quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

A Caixa de Chifre Preto. Crónica histórica romanceada (11)


António Setas

Após averiguação, concluiu-se que elas não vinham de sítio nenhum, eram próprias, incógnitas da terra, vá-se lá destrinçar o trigo do joio numa cidade em que o brigão se acasala com o patrão! Chamaram à barra o Silva Franco.
«Explique-nos o que se está a passar, senhor tenente-coronel, de onde vem o dinheiro do seu escravo?» O tenente-coronel apenas confirmou o que sempre tinha dito antes, que o Manoel “podia fazer a obra que quisesse” e que acreditava que o dinheiro “fosse por conta do que o irmão do preto enviava do Brasil”. Perante esta resposta tão amigável o juiz interrogou-o sobre a natureza do estatuto do réu e sobre a origem dos 45 mil réis que tinham servido para comprá-lo ao Henrique da Matta. A esse respeito, Silva Franco confirmou que o Salvador tinha ido procurá-lo com “uma caixa de chifre preto encapada em um pedaço de pano e amarrada com um mastro vermelho e lacrado e no fundo uma carta lavrada” juntamente com o dinheiro que o seu irmão mandara para fazer o resgate do cativeiro. Em seguida, o preto não se quis ir embora e ficou em sua casa a trabalhar como cozinheiro. Apesar destas declarações, que levaram o juiz a concluir que o Manoel de Salvador não podia ser escravo porque tinha apresentado carta de alforria e pago o resgate, a verdade é que durante todo o decorrer do processo, tal como ficou estabelecido no translado dos autos, o tratamento dado a Salvador foi o de “ o réu escravo do tenente-coronel”, expressão que ia mais longe do que o significado dado pela sua primeira leitura, pois englobava uma relação escravo-dono complexa, denotando, no mínimo, uma estreita cumplicidade entre os dois homens. Assim, no momento em que eles foram confrontados a respeito dessa relação, e depois do juiz ter perguntado ao Salvador se ele era ou não escravo do tenente-coronel, o Imbangala respondeu candidamente, “Eu sirvo ao tentente-coronel como um escravo, mas sou tratado como um forro”. (!)

À barra também foi chamado Henrique da Matta, o caixeiro da Companhia de Pernambuco, primeiro dono de Salvador. O seu testemunho foi um desastre para este último. Nele alardeavam-se factos comprometedores relacionados com os quilombos (mocambos) brasileiros, essas cidadelas erguidas no sertão, cercadas de estacas, fossas e labirintos, entradas falsas e armadilhas, para servir de refúgio e base de acantonamento de escravos fugitivos (os quilombolas). No século XVIII havia mais de 125 quilombos só na capitania de Minas Gerais, na Bahia muitas outras, e esparsas pelo território da colónia portuguesa da América eram centenas, cada uma albergando um número variável de quilombolas, entre algumas dezenas e mais de mil por quilombo. No interior destes, além das casas dos quilombolas, destacavam-se por vezes construções como a “casa do tear”, a “casa de pilões”, a “casa do conselho”, e a “casa de ferreiro”, por vezes mesmo, a “casa do rei”. Estas casas estavam localizadas no centro dos quilombos e separadas das demais. E dentre os atributos de cada uma delas, ressalta o prestígio atribuído à “casa do ferreiro”, que aponta para uma evidente referência à importância dada em África, nesse tempo, ao trabalho do ferro, fundamento em Angola, por exemplo, de um dos títulos políticos mais importantes da África Austral, o ngola a kiluange. Assim, tudo leva a crer que os quilombos se organizavam segundo um teor político-cultural africano. E em alguns deles havia mesmo um rei ou uma rainha, a quem o restante povo devia obediência. Quer dizer que esses pobres de Deus, fugidos de um cativeiro desumano, indigentes ao mais alto grau, reagrupavam-se em zonas retiradas do mato americano e tentavam reproduzir uma sociedade tipicamente africana, provavelmente com os seus lemba dya ngundu, makota e ilamba. Mas, apesar de alguns deles terem crescido a pontos de se tornarem ameaças para os colonos instalados nos seus arrabaldes, a sua expansão nunca foi muito mais além dessa temida ameaça.
Ora muito bem, o problema era que o Manoel de Salvador tinha em 1765, portanto numa altura em que ainda estava no Brasil, contribuído para a destruição do quilombo no Buraco de Tatu, na capitania da Bahia. À primeira vista esse lance até talvez merecesse uma medalha, caso a sua cor de pele fosse um pouco mais clara. Só que, ao tempo, sobraram dúvidas de que as razões que o tinham levado a colaborar com as forças armadas portuguesas estivessem mais ligadas a um acto de vingança do que a uma qualquer anuência ao espírito do conquistador. Em boa verdade ele tinha desaparecido de casa do senhor da Matta coisa de um ano antes e aparecera-lhe, depois de todos esses meses de ausência, num estado lamentável, sujo e ensanguentado, a clamar perdão, e a justificar a sua fuga com um resgate de que teria sido alvo por parte de um comando de quilombolas desse mocambo, que, por ele ser pouco mais ou menos assimilado, tinham medo que desse com a língua nos dentes e ajudasse as autoridades nas buscas que sem dúvida fariam no mato para encontrá-los. Ora essa razão deixava supor que o Manoel, antes de ter sido raptado, teria de livre vontade acompanhado os ditos quilombolas ao sítio onde eles já se tinham instalado. Que não senhor, que não era verdade, eles tinham era falado desse sítio, o do Buraco, ele só estava ao corrente por ouvir dizer. Por fim, o senhor da Matta aceitou as explicações, tratou dele e, mal o homem se recompôs, organizou-se a expedição que acabaria por encontrar o quilombo do Buraco de Tatu, aí com umas vinte ou trinta casas de pau a pique e teto de capim e, no centro, três casas grandes, a do tear, a do ferreiro e a do rei, com oito escravos escondidos, nem um a mais. Todos os outros tinham fugido.

