terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (2)


António Setas

Goradas as suas intenções, continuou mais para sul, até que, a dada altura, o comandante do batalhão, um chamado Tomás Finório, morreu das febres e João Franco tomou o comando das operações. Hesitou. Voltar a Luanda... não voltar... mas o seu espírito patriótico, aliado à vontade de mostrar serviço e à perspectiva de poder regressar a Luanda revestido da auréola dos heróis, continuaram a empurrá-lo para o sul, no cumprimento do que ele dizia ser simplesmente o dever de qualquer patriota português.
Passado pouco tempo encontrou um outro grupo de Imbangalas acampado perto de um rio a que chamou “Murombo” (rio Balombo?), e conseguiu persuadi-los a fazer razias na população local para obter escravos. Contudo, as coisas não se passaram lá muito bem, porque os Imbangalas só aceitavam fazer “kwata kwata” durante o dia, e durante a noite, sorrateiramente, vinham libertar os escravos apanhados antes. O rei Imbangala, de que não ficou o registo, também deu abrigo a outros escravos foragidos do campo dos portugueses, e a páginas tanta Silva Franco acusou-o de duplicidade. O líder do kilombo negou qualquer conhecimento sobre a fuga desses escravos e ameaçou atacar os portugueses se eles não o tratassem com mais respeito, numa atitude de independência que exasperou de tal maneira o chefe português que este decidiu atacar o acampamento dos Imbangalas para recuperar os seus bens perdidos. Depois de duas tentativas falhadas, cerca de 80 homens a pé e dois cavaleiros conseguiram romper as defesas indígenas e os portugueses ganharam a batalha, capturaram o chefe, decapitaram-no, recuperaram a maior parte das mercadorias e escravos e escravizaram todos os guerreiros Imbangala que conseguiram capturar.
Continuando mais para sul, pouco tempo depois Silva Franco tentou aliar-se com outro bando de Imbangalas chefiado por Cachana (Ka Shana). Este aceitou a parceria, mas muito cedo compreendeu que o chefe português queria a fruta toda e deixava-lhe os caroços, relegando-o para uma posição de subordinação, a fim de evitar que se repetisse a mesma experiência que tinha acabado de viver com o bando do rio “Murombo”. Cachana não gostou, reconheceu o perigo e fugiu para as colinas sob pretexto de ir procurar mais presas de guerra. Só que, quando partiu, roubou algum gado dos portugueses e levou-o para o seu acampamento, no cimo de um monte inacessível. Os portugueses conseguiram tomar de assalto o acampamento e recuperar alguns bens, mas depois bateram em apressada retirada para a sua base principal situada perto da costa marítima, debaixo de ataques constantes dos Imbangalas reagrupados. As expectativas de Silva Franco de um tráfico proveitoso não se tinham concretizado. E adeus auréola!
Mas o mais grave aconteceu logo a seguir à sua triste chegada a Luanda, depois dessa desastrosa expedição, não obstante ele ter apresentado provas atestando bons serviços prestados à Coroa portuguesa, isto é, os escravos capturados aquando do primeiro encontro com os Imbangalas. Por motivos mal apurados, nessa altura ele foi incumbido de singrar uma vez mais para sul, mas desta vez de urgência, e juntar-se, para servir de escolta, a um destacamento armado que tinha acabado de desembarcar as suas forças perto do rio Kikombo e tencionava marchar para nordeste em direcção a Massangano. De facto os homens desse destacamento estava simplesmente encurralados numa área cercada por guerreiros Ovimbundu e nem sequer ao barco tinham a possibilidade de chegar, quanto mais a Massangano. Silva Franco sentiu de novo o ressaibo açucarado da vaidade e da presumível glória, e propôs sair de Luanda com um bom esquadrão para tirar aqueles homens, briosos patriotas, de tão incómoda situação. «Desculpem. Esses Ovimbundus são filhos dos Jagas, e se há alguém em Luanda que conhece bem os Jagas sou eu. Façam-me confiança», proclamou ele com ostentação à auditoria militar que ficara encarregue de solucionar esse delicado assunto. Fizeram-lhe confiança. Arrependeram-se.
O grande problema da espinhosa missão era o esquadrão ter que atravessar o difícil rio Kuvo, a sul do maior rio de Angola, o Kwanza. Mas Silva Franco dispunha naquela zona da amizade de Casamba (Nzamba), título de um governante dos acolhedores Sumbi, e uma ajuda adicional na pessoa de Cango (Ngombe ka Hango), um soba que tinha fugido das suas terras mais a norte em disputa provavelmente com alguns povos vizinhos por demais belicosos, e, portanto. Com excelentes razões para se associar aos portugueses. Como estava previsto chegaram ao rio Kuvo, e os homens de Cambo e de Casamba construíram uma ponte Depois avançaram, contando algumas vitórias sobre bandos hostis, que não se resignavam a aceitar uma derrota definitiva, reorganizavam-se, reagrupavam-se e reatacavam sem mercê os já extenuados portugueses. A certa altura meteu-se-lhes ao caminho o grupo Imbangala de Cachana, o do sul, que tinha decidido meter a norte no encalço dos homens brancos. Ora acontece que esse Cachana era parente afastado do Cango, o soba que ajudava Silva Franco. E como já conhecia de ginjeira as facécias dos soldados lusos juntou-se aos que tinham sido até aí derrotados, refizeram um poderoso exército e infligiram uma estrondosa derrota aos portugueses. Os homens de Cango desertaram ao primeiro sinal da derrocada e deixaram os portugueses combater sozinhos. Morreram quase todos os que constituíam a caravana. Depois disso, nunca ninguém perdoou Silva Franco de ter sido um dos sobreviventes.
Assim começou a sua vertiginosa descida, da alta patente de tenente-coronel até às masmorras de Luanda. E tudo por causa de equívocos e pretensas cumplicidades com o seu novo escravo, Manoel do Salvador.


