Como tudo na vida, e da mesma maneira como em cada um de nós se manifestam por vezes os defeitos das nossas qualidades, escrever um artigo a dois tem as suas desvantagens. Um colapso, mesmo passageiro, na relação entre os dois jornalistas, pode provocar equívocos e mesmo alguns erros. Ora, como fazer erros é humano, corrigi-los não fica mal a ninguém. Isto vem a propósito de algumas imprecisões involuntariamente contidas no nosso dossier sobre o desaparecimento de centenas de milhões de dólares do Banco Nacional de Angola (BNA).
Willian Tonet & Arlindo Santana
Na nossa edição, nº1026, de 30 de Outubro passado, as informações recebidas de várias fontes levaram-nos provisoriamente a avaliar o montante total do dinheiro desaparecido dos cofres do Estado em 277 milhões de dólares, a desmentir, portanto, os 159.971.671, anunciados pela Procuradoria-Geral da República (PGR).
Completada como foi a nossa informação, com o acesso ao processo completo do Ministério Público, verificámos que o rombo era de muito mais de 277 milhões de dólares, e como começaram a aparecer números díspares, ao que se juntou o título de capa pouco esclarecedor da edição de dia 6 de Novembro passado, na qual está escrito “+240 milhões de dólares roubados ao Estado”, pareceu-nos que a confusão já era maior do que a clareza da comunicação.
Assim, para ir ao fundo da verdade, em função dos dados fornecidos pela própria PGR, vamos analisar esses dados com o máximo de rigor possível. Como veremos, há certos pontos que não estão bem delineados e por via disso certas situações que não conseguiremos enquadrar com a devida precisão na sequência dos acontecimentos. Mas o que mais se verá nesta demonstração é a tradicional tendência para a fuga à realidade que assola as principais alavancas do nosso poder político.
Os pontos fulcrais do processo da PGR
Segundo as investigações do Ministério Público, cujo processo judicial contém 157 artigos, os montantes, na sua globalidade, dos prejuízos causados ao Estado, são mencionados no artigo 144º, que aqui reproduzimos na sua inteireza.
144º
«De data imprecisa de 2007 a 20 de Novembro de 2009, os arguidos, raia miúda (até essa data eram no total 27 pessoas) acusadas de terem causado ao Estado um prejuízo, que totalizava um valor global superior a USD 159.971.671,00 (cento e cinquenta e nove milhões, novecentos e setenta e um mil, seiscentos e setenta e um dólares americanos), do qual USD 15.900.000,00 (quinze milhões e novecentos mil dólares americanos), referentes ao período de 2008 e USD 144.071.671,00 (cento e quarenta e quatro milhões, setenta e um mil, seiscentos e setenta e um dólares americanos), referentes ao período de 28 de Setembro a 20 de Novembro de 2009, sendo USD 42.078.082,00 (quarenta e dois milhões, setenta e oito mil, oitenta e dois dólares americanos) referentes ao mês de Setembro e USD 101.993.589,00 (cento e um milhões, novecentos e noventa e três mil, quinhentos e oitenta e nove dólares americanos) referentes ao mês de Novembro de 2009».
Feitas assim as contas ao prejuízo sofrido, no artigo seguinte, 145º, os investigadores lançam ao ar reticências e bemóis a servir de ornamento aos montantes reais que eles queriam esconder aos angolanos, afirmando que «O BNA foi, assim, ardilosamente defraudado daquele valor monetário, entre outras quantias (…)», sem precisar quais quantias. E no artigo seguinte, 146º pode-se ler o seguinte texto: «Porém, graças às providências tomadas pelo BNA, dos USD 159.971.671,00 (cento e cinquenta e nove milhões, novecentos e setenta e um mil, seiscentos e setenta e um dólares americanos) apurados e provados terem sido defraudados ao Tesouro Nacional pelos arguidos, no período de 28 de Setembro a 20 de Novembro de 2009, foi já recuperada a quantia de USD 98.300.206,35 (noventa e oito milhões, trezentos mil, duzentos e seis dólares e trinta e cinco cêntimos), pelo que se mostraria em falta USD 61.671.464,65 (sessenta e um milhões, seiscentos e setenta e um mil, quatrocentos e sessenta e quatro dólares americanos e sessenta e cinco cêntimos)».
A partir destes dados, mergulhamos na análise pormenorizada dos artigos referentes aos montantes parcelares e aí, como se poderá constatar, iremos de surpresa em surpresa.
O desfalque do BNA, tintim por tintim
Na nossa edição da semana passada escrevemos a dada altura:
«(…) Deste modo, os ofícios do MINFIN, não passaram pelo DGR nem pelo SIGFE e foram postos à socapa numa espécie de incubadora de milhões de dólares. Este últimos, depois de os ofícios falsos terem parido um despacho incrivelmente verdadeiro, foram retirados dos cofres do Estado para pagamento de nada, não uma vez atrás doutra, mas sim em pagamentos fictícios aos molhos, três, mais seis, mais seis e mais onze, no total, vinte e seis vezes!
Não isto não é um romance de ficção, é a realidade angolana.
1.- Três pagamentos fictícios por um montante de mais de 42 milhões de dólares no mês de Março de 2008, quase um ano depois de uma tentativa falhada em 2007.
2.- Seis pagamentos fictícios por um montante de mais de 140 milhões de dólares (!) em Abril e Junho de 2008.
3.- Seis pagamentos fictícios em Setembro de 2009 por um total de mais de 42 milhões de dólares.
4.- Onze pagamentos imaginários por um montante superior a 101 milhões de dólares em Novembro de 2009 (e não 93 como referimos, por erro, na nossa última edição).
Tudo isto, realizados por arquivistas, estafetas, comerciantes, polícias e desempregados da nossa praça, “ajudados” por juristas e meia dúzia de graduados das nossas escolas.
A verdade é que se trata, pelo seu lado majestoso no que toca aos montantes extorquidos, de um acontecimento de gabarito mundial, escancarado pela força das circunstâncias e a contragosto num documento da Procuradoria-Geral da República (PGR) a que o F8 teve acesso, o que deu azo a que a mesma PGR desse mostras do seu pendente para algo que pode ser considerada como mentira compulsiva, ao anunciar que o BNA tinha sofrido um assalto aos seus bens que se soldaram por uma perca de mais de 159 milhões de dólares, sem abrir mão do quanto mais(…)».
Como a PGR não achou conveniente dar mais informações no que toca ao “quanto mais”, vamos fazê-lo nós, no quadro da nossa missão de informar. E se é verdade que no que diz respeito aos últimos pagamentos de Setembro e Novembro de 2009 estamos de acordo com os números avançados publicamente pela PGR (são os do processo), o mesmo não acontece