Um desabafo. Uma tristeza de quem por ser investigadora, Dalila Cabrita, se vê, de repente, atirada na lama, por quem não aceitando a realidade dos factos, Maria Eugénia Neto, sob uma couraça cobarde, pretende sonegar a história e esconder crimes hediondos, praticados em Angola em 1977, contra a humanidade, por quem tinha o poder nas mãos, António Agostinho Neto e o seu regime, para o evitar e nada fez, mandando para as câmaras assassinas da morte cerca de 80 mil cidadãos, todos do MPLA. O seu desapontamento deve-se ao facto de o processo que deveria chegar à fase de julgamento, cuja audiência está marcada há quase um ano com a equipa formada, vê a sua substituição total, com a nova juíza a adiar «sine die» o julgamento, declarando que não tinham sido recebidas das autoridades judiciais de Angola, as cartas rogatórias emitidas mais de um ano antes. Coisas de quem acusa e depois não tem coragem de manter as suas palavras em tribunal. Mas passemos ao que nos diz a autora do livro Purga em Angola.
Dalila Cabrita
Na sequência do adiamento da audiência de julgamento do processo em que sou assistente, permitam que recorde o ocorrido e expresse a minha opinião.
Em Outubro de 2007, depois de aprofundado trabalho de investigação, realizado com o máximo rigor nos métodos, nos processos e no uso das fontes, publiquei com meu marido o livro Purga em Angola. Aqui se relatam os acontecimentos ocorridos no dia 27 de Maio de 1977 e nos anos que se seguiram, quando dezenas de milhar de angolanos, homens e mulheres, novos e velhos, passaram por cadeias e campos de concentração, tendo sido sujeitos a aterradores interrogatórios. Com base em vários testemunhos, tudo leva a crer que 30 mil pessoas foram sumariamente fuziladas, sem nunca terem sido julgadas e sem se saber, ainda hoje, onde repousam as suas ossadas.
Agostinho Neto, então Presidente da República, deu o tiro de partida na corrida do terror, ao dispensar o poder judicial, em claro desrespeito pela Constituição que jurara e garantia aos arguidos o direito à defesa. Fê-lo ao declarar, perante as câmaras da televisão, que não iriam perder tempo com julgamentos. Tal procedimento nem era uma novidade, pois, na história do movimento que dirigia, tornara-se usual mandar matar os que se apontavam como «fraccionistas», estranha designação aplicada a uma frente política.
Neto deixaria a Angola o legado da máxima centralização de um poder incapaz de dialogar e de construir consensos, assim como de uma corrupção endémica. E os portugueses que nasceram e viveram em Angola, ainda hoje recordam o papel que teve na sua expulsão do país. Antes da independência declarava que os brancos que viviam em Angola há três gerações eram os «inimigos mais perigosos». Em 1974, duvidava que os portugueses pudessem continuar em Angola. Em vésperas da independência convidava-os a sair do país. E já depois da independência, por altura da morte a tiro do embaixador de um país de Leste, cuja viatura não parara quando se procedia ao hastear da bandeira de Angola, dirigiu-se, pela televisão, aos camaradas, para lhes dizer que era preciso cuidado, pois nem todos os brancos eram portugueses.
A expulsão foi uma decisão racial, já que a maioria dos portugueses eram simples trabalhadores, necessários ao país, pois sem eles a economia e os serviços passariam a funcionar mal ou deixariam mesmo de funcionar. Os resultados dessa expulsão continuam à vista. Tirando o petróleo, que representa mais de 50% do PIB, 80% das receitas do Estado e 90% das exportações, na Angola de hoje praticamente não existe indústria e, num país com condições agrícolas para alimentar toda a África, até os alimentos são importados.
Na revista «Única» do semanário EXPRESSO de 5 de Janeiro de 2008, a senhora D. Maria Eugénia, viúva do falecido presidente Agostinho Neto, concedeu uma entrevista em que declarou: 2
«[…] Aqui em Portugal, durante estes anos todos, estão sempre a repisar no mesmo assunto. […] Angola está sempre na berlinda. E com um ódio, de não estar lá ou de não usufruir das riquezas. É uma coisa impressionante. E agora surge o livro dessa senhora…».
Antes e em resposta à questão do número de mortos resultantes do 27 de Maio, insultou-me dizendo: «-Isso é mentira. Essa senhora é desonesta e mentirosa».
Não se contradita ninguém insultando-o. E também não se trata duma reacção emocional à «provocação» da jornalista, pois D. Maria Eugénia sabia o que lhe iam perguntar. De resto, estes insultos seriam o mote para ameaças de morte e para novos insultos.
Um mês depois, em 19 de Fevereiro de 2008, o oficioso Jornal de Angola publicava uma Declaração da Fundação Agostinho Neto, a que D. Maria Eugénia preside, afirmando que no livro publicado a «dita historiadora» Dalila Cabrita Mateus apenas diz mentiras, conta «mentira atrás da outra» e «manipula a história». Enganou-se, pois, o júri que me atribuiu o grau de doutor em História Moderna e Contemporânea com a mais elevada das classificações académicas.
Em Setembro de 2010, a senhora D. Irene Neto, agora testemunha de sua mãe, dizia ao jornal O PAÍS que a signatária pega «numa afirmação que a mãe fez de que ela é mentirosa e move [um] processo de difamação, quando em Portugal passam a vida a dizer que o Primeiro-Ministro é mentiroso, mas não têm processo algum». Dizia, ainda, que «os historiadores são utilizados por estes ou por aqueles, pagam-lhes».
E de novo no oficioso Jornal de Angola, Artur Queiroz, também testemunha de D. Maria Eugénia, num artigo intitulado «Excrementos de Cabrita», lança um «festival de impropérios» na sugestiva imagem dum jornalista angolano. Agora, a signatária não era só mentirosa, mas também provocadora, embusteira, aldrabona, impostora, aberração intelectual, leprosa intelectual, falsificadora da história, pobre diaba. E até assinava «modestamente com o diminutivo, quando nem o aumentativo dava nota da sua baixeza moral».
Na sua milenar sabedoria, diz o nosso povo que «quem não se sente, não é filho de boa gente». Considero-me filha de boa gente. E não gosto que me insultem ou tentem impedir-me de investigar e de escrever. Apresentei, pois, queixa contra D. Maria Eugénia Neto, pelo crime de difamação agravada.
Em todo este processo, são muitos os silêncios cúmplices. E também não faltam as acções de ajuda à tentativa de impedir a denúncia de um «crime contra a Humanidade», dos tais que não prescrevem perante as leis internacionais.
D. Maria Eugénia, como diz a sabedoria popular, é do género de «bater e fugir». Soube insultar e promover o insulto. Mas procurou, desde a primeira hora, escapar às suas responsabilidades, chegando a arvorar-se em vítima. 3
Na fase de inquérito, o Ministério Público não a conseguia encontrar de modo a constituí-la arguida, embora fosse portuguesa e tivesse residência em Lisboa, onde vem frequentemente, ainda que, do alto da sua importância, entre com passaporte diplomático para não se misturar com a plebe.
Devolvido o processo à signatária, esta apresentou acusação particular que foi acompanhada pelo Ministério Público. Mas, em vésperas da distribuição do processo para julgamento, D Maria Eugénia pediu a abertura da instrução, solicitando a audição duma série de testemunhas por carta rogatória. O Juiz de Instrução considerou não ser necessário ouvir testemunhas, pois os elementos ao seu dispor mostravam claramente estar-se perante um crime de difamação agravado. E foi nesse pressuposto que, há mais de um ano, foram marcadas duas datas para a audiência de julgamento.
D. Maria Eugénia veio, agora, pedir dispensa da presença na audiência de julgamento, por motivos de saúde e de idade, mau grado, na semana anterior, ser publico ter estado na Feira do Livro de Belgrado, na Sérvia. E, possivelmente, até passou por Lisboa, a caminho de Luanda. Entretanto, numa carta emitida no passado dia 15 de Novembro, a signatária seria notificada do despacho da Juíza de Direito encarregue do processo, adiando a audiência de discussão e julgamento marcada para o dia seguinte, 16 de Novembro, pelas 9 e meia da manhã. Adiamento «sine die», pelo facto de as autoridades judiciais de Angola não terem dado cumprimento à carta rogatória pedida por D. Maria Eugénia e emitida em 27 de Outubro de 2010, para a audição em Angola das testemunhas Rui Mingas, Irene Neto e Artur Queiroz.
A signatária não gosta de pleitear. E D. Maria Eugénia poderia ter evitado que o processo chegasse a tribunal. Bastava ter pedido, no mesmo jornal em que os proferira, desculpa pelos insultos, reconhecendo que o livro Purga em Angola resultava de um trabalho de investigação realizado com o máximo rigor nos métodos, nos processos e no uso das fontes. E, como é usual, pagasse a indemnização compensatória dos danos materiais e morais causados, indemnização muito longe dos 300 mil dólares que exigiu a um jornal angolano que informava do facto de estar a reclamar uma pensão anual de 10 milhões de dólares. Contudo, até agora, D. Maria Eugénia não o quis fazer, apostando antes em expedientes e manobras dilatórias, na esperança de que levem à prescrição do processo.
Volto a reafirmar a minha confiança na justiça portuguesa. E nem me passa pela cabeça que um qualquer magistrado possa pactuar com manobras dilatórias realizadas com a cumplicidade das autoridades judiciais angolanas, deixando prescrever o processo que corre termos no 1º Juízo Criminal de Lisboa. Por isso, resta-me fazer votos para que o julgamento se realize o mais depressa possível e para que nele se faça Justiça.
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