Desde finais do mês de Outubro até esta data, o F8 tem vido a revelar aos seus leitores uma versão sobre um caso despoletado por um vice-ministro das Finanças, já exonerado, não se sabe se por isso mesmo…, e alavancado pela Procuradoria-Geral da República, que, bem analisado, é certamente dos mais espantosos, escandalosos e monstruosamente fora do normal do mundo. Repetimos: do mundo! Não é de Cabinda ao Cunene, é do Pólo Norte ao Pólo Sul e de Luanda a Luanda a dar a volta ao planeta. Um assalto jamais visto, único!
Willian Tonet & Arlindo Santana
Hoje trazemos a liça algumas questões cuja pertinência jurídica é importante, julgamos, a sua retenção e análise, porquanto o “Caso do Saque do BNA”, não pode ser encarado como tendo sido perpetrado, pelo que nos dá a ver a parte visível do iceberg, por “Zés-Ninguém”, detentores de baixas e médias patentes, como responsáveis do desvio para as suas contas bancárias um quanto “canhotamente”, diga-se a verdade (propositadamente?...), de uns largos milhões de dólares.
Uma questão importante em todo este caso, para credibilização da imparcialidade da investigação é o de se saber em que pedestal a PGR coloca, no caso, o Banco Nacional de Angola:
a) é uma empresa pública?
b) é um governo autónomo gestor dos grandes capitais do Estado e públicos?
Desta distinção se poderá visualizar a incidência e responsabilização criminal do(s) agente que com os seus actos premeditados, negligentes ou dolosos escancarou os cofres de tão importante instituição, para o saque milionário.
Chegados a esta margem, não se pode ilibar os vários governadores do BNA, que com a sua assinatura tornaram lícitos todas transferências, não colhendo a tese de terem sido aldrabados, por esta figura não estar capitulada na norma jurídica, ao contrário da negligência consciente.
Nestes casos (negligência consciente) o agente previu a verificação do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria acreditou na sua não verificação, e só por isso não tomou as providências necessárias para o evitar. Ou seja: neste caso os vários governadores e administradores da SENHA A, previram o resultado como possível, mas confiaram, apesar disso, em que ele não viesse a produzir-se. Esta circunstância permite, pese ser ténue a fronteira da forma de culpa do agente ou agentes, quanto a sua actuação, se apenas no quadro da negligência consciente ou do dolo eventual.
No caso, não pode haver leviandade na apreciação da acção dos governadores e administradores de topo do BNA, porquanto eles tinham o dever de não deixar de observar os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente deve adoptar, sendo o seu comportamento grave ao omitirem os deveres de cuidado, porquanto a omissão, nestes casos, só é encarada na esfera de uma pessoa especialmente descuidada e incauta que deixa de respeitar os procedimentos internos.
Pela dinâmica e normativos do BNA, como vimos acima, nem todos os administradores podem ordenar, com a sua assinatura a execução de uma operação, acima dos USD 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil dólares). Logo, no caso de valores acima de um milhão de dólares, apenas o governador do BNA e mais um administrador de topo, detentores do código de senha A podem, com a aposição da sua assinatura, validar a operação. Daí a responsabilidade final de qualquer operação caber ao governador, ainda que na preparação haja procedimentos menos correctos. “Compete ao governador do BNA, com base no sistema informático, antes de liberar qualquer operação ao estrangeiro, fiscalizar uma ou mais vezes se está tudo correcto. Se agir em contrário a sua omissão é cúmplice, logo materialmente responsável”, disse ao F8, o economista Matondo Mainga.
Aqui chegados estamos diante de um “Crime exaurido”, também conhecido como “crime de empreendimento” ou “crime excutido”, por se caracterizar como um ilícito penal que fica perfeito com o preenchimento de um único acto conducente ao resultado previsto no tipo.
Por aqui se constata que o acto final, consubstanciado na assinatura dos governadores e ou administradores, permitiu com a consumação de um só acto de execução, à realização completa e integral das operações bancárias internacionais pretendidas.
O eminente jurista e professor, Jescheck, na sua obra (Tratado de Derecho Penal, ed. 1981, vol. Ι, págs. 715 e 754), considera que “o sentido do delito de empreendimento é agravar a reacção jurídico-penal, equiparando a tentativa e consumação e impedindo assim a atenuação da pena na tentativa,”, esclarecendo ainda que “o empreendimento castiga-se como a consumação” e daí não ser possível a desistência, por se tratarem de crimes que ficam perfeitos com a comissão de um só acto crime formal com antecipação de punição (falsificação e outros).