Nas suas declarações ao juiz Nunes Portela, Henrique da Matta insistiu sobre todos os pormenores que fossem desfavoráveis ao Manoel. Depois de ter relatado esta lograda tentativa para capturar os escravos do Buraco de Tatu, acrescentou que muitas coisas estranhas se tinham passado durante a prolongada ausência do escravo, antes de ele lhe ter aparecido a clamar perdão com a sua estória esburacada. Primeiro, só depois do seu desaparecimento de casa é que os escravos das fazendas do interior, pertencentes às capitanias de Ihéus, Salvador e mesmo de Minas Gerais, também começaram a fugir e a levar consigo os melhores elementos das plantações, quase todos de origem “angola”; segundo, em quase todas as fazendas aparecia uma ou outra pessoa a dar conta da presença a um dado momento de uma negra muito bonita que dormia com o chefe dos jagunços e depois, de repente, deixava de aparecer, mas deixava sempre atrás dela uma caixa de chifre preto agarrada a um mastro vermelho e lacrado; terceiro, antes do Manoel ter sido vendido ao capitão do exército Gonçalo Fernandes por 45 mil réis, já ele, Henrique da Matta, tinha pensado enviá-lo para o Rio de Janeiro “junto com outros escravos também ladins (...) que os ditos escravos lhe tinham furtado cerca de duzentos mil réis de miçangas”.
Embora todas essas alegações não fossem abonatórias para a defesa de Manoel de Salvador, provas formais de roubo em casa do Surdo não havia. Porém, nesta altura do processo judicial ainda a procissão ia no adro, porque, pelo imenso alarde feito em Luanda a respeito deste caso insólito, quase inacreditável numa sociedade sustentada pelo dinheiro da escravatura, apresentaram-se como testemunhas 54 pessoas, exactamente, cada uma delas com queixas que pesavam sobre a conduta de Manoel de Salvador. Cinquenta e quatro pessoas que até essa data se tinham mantido caladinhas, de nada se tinham queixado, mas que agora, saltando sobre essa estupenda ocasião de verem os seus nomes publicitados por quase todas as bocas luandenses e retirarem algum benefício com a sua queixa, se apresentavam diante do juiz como vítimas dos pecaminosos feitos do escravo. De toda essa gente, incluída na lista de 62 cidadãos referidos pelo processo dos autos da devassa sobre Manoel de Salvador, contavam-se 16 logistas, 5 ajudantes de logistas, alguns alfaiates, na sua maioria originários do Rio de Janeiro, 10 militares, que também negociavam em tecidos e outros produtos, e uma variegada mistura de oportunistas de toda a índole, que procuravam neste acto público um meio de satisfazer as suas pretensões a algum protagonismo. A maior parte deles “vinha apolentar-se em cabedais”, e alguns, em todo o caso, vieram a ser no futuro os mais ricos comerciantes de Luanda, como por exemplo, o João Barbosa, então com 15 anos de idade, citado como testemunha nos autos por ter vendido uma catana ao Manoel. Esse rapazote, declarado como assistente da loja do tio, Francisco Rodrigues Barbosa, já nessa altura um dos mais prósperos logistas de Luanda, acabou por se separar do seu familiar para se tornar seu concorrente e ambos fazem parte de uma lista datada de 1810, com os nomes dos mais abastados comerciantes de Luanda. Outra testemunha, o Anselmo da Fonseca Coutinho, 30 anos, natural de Luanda, também consta nessa mesma lista, muito restrita, reservada aos “tubarões” da praça. E ali estavam eles, a ver se lhes caía qualquer coisa na goela, uma migalha que fosse, porque para “tubarões” não há migalhas, tudo é comida!

Durante todo o processo o olhar de quase todas as testemunhas dirigia-se para a maneira de vestir do réu. Algumas delas chegavam diante do juiz com uma única declaração: o réu andava “muito bem vestido e asseado para um escravo”. Jogava nessa fixação dos argumentos que visavam denegrir o escravo Manoel, o fascínio e o preponderante papel que os tecidos exerciam no seio das populações africanas. Com o desenvolvimento do comércio atlântico, ou seja, o que se praticava a partir das potências da Europa para a América, a África e as Índias, e a decorrente vulgarização dos tecidos europeus e indianos, pouco a pouco foi-se extinguindo o privilégio do uso de tecidos importados pelos soberanos africanos e os que faziam parte da sua Corte.

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