sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (8)


António Setas

Não é tudo, Sousa Coutinho, queria uma Luanda linda. Restaurou a Fortaleza de S. Miguel e a do Penedo de S. Francisco. Armou a primeira e fez construir novos muros na segunda, que passou a ter 80 peças de artilharia em vez das seis que lá havia antes. Mandou construir quartéis novos. Nomeou comandantes militares para defesa das três principais Praças da cidade. Fez abrir uma rua que ia da Nazareth à Fortaleza de S. Francisco, conhecida por “Passeio do Penedo”, com grandes e frondosas árvores. “Que o tempo & o descuido Consumirão depois da época do seu governo”. Fez construir a Casa dos Contos, ou Erário, contígua ao Palácio General, “aonde os Tribunais da Fazenda & Crime fazem as suas sessoens”. À parte a execução dessas obras, Sousa Coutinho exigia grande disciplina e zelo por parte dos seus funcionários, que, periodicamente controlados, deviam impreterivelmente apresentar todas as contas antes do fim do ano. Para resolver o problema de abastecimento de água à cidade mandou construir enormes cisternas nos principais fortes, e uma “no centro do pateo do Terreiro”. Mais, conseguiu abrir duas aulas de Estudo de Geometria e Verbo. Ainda hoje existem planos “da Cid. &Costa marítima desde S. Paulo thé Cabonegro, levantados e desenhados por discípulos mathemáticos (António Máximo de Magalhães, que atingiu a patente de tenente-coronel)”. Isto sem falar dos incentivos dados à criação de “arimos” (fazendas, lavras) nas cercanias de Luanda, principalmente para os lados do rio Bengo. Muitos militares receberam dispensa de serviço para poderem se dedicar ao cultivo de terras que lhes tinham sido doadas. E, enfim, as famosas minas de ferro, com o seu grandioso projecto de duas fábricas, cada uma com a sua povoação, uma com o nome de Nova Belém, junto ao rio Camucala, na Ilamba, a outra na jurisdição de Massangano, nas bermas do rio Luinha, chamada Nova Oeiras, tendo cada uma o seu almoxarife. Simples projectos no ar, mal assentes em terra ambunda.
Era o “modernismo” a invadir Angola. Toda a gente, dentre os representantes da etnia de raça branca, invasora, se preocupava, sobretudo com as consequências da promulgação dessas leis, pela simples razão de que até à chegada de Sousa Coutinho a defesa da Moral era um desejo sem consistência, respeito pelo outro apenas uma incógnita. Mas o Manoel pensava que era uma boa coisa, no seu entender em todas essas novidades havia pano para mangas, possibilidades de sobra para fazer progredir os mais talentosos, e não os que tinham mais força. E ele pensava estar bem preparado para responder a todos os reptos. Puríssima ilusão.

Entretanto, nos altos da cidade capital, os governantes preocupavam-se quanto à boa aplicação das novas leis e outras directivas. Mas a triste verdade não escapava ao juízo de Sousa Coutinho: tantas medidas para tão parcos resultados!... As minas de ferro de Oeiras, por exemplo, que chegaram a funcionar com 3 engenhos em elaboração e um açude!, traziam mais problemas do que benefícios, nunca chegaram a funcionar como convinha e viriam a ser simplesmente votadas ao abandono pelo seu sucessor, o que só veio a concretizar-se mais tarde, claro está, mas esta é a verdade. E, por mais que fossem promulgadas leis, nenhuma poderia acabar com as falcatruas, engenharias de toda a espécie e outros desmandos graves em exclusivo prejuízo das populações autóctones. Manoel do Salvador estava muito enganado. Apesar de ter relações privilegiadas com o seu dono, mais cedo ou mais tarde, e tanto mais cedo quanto mais depressa subisse no escalão social, seria chamado à razão e posto no seu lugar pelo primeiro homem de raça branca que se lhe metesse ao caminho, a contestá-lo, ou a opor-se às suas acções. A sua inteligência, anormalmente viva, permitiu-lhe várias vezes sair-se de situações embaraçosas por via de procedimentos, ou discursos subtis e astuciosos, que lhe evitaram mais de uma vez confrontos que ele sabia estarem de antemão perdidos, caso fossem um face a face com portugueses, ou luso-descendentes. Enviesava, esquivava, avançava dicas a levantar dúvidas, e fugia ao confronto directo como uma enguia se escapa das mãos do pescador. Nesta conjuntura, restava ao Manoel seguir os adeptos do verbo encher, sem se misturar com eles, senão esvaziavam-no, mas propondo-lhes outras maneiras de se encherem. Sabia onde estavam os seus limites, negro como era não poderia ir longe. Assim, na sequência do seu primeiro lance em terras do mwene Mussulo, foi ainda por esse lado que ele realizou o seu segundo negócio.