Assim ao anunciar ao público em Novembro de 2009 a detecção de uma série de pagamentos falsos a partir dos cofres do BNA, a Procuradoria-Geral da República deu a sua versão dos factos ocorridos, resumidos no artigo 144º do processo por si instaurado contra os arguidos deste caso penal:
«De data imprecisa de 2007 a 20 de Novembro de 2009, os arguidos, causaram ao Estado um prejuízo, que totaliza um valor global superior a USD 159.971.671,00 (cento e cinquenta e nove milhões, novecentos e setenta e um mil, seiscentos e setenta e um dólares americanos), do qual USD 15.900.000,00 (quinze milhões e novecentos mil dólares americanos), referentes ao período de 2008 e USD 144.071.671,00 (cento e quarenta e quatro milhões, setenta e um mil, seiscentos e setenta e um dólares americanos), referentes ao período de 28 de Setembro a 20 de Novembro de 2009, sendo USD 42.078.082,00 (quarenta e dois milhões, setenta e oito mil, oitenta e dois dólares americanos) referentes ao mês de Setembro e USD 101.993.589,00 (cento e um milhões, novecentos e noventa e três mil, quinhentos e oitenta e nove dólares americanos) referentes ao mês de Novembro de 2009».
Os arguidos deste caso, exceptuando um superintendente-chefe, são indivíduos de baixa ou média patente (até essa data 27 pessoas no total). Os números avançados pela PGR, tirando os referentes ao período de 28 de Setembro a 20 de Novembro, não parecem muito fiaveis, e, como se a verdade não fosse uma componente fundamental da maneira de governar do regime vigente em Angola, no dia 28 de Janeiro de 2010, já depois de terem sido efectuadas no penúltimo fim-de-semana de Janeiro de 2010 e na segunda-feira seguinte, dia 25 do mês, as primeiras detenções dos “caçadores do Tesouro Nacional”, um dos nossos confrades publicou uma entrevista do Procurador-geral adjunto, Domingos Salvador Baxe, que, sem se demarcar de uma evidente satisfação, se saiu com as seguintes assertivas, quiçá involuntárias:
«(…) a primeira etapa desta fase foi concluída com a recuperação de 90 por cento dos valores desviados, sendo que agora (em Janeiro de 2010) decorre a investigação e a consequente instrução do processo para que se possa chegar à fase final com êxito».
INCORRECTO.
«(…) Altos oficiais das FAA e da Polícia entre os detidos».
INCORRECTO.
«(…) As diligências efectuadas pelas autoridades angolanas parecem estar a ser frutíferas. Se anteriormente permitiram a recuperação de 90 por cento do valor desviado, na curta entrevista ao nosso confrade o alto magistrado revelou ainda que as acções em curso permitiram recuperar já grande parte da diferença que estava em falta».
INCORRECTO.
«(…)A recuperação do dinheiro (supostamente mais de 90% do total desfalcado), ao que sabe, deveu-se ao facto de as autoridades angolanas terem bloqueado a tempo as transferências junto de alguns circuitos internacionais, que posteriormente procederam à sua devolução a Angola».
INCORRECTO.
«(…) Nesta altura, estão a ser confiscados todos os bens dos implicados neste caso cujos resultados deverão ser trazidos à tona nos próximos dias».
INCORRECTO.
«O magistrado reconhece que pela sua natureza, a informação avançada ainda não satisfaça a curiosidade dos cidadãos, por encontrar-se na fase de segredo de justiça, mas garantiu que este processo não cairá no esquecimento como muitas pessoas julgam, tal como outros que ainda correm naquela instância».
INCORRECTO.
Neste balanço do Procurador-geral Adjunto terá faltado uma visita ainda que restritiva ao conceito de autoria. É um crime de lesa pátria esquecer que a simples contribuição para a produção do resultado, mediante acções distintas das típicas, não possa fundamentar a imputação da autoria.
Nesta perspectiva, os outros intervenientes, no caso os 27 detidos, que só determinaram o autor a realizar o facto punível, ou o auxiliaram, teriam de ficar impunes se não existissem os especiais preceitos relativos à comparticipação.
