizador. Em boa verdade o Manoel de Salvador, aliás Nzenga ka Imbe, da linhagem do chefe Imbangala que outrora se tinha esporadicamente associado às forças armadas portuguesas em campanhas que levaram à fundação do presídio de Ambaka, tinha reivindicado para ele o título de rei do quilombo, em virtude não só da sua alta linhagem, mas também porque tinha sido ele a organizar a maior parte das fugas com a ajuda da sua mulher principal, Tunga, filha de kilamba, e ela mesmo kilamba, possuidora de poderes sobrenaturais que ninguém podia negar. Quem não apreciou esta ideia foram os fugitivos do Sul, do lado de Minas Gerais, crioulos que viam com outros olhos a liderança do quilombo, e exigiam que o poder político do bando de furagidos fosse dado aos da sua banda. E a esse respeito, nessa época as autoridades tinham apurado que na região de Bahia, «no mocambo (quilombo) do Buraco de Tatu sabia-se da existência de dois chefes ou capitães, cujas esposas eram chamadas de rainha», uma Zunda e outra Tumba (não seria Tunga?), e que mais tarde esta teria fugido com o seu marido. Assim, transparece o facto de ter sido a imposição de um governo do quilombo pelos mais “evoluídos”, no sentido de serem mestiços e terem mais afinidades com os negreiros do que o negro Imbangala, e não o contrário, ser o Imbangala suspeito de ter relações privilegiadas com o colonizador, que deu origem à luta fratricida que levou o Manoel a fugir do mato, muito provavelmente acompanhado por Tunga, segundo as referências da época, e a ir pedir ajuda ao seu dono, nessa altura o caixeiro da Companhia de Pernambuco, o Henrique da Matta. Seguiu-se, como já é sabido, um primeiro ataque ao quilombo do Buraco de Tatu, no qual foram presos oito escravos, a venda do Manoel ao tenente-coronel e a sua ida para Luanda. Agora, que estava de volta, e com o pouco dinheiro que o capitão Canoa lhes tinha deixado, depois de ter feito as contas à sua maneira no que concerne o valor das fazendas da Índia que o casal lhe tinha entregue para pagar a viagem até ao Brasil, lá foram eles mato adentro, à procura dos seus irmãos de raça, ainda escondidos em algum recanto escondido do sertão.
Foram correndo por essas sertanias, visitaram roças e herdades ricas dos capitães, acercaram-se das vilas, remeteram ao mato, visitaram mais fazendas e roças, e em cada uma delas Tunga dava mostras do poderio da sua caixa de chifre preto encapada em um pedaço de pano e amarrada com um mastro vermelho e lacrado.
Atrás do casal, na sua correria pelos matos, juntaram-se as almas penadas, seres humanos arrancados à sua terra de origem, como frutos carnudos destinado a serem devorados ao sabor da crueldade do bicho-homem, mas ainda vivos, um, dois, depois quatro, oito, vinte, cem, centenas de negros uma vez mais a fugir das fazendas de café, de algodão, e das minas, e das vilas ricas, todos a fugir, a rumar para oeste, de rota batida para o interior da Selva, atrás de Nzenga ka Imbe, de Tunga e da caixa de chifre preto encapada em um pedaço de pano e amarrada com um mastro vermelho e lacrado.
Mas não encontraram o Buraco de Tatu, encontraram um cemitério, um monte de escombros, esqueletos pendurados nas árvores, aves agoireiras a rondar pelas zonas de antigos massacres e continuaram mato adentro à procura, à procura, a morrer de fome, mas sempre à procura de sítios onde pudessem poisar. Nunca mais ninguém os viu, nunca mais ninguém saberá o que lhes aconteceu, mas também jamais alguém poderá negar que, por pouco ou muito tempo que tenham sobrevivido, todos esses homens, mulheres e crianças, morreram numa liberdade reencontrada, não muito longe das correntes da escravatura.

Imagem: kufrontalidadi.blogspot.com

















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