Em Portugal, a época pombalina designa um período da sua história marcado pela política “iluminada”, moderna, do Marquês de Pombal. Artificialmente delimitada no tempo entre os anos de 1750 e 1777, é a ela que se deve a onda política renovadora de que voaram em estilhaços alguns aparentemente indeléveis valores do Antigo Regime, o das monarquias absolutas europeias (“O Estado sou eu”, Luís XIV, França), dentre os quais se evidenciaram, no seio da nobreza portuguesa submetida a uma purificação implacável, a morte emblemática dos Távoras, nobres de boa e genuína estirpe, que acabaram os seus dias na Terra entre as mão dos algozes do Marquês, e o ostracismo a que foi submetida a congregação dos Jesuítas, alvo de críticas pesadas e concordantes, que levaram a que ela fosse simplesmente escorraçada do reino de Portugal.

II

A Luanda desse tempo vivia na euforia e na confusão nervosa de terra nova e movediça, assaltada por toda a espécie de excessos que a proliferação do tráfico de escravos gerava. A vida quotidiana luandense concentrava-se quase exclusivamente à volta das bermas da baía, e estendia-se pelas ruas e ruelas que subiam as barrocas, aqui até ao Palácio do Governador, ali até à lagoa do Kinaxixi, mais além até ao Alto das Cruzes, a encher os olhos com a paisagem de toda a baía e, quando o sol brilhava, lá ao fundo, o Mussulo. Com as suas ruas, ruelas e becos, como que tentáculos balizados por lojas e lojinhas, na sua maioria de “secos e molhados”, mais de molhados do que de secos, graças aos lucros da venda da geribita, aguardente vinda do Brasil que estimulava o afluxo de “homens propensos a taberneiros”, aqui e ali uma “casa de prazer”, muitos sapateiros e alfaiates, lojas de víveres, e algumas casas de família adstritas a uma indignação balbuciante, habitadas por militares, religiosos, honestos comerciantes e traficantes que por ali se encontravam, uns quantos, não muitos, desgarrados, a maior parte deles como peixe na água no meio da alegre confusão.
Luanda já tinha começado a vibrar ao som das vozes que o “iluminismo” pombalino inspirava, e na profusão de ideias renovadoras sobressaía o desejo de que a bela urbe da África Ocidental se ultrapassasse na sua caminhada nervosa e “modernizante” para ser a mais bela de todas as cidades, mais que Tânger ou Zanzibar, a mais bela de todas, do Cairo ao Cabo da Boa Esperança.
Os luandenses viviam intensamente essa época do tráfico negreiro, e na grande rede comercial que a cidade albergava, transitavam os agentes do negócio da escravidão: mercadores de Lisboa, comerciantes locais, africanos ou luso-brasileiros, e os mestiços, hábeis e profícuos na bicada ágil a todo o negócio que aparecesse de improviso. Dessa parcela da população luso-africana saíam por assim dizer todos os pumbeiros que iam buscar escravos ao mato, por vezes a mais de cem léguas da cidade, abastecendo-se em caminho nos locais próprios para tal, geralmente explorados por residentes de origem portuguesa. E na franja desse grande comércio actuavam outros tipos de agentes, marinheiros, exilados políticos, criminosos vindos de Portugal e dos Algarves, que chegavam a Luanda nos navios, vendiam produtos de baixa qualidade a crédito à população africana e, mediante a subtil utilização de estratégias financeiras desconhecidas pelas populações locais - juros, cauções, flutuações monetárias, etc. -, impediam o pagamento do crédito, submetendo assim os devedores africanos ao cativeiro por dívida.

Imagem: xiz-toria.blogspot.com

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