Isto por o Código Penal considerar autor todo aquele que contribuir para causar o resultado típico sem que a sua contribuição para a produção do facto tenha que consistir numa acção típica do qual assenta a teoria da condição sien qua non
Assim, também o cúmplice e o encobridor são autores, segundo o articulado 19 do Código Penal.
Porém é a teoria do domínio do facto que se apresenta como eixo fundamental de interpretação da teoria da comparticipação e de análise do art.˚21.˚ CP.
Autor é, segundo esta concepção “os quer concorreram directamente lopara facilitar ou preparar”, de tal modo que dele depende decisivamente o “se” e o “como” da realização típica.
A trilogia de formas de autoria prevista no art.˚24.º do CP (conexão entre o encobrimentio, a cumplicidade e a autoria), coloca-nos, necessariamente, no campo de não ser descurado, no caso do BNA, a responsabilização de quem tinha o poder e dever de fiscalizar, por dominar os procedimentos na medida em que é ele próprio quem procede a realização típica, domina o facto mesmo sem nele tipicamente participar, quando domina o executante através de coacção, de erro ou de um aparelho orgânico de poder ou ainda dominar o facto através de uma divisão de tarefas com outros administradores, directores desde que, durante a execução, possua uma função relevante para a realização típica.
A MORTE DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA
Importa discernir o facto de até ao momento, apenas ter sido feita a acusação por parte do Ministério Público, enquanto órgão fiscalizador da legalidade e, no caso, também responsável pela instrução, faltando pelo correr dos prazos a pronúncia.
Ademais, no caso em concreto, tirando alguns sacos contendo dólares, apanhados na posse de uns poucos elementos a maioria do dinheiro que a PGR diz ter recuperado, baseou-se no sugar das contas pessoais dos arguidos, para uma conta da Procuradoria.
Ora do ponto de vista legal, com este comportamento de retirada, compulsiva do dinheiro das contas particulares, sem qualquer mandado judicial, por parte do Ministério Público, parece, salvo melhor opinião, ter havido flagrante violação do princípio de presunção de inocência dos cidadãos. Em fase de investigação, havendo fortes suspeições, o dinheiro e ou bens dos arguidos, como recomenda o código processual económico, devem ficar as contas individuais bloqueadas a qualquer movimentação, sendo os respectivos bancos os seus fiéis depositários, quanto a fiscalização.
Após trânsito em julgado, apurando-se a ilicitude dos arguidos, então, por decisão judicial procedesse a transferência dos capitais roubados e ou burlados, para os cofres do Estado, mediante transferência, sempre com assinatura dos titulares, enquanto vivos.
Isso porque, no processual penal económico o ónus da prova não competir ao investigador, mas a quem é detentor da fortuna, que se julga ilícita. Competindo assim, ao indivíduo, em sede de investigação, provar como é que enriqueceu. O contrário pode desvirtuar o carácter de imparcialidade do órgão investigador.
Nove meses depois… F8 põe à sua lupa para colaborar com a verdade
Como amplamente noticiado durante todo o mês de Novembro pelo F8, em manifesta e profunda contradição com o que foi divulgado pelas autoridades de justiça, o total das perdas para o erário público não foram de mais de 159 milhões, a deixar entender “um pouco mais”, mas sim mais de 324 milhões de USD, montante de que mais adiante daremos uma explicação. Esse montante foi sacado dos cofres do Estado - de facto da sua conta única do BNA, a do petróleo – CUT-ME - e ainda deve andar por aí a voar, pela Europa, Antilhas, vários “paraísos fiscais e…e Angola.
O dinheiro alegadamente recuperado evidentemente que não corresponde, nem de longe se aproxima, dos anunciados 90% do desfalque. Menos de 100 milhões corresponde a qualquer coisa como 30% do total roubado. Ademais, o termo “recuperado”, lançado ao ar em Janeiro deste ano pelos chefes da PGR, refere-se não à realidade dos factos dessa altura, mas sim a um desejo, quer dizer, ao dinheiro que ainda estava fora do país, tinha sido bloqueado e se requeria que fosse devolvido ao BNA. A sua recuperação, se é que foi concretizada (o secretismo habitual), teria sido mais tarde.
Quanto às altas patentes das FAA e da Polícia, pelo que mostra a parte visível do iceberg, não há, até hoje, nenhuma, tirando a do superintendente-chefe, Manuel Augusto Martins, “Safardão”, mas também, o que é caricato nenhum dos administradores, dirigentes e empresas responsáveis pelas operações, mas tão somente, aqueles que indicaram contas e forneceram contactos, cujo enquadramento fica numa fronteira muito ténue da conexão entre encobrimento, cumplicidade e autoria.