A dada altura, o mwene Mussulo teve alguns problemas a resolver com as autoridades portuguesas por estas terem sido postas ao corrente das visitas de ingleses que não tinham sido convidados por ninguém ligado a elas. O mais provável é ter havido denúncia por parte do contratador Domingos Dias, que tinha perdido o seu pumbeiro-mor e a possibilidade de continuar a fazer bons negócios na ilha. Bem entendido, não o fez directamente, mas por intermédio de um dos parentes do malogrado pumbeiro, que abriu o bico em seu nome, e denunciou aquela vergonhosa ofensa à pátria lusitana! Sousa Coutinho chegou mesmo a escrever uma carta muito comedida ao mwene, “mostrando-lhe a irregularidade do agasalho por ele dado aos navios estrangeiros”, recebendo em resposta a expressão do seu arrependimento, que sim senhor, o governador tinha toda a razão, mas... tinha acontecido, aconteceu, nunca jamais em tempo algum voltaria a acontecer. E a maka ficou por aí. Porém, os ingleses continuaram a aparecer no Mussulo, não em frente da vata (aldeia) do mwene, mas um pouco mais a sul, e aí, ele estava-se marimbando para o que os do Kwanza e da Kisama faziam com os ingleses.
Quem foi na jogada, sem dar conta ao mwene, foi o Manoel, que passou a ser “passador de renegados”, homens que tinham chegado a Angola para cumprirem uma pesadíssima pena de prisão e eram postos em liberdade pouco depois de chegarem a Luanda, talvez porque na cabeça dos Portugueses o facto de estar em Angola já era uma espécie de prisão, ou então algo parecido com uma terra de Ali Babá, sem caverna, aberta a todo o tipo de saque. Esses renegados, em termos de percentagem da totalidade de cidadãos de Luanda, oriundos da Metrópole, não se sabe ao certo quantos eram, 10, 20, ou 30%, mas, fossem quantos fossem, eram demais, devia-se-lhes quase tudo o que de mal se passava em terras do Ngola: putas, vinho, geribita, tráfico clandestino, assassínios, roubos, violações de toda a espécie, tudo o que o Diabo trás consigo, era da lavra desses celerados.
Alguns queriam fugir do cárcere (Angola) e o Manoel ajudava. Era um bem para eles, para Angola e para o próprio Manoel, que recebia uma boas gorjetas em troco do serviço prestado, ou seja, simplesmente apresentá-los aos ingleses como bons caçadores de escravos e vítimas inocentes do governo da colónia, só porque eram especialistas na caça ao escravo e tiravam o negócio aos Portugueses. E os ingleses percebiam perfeitamente, ou não percebiam, mas aceitavam os serviços dos renegados caçadores de escravos e pelo que recebiam em contrapartida como quantidade de “peças”, davam sempre uma choruda gorjeta ao Manoel.

Foi depois deste segundo negócio que Manoel de Salvador começou a aparecer trajado com aparato nas ruas de Luanda, provocando o já citado alvoroço entre os moradores das cercanias da casa do tenente-coronel e mesmo na Baixa, onde olhavam para ele como se estivessem em presença de uma ave rara.
Entretanto, o seu dono continuava a batalhar para sobreviver e conservar o resto de dignidade que lhe ficara dos seus sucessivos desaires, comprava e vendia tecidos, que nessa altura, e já desde há muito tempo, desempenhavam um papel importantíssimo na economia de Angola. Fazia-o com a ajuda do Manoel, que graças ao seu talento travesso e ao respeito de que o seu nome Imbangala, ka Imbe fruía nos meios da negritude, passou a ser nesses negócios de fazendas, e não só, na sua vida de todos os dias também, uma peça fundamental, preciosa, do absurdo jogo de xadrez que era a existência do tenente-coronel Silva Franco.
Até esse ponto tudo bem, não obstante ser, digamos, perturbante, para não dizer francamente suspeito, o enorme afecto que ligava os dois homens. Seriam homossexuais!?...Passemos a esponja.
Contudo, mesmo impossível de compreender era o facto de um homem como Silva Franco, sempre comprador de rações pequenas e a baixo custo nas lojas de secos molhados, e raramente frequentando as tabernas por lhe parecer dispendioso o sustento do vício do álcool, ter cabedais para pagar tão disparatada opulência do seu escravo. E, como que para provocar mais mujimbos, a Teresa apareceu diante de toda a gente adornada de imbambas caras, de cobre e de latão, sem falar do espelho, que ela guardava em casa e que era um luxo, sem falar das vezes em que o viram a distribuir dinheiro pelas pretas da Baixa, e sobretudo sem falar do que não dá para acreditar, que a namoradinha da ilha, a tal Rola Tunga, era sobrinha do soba... uma ova!, não havia Tunga nenhuma, nem Rola, nem pomba, nem o mais pequeno passarinho que fosse, o que o Salvador tinha na ilha, era uma mulher muito sua, dele e de mais ninguém. Chamava-se Berenice!

No espaço urbano de Luanda setecentista as diferenças entre os segmentos sociais eram, também, demarcadas pelos tipos de vestuário. Para os escravos ou soldados sem fardamento era usual vestir as entangas (tanga). As mulheres que recebiam a “alcunha de brancas” imitavam as europeias no vestir. As outras tinham seus vestidos “talhados à muçulmana”. “Os brancos, fuscos e mulatos civilizados se vestiam cristãmente”.

Imagem: anossaescola.com

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