Num monumental panfleto ditirâmbico, publicado no Jornal de Angola, o general José Maria, chefe dos Serviços de Inteligência Militar, também conhecido como general “Coca Cola” começa com uma espécie de “Os Lusíadas” africano, isso mesmo, uma ode universal à grandeza de José Eduardo dos Santos, idolatrado até aos píncaros do absurdo e dos seus heróis, “As Angolaníadas”!
William Tonet & Arlindo Santana
Nunca em tão pouco tempo se havia assistido, num texto só, tanta bajulação, prejudicial ao próprio bajulado, por parte de uma pessoa próxima logo suspeita. Senão vejamos.
«Eu canto, pela métrica de Virgílio, as Armas, os 23 anos de guerra e o Homem que os soube enfrentar (…) eu canto os nove anos de paz, premissa essencial e necessária para a Reconstrução Económica e Social de Angola. Eu canto o Homem que enfrentou as agressões militares do maior Exército a sul do Sahara e que venceu a subversão da UNITA, resoluta e obstinada na tomada do poder pela força das armas (…)»…
E por aí fora, num esbanjar sem medida de exaltação político-religiosa, até chegar ao ponto a que o general, Poetarmado, queria chegar:
«Eu canto o Heróico Povo Angolano e o seu clarividente timoneiro, imperturbáveis perante a fragrância fatal do jasmim inebriante, possessivo, extasiante, vindo do Norte de África: Egipto, Síria, Líbia, Iémen e Tunísia – a antiga Cartago, hospedeira de Eneias, ouvido por Dido rainha, sobre a Tragédia de Tróia. Entre nós, alguns existem comandados de fora, que nos querem tamanha e semelhante desgraça. Não há espaço em Angola para os “cavalos de Tróia” da nova vaga, nem para qualquer tipo de “Primavera”, mesmo forjada pelas novas mudanças climáticas, já que temos tão somente duas estações do ano».
Pronto, já está!, devia ter pensado o Poetarmado ao chegar a este ponto da sua ode, «agora é só enquadrar toda esta grandeza no meio do caos político que rodeia o paraíso de estabilidade política angolano», e saltou dos nimbos em que se metera e pôs os pés em terra firme.
Os espinhos das flores Árabes
Primavera ou Inverno? Eis a questão. A preocupação do general é alertar todo o povo de Angola contra as armadilhas decorrentes da “Primavera Árabe”. Na sua opinião, ou melhor, na opinião bem escalpelizada na conceituada revista “Afrique Asie” de Dezembro (págs. 16 a 30), à “Primavera Árabe” começa a suceder-se o “Inverno Islâmico”. E, nesta sua chegada a terra firme, o Poetarmado reproduz algumas pertinentes interrogações levantadas por intelectuais maghrebinos. A análise desses intelectuais, entre os quais o politólogo tunisino Mezri Haddad e o grande pensador egípcio Samir Amin, em geral, é sem contemplações para os Estados Unidos e para a França, «cujo humanismo universalista se evaporou a favor de um atlantismo suicidário. Nem para o ‘Qatrael’, esse cavalo de Tróia ao serviço do império para destruir todos os estados nacionalistas…»
As monarquias do Golfo agem por conta própria ou por conta das potências estrangeiras, como sugere o politólogo tunisino Mezri Haddad?”
O islão político saberá dar uma resposta diferente do ultraliberalismo Ocidental?
O surgimento, em força, dos partidos islâmicos, surge por conta própria ou por conta das potências estrangeiras, (Mezri Haddad)?”
“Após décadas de estabilidade e estagnação políticas, o mundo árabe é, desde o início deste ano, o teatro de agitações geopolíticas recorrentes. Qual o perigo de resvalar para islamismo radical e integrista?
Mezri Haddad pensa que esta é uma revolta social autêntica e legítima disfarçada de insurreição política. Ele acusa claramente a administração americana e ao que ele chama o ‘Estado-Televisão do Qatar’, de serem os principais instigadores.
«Sem mergulhar na teoria do complô, Mezri Haddad pensa que essa conspiração contra a Tunísia, em nome da democracia, é parte de um plano estratégico americano, estabelecido pelos neo-conservadores e retomado na íntegra por Obama, desde a sua chegada à Casa Branca, para servir um desiderato geopolítico muito maior. Ele acusa o presidente americano de ser “um falcão com asas de pomba” (…).
Continuando nesta senda, o intelectual tunisino, seguido de perto pelo pensamento de Samir Amin, alude ao facto de ter sido graças à brecha aberta pelas revoluções “Primavera Árabe, da qual não fizeram parte os islamistas, que estes últimos voltaram em força, consubstanciando um plano que estava nas linhas e entrelinhas da alambicada estratégia política Ocidental, particularmente dos EUA e de Obama. E como provas, ele argumenta que o Tio Sam decidiu, há muito tempo, jogar a carta do islamismo ‘moderado’ não só na Tunísia mas em todo o mundo árabe e muçulmano.”
Os falsos profetas
Depois de ter posto o pé em terra firme, o Poetarmado chega enfim à mãe Pátria, a sua Angola do Coração.
“Alerta! Vade retro Satanás”, grita ele.
Satanás em Angola é a Voz da América e, subentendido, toda a imprensa que se recusa a lamber as botas de JES/MPLA. E o Poetarmado revela, «(…) calculando que o “efeito jasmim” tinha chegado a Angola, sem a mínima satisfação às autoridades Angolanas, surpreendendo todos, a rádio Voz da América, fazendo jus ao modus operandi da grande potência unipolar, fez a rentrée espectacular do antigo programa da Vorgan, arranjado e retocado para Angola, o fantástico “Angola Fala Só”, depois de abandonada, há 19 anos, a plataforma em que as duas operavam sobrepostas na Base Aérea Militar Americana desdobrada no Botswana. Alguns videntes observaram, pela sua bola de cristal, que o “efeito Jasmim” ia resultar de forma irreversível na “Primavera Bantu”, cujo epicentro de irradiação era Angola para toda a África Central. Que fazer com os falsos profetas»?
Assim sendo, para o heróico general, nas vestes de comentarista político ocasional em defesa da “Sua Dama”, o primeiro reparo vai para o presidente Barack Obama e o Departamento de Estado do EUA que não agiram de forma consentânea com o espírito que deveria reinar entre dois aliados estratégicos como são Angola e os Estados Unidos.
É que ao permitir que a Voz da América” por via do programa “Angola Fala Só” ponha a sua antena ao serviço de arautos arruaceiros, o aliado americano transformou essa rádio «em máquina incentivadora da mobilização apelativa da intervenção do Conselho de Segurança da ONU e da OTAN, comandada pelos Estados Unidos e pela França, para agir contra o Presidente de Angola como fizeram contra Gbagbo e contra Kadhafi». E, daí a inferir que as manifestações de rua que se têm realizado em Luanda sejam consequência não só das imprecações proferidas à antena da “Voz da América”, nomeadamente na sequência de discurso insultuosos e despudorados contra o Presidente da República, como, por exemplo, esse que foi da lavra do senhor Numa, no Lobito, no dia 06.06.2011 e a grande coincidência entre o início das manifestações verificadas no Largo da Independência a 2 de Abril de 2011 e o início do programa “Angola Fala Só” a 1 de Abril de 2011! «Será possível estabelecer uma relação de causalidade entre a coincidência e a evidência?», pergunta o Poetarmado.
Alerta! A Pátria está em perigo
Pois está! E da nada serve seguir os passos do Poetarmado no seu hino à glória de JES. Por aí não vamos a lado nenhum, como está demonstrado em 32 anos de demonstrações de grande engenhosidade política para se manter no Poder, mas infelizmente semeado por sucessivas e frequentes mostras de incapacidade para governar, unir o povo, e olhar em face a triste realidade angolana, que continua, depois de quase dez anos de paz podre a arrastar-se nos subterrâneos de todos os rankings mundiais de Desenvolvimento Humano.
Mesmo assim, saia mais um Canto:
«Eu canto o Homem, que, pela voz bem timbrada de Rui Mingas, tem defendido “a Bandeira que os Meninos do Huambo ganharam”, sem qualquer exclusão (…)», canta o Poetarmado, negando a realidade discriminatória e sectária vivida durante mais de três décadas por imposição expressa do regime, e isso para anunciar o intróito de mais um canto magistral, do ponto de vista infantil, a JES, ao que se sucede um comovente subtítulo:
Piedade para os vencidos
Mais um canto à glória de JES:«Eu canto para que os jovens entendam esta simples expressão algébrica: x = a + b + c = 32, 32 ANOS que são o fundamento do Rumo que o País tem» (????....). A saltar assim, de ode em ode e de canto em canto, o Poetarmado mergulha com manifesto prazer nos clássicos, cita Voltaire e La Fontaine, o grego Eneias, mais adiante, Marco Polo, Sillas e Júlio César, e continua a dar lustre à desgastadíssima imagem de JES.
A certa altura o discurso poético muda de tom e o improvisado general-analista envereda pela descrição “sinóptica” de todas as detrições causadas não pela guerra civil, mas exclusivamente pela UNITA, o MPLA não mexeu nem num tijolo, atravessou com um Anjo da Guarda da Pátria incólume e impoluto, e daí a chegarmos ao topo dos tópicos, a infinita bondade de JES ao poupar a vida aos seus inimigos vencidos. Erro que, no sentimento profundo do Poetarmado, pode ser considerado grave.
A aí vai mais um Canto, mais um, não, muitos Cantos panegíricos, acreditem:
«Eu canto o Homem (JES)…».
«Eu canto o visionário…»….
« Eu canto a coragem, a firmeza, o sacrifício do Homem durante estes 32 ANOS….»…
« Eu canto o Homem, o Presidente, o Estadista, o General, o Pacificador, o Defensor e Protector do Estado Angolano…»….
Eu canto! Eu canto! Eu canto…
E a rematar: «Eu canto a grande humildade que o Homem (JES) revelou, na comemoração do seu 68º aniversário, 28.08.2010, no jardim da Cidade Alta, contida nas seguintes palavras: “Ninguém sabe tudo. Ninguém pode tudo.”
Tantas vezes, general?!, Não terá sido Canto a mais?....
Enquadramento da Epopeia “As Angolaníadas”
Com tantos tiros dados nos seus próprios pés, alguns deles parecidíssimos com autênticas bombardas, o general Zé Maria vem atravessando um mau passo da sua vida, consagrada quase exclusivamente à salvação da sua Pátria querida, Angola do Seu Coração - que Deus o abençoe por isso, mas não chega para ter paz na Terra entre homens de boa vontade.
Na sua luta contra os inimigos da Pátria, esse destemido e inflexível adulador de JES, à parte ter continuamente confundido inimigos da Pátria com os oponentes políticos do seu Ídolo, pôs acima de tudo e de todos a sua imagem, e o exagero foi tanto que em seu redor muitos dos seus colegas começaram a olhá-lo com perplexidade e mesmo com alguma desconfiança. É que o que é demais é erro, e o mal do general é precisamente esse. Ele é demais em tudo, tanto para o Bem como para o Menos Bem e para o Mal.
Tirando os aludidos tiros nos pés que o general deu a si próprio, que são muitos e não vale a pena descrever aqui, há o seu comportamento de irrascível comanditário da pureza disciplinar a valer-lhe alguns dissabores, sendo um dos últimos um verdadeiro desastre pessoal que lhe valeu ser ameaçado de morte por um dos seus subordinados. Imaginamos sem dificuldade alguma o trauma que lhe foi causado por essa intempestiva reacção do oficial e soldado da UGP que o ameaçaram. Estamos conscientes de que o que se passou depois disso, com todos os outros sodados da UGP, alguns deles com alta patente, a porem-se do lado do capitão e a obrigá-lo a uma retirada estratégica, encolhido e de mansinho, para que o drama não aconteça, causou-lhe imensos prejuízos, não só psicológicos, mas também para o prestígio de que fruía no seio da sua prestigiosa corporação.
Dada a conjuntura criada por esta sequência de acções e reacções, assim como as que se seguiram, compreendemos que o general Zé Maria teria podido sentir que a profunda arranhadela sofrida pudesse ser levada negativamente em conta pelo presidente da República, o seu idolatrado Chefe Supremo, e que se lhe apresentasse como sendo urgente dar uma de mão à adorada imagem do “Homem”, com uma boa (monumental) escovadela da sua imagem, contrapondo assim algo de válido às suas derrapagens.
O artigo que temos vindo a comentar, passe a demonstração de grande apego ao conhecimento dos clássicos de que o general deu prova, peca pelo DEMAIS.
Chega a ser ridículo, e isso é tanto mais confrangedor quanto é certo que reconhecemos no general não só os seus detestáveis defeitos, mas também as suas virtudes, entre as quais a sua vontade de saber e a sua capacidade mental, presente num raciocínio lógico sustentável, apenas tolhido pela sua visão parcial da história de Angola e da conjuntura actual, amputada voluntariamente de tudo o que é erro do regime. Por exemplo: na guerra civil, a UNITA destruiu tudo e o MPLA não destruiu nada, coisas assim a granel.
Uma Voz do Povo
Para terminar, o comentário de João Loaka ao texto do general Zé Maria. «Refutaria esses cantos com outro canto da liberdade, um hino à restauração do espirito de Fevereiro. Cânticos a denunciar o império faraónico do clã, objecto do teu canto; a denunciar a filha primogénita de José Eduardo dos Santos entre as 10 mulheres mais ricas do mundo, sem ter herdado fortuna dos seus ancestrais nem do seu pai; a impunidade dos violadores dos direitos humanos; as milhares de vítimas de desalojamentos forçados; gente excluída sem sequer ter bilhete de identidade; cerca de 10 anos depois do fim da guerra não sabemos exactamente quantos somos; não foi feito um censo populacional, essencial a qualquer plano de desenvolvimento.
Já faltou mais para que a liberdade negada desde 1975 seja alcançada.
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