Um outro ponto que merece um novo enfoque é o que diz respeito aos “mais de 324 milhões de dólares” de desfalque total que aqui referimos, quando nas nossas edições anteriores tínhamos admitido que esse montante era de “mais de 340 milhões” De relembrar que, prudentemente tínhamos escrito que tal montante era “mais consentâneo com a realidade”. O que aconteceu foi o seguinte: ao adicionarmos todos os pagamentos levamos em conta os 15.900 milhões (4.900.000,00 à “CUP-CUP” e 11.000.000,00 à Linkvalor, SA) que também estavam incluídos no total de USD 159.971.671,00 (cento e cinquenta e nove milhões, novecentos e setenta e um mil, seiscentos e setenta e um dólares americanos) anunciados pela PGR em Novembro do ano passado. Assim, esse montante foi contado duas vezes, pelo que para ser exacto, devemos subtraí-lo dos 340, o que dá os tais mais de 324 milhões de dólares que realmente saíram dos cofres do BNA.
Um silêncio doentio
Temos plena consciência da importância que tem e cada vez mais terá este caso, a partir do momento em que ele seja divulgado no estrangeiro. Este regime não pode continuar a ser visto como uma fachada roída nos alicerces, e mais o tempo passa, mais ele ameaça cair. Tudo não pode parecer estar baseado no “Stûûd”, quer dizer, na “combinazione”, no desassossego da corrupção, na cumplicidade dolosa, no cambalacho, no compadrio, no sectarismo e no desprezo pelos que pensam diferentemente dos bonzes jurássicos que ainda se empoleiram nas mais altas esferas do Estado.
Quando uma pluralidade de agentes comparticipa num facto de tamanha dimensão é verdade não ser fácil definir e autonomizar com exatidão o contributo de cada um para a realização típica, mas daí a omitir, que legitima na cadeia final procedimentos defeituosos, vai uma grande distância.
No caso BNA a sua engenharia foi obra de uma vontade bem urdida visando a produção de um resultado concreto, o desvio de milhões e milhões de dólares.
Isto por só poder ser autor deste crime económico aquele, segundo a importância da sua contribuição objectiva, compartiu directa ou indirectamente, o domínio do curso do facto.
E quando um batalhão de agentes menores, já são considerados culpados, afastando-se da sua soberania a presunção de inocência, então a PGR tem de avocar o instituto da co-autoria que consiste, assim, numa “divisão de trabalho” que torna possível o facto ou que facilita o risco. Ou seja, considera que os intervenientes se vincularam entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto (expresso ou tácito, prévio ou não a execução do facto), uma tarefa parcial, mas essencial, que se apresenta como co-titular da responsabilidade pela execução de todo o processo. Sendo a resolução comum de realizar o facto o elo que uniu num todo as diferentes partes.
A lei e mesmo a farta jurisprudência tem, de há muito, consagrado a tese de que, para a co-autoria, não ser indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os actos para a obtenção do resultado pretendido, bastando que a actuação de cada um seja um elemento componente do todo indispensável a sua produção.
Que elementos da proto-história política de Angola se tenham quedado durante mais de um mês em empolado silêncio, sinal, a nosso ver, da sua grandeza, não nos admira de modo algum. Entristece-nos é ver assim tratada, com tão profundo desprezo, a verdade dos factos, mas já estamos habituados a isso há mais de 35 anos.
De facto, o que nos entristece ainda mais é que, entretanto, depois da revelação de uma verdade altamente comprometedora para a credibilidade do nosso regime que diz ter mais de 80% dos angolanos do seu lado, o que pode parecer mais uma mentira, tudo se passa na nossa arena político-económica como se nada se tivesse passado. Dentre os nossos confrades da mídia, os que são pagos pelo Futungo calaram-se, é normal, a vergonha ajuda. O que nos espanta é os que se dizem ser denunciadores dos desmandos cometidos por governantes não terem feito a mínima crítica a esta magistral demonstração de infantilidade administrativa-económica tutelada por instituições políticas manifestamente irresponsáveis. Não dá para entender. Principalmente, quando estamos diante de um caso grave em que os principais autores, desfilam a sua impunidade e inimputabilidade, diante de um tão grosseiro desfalque, só possível com a intervenção de autores ao mais alto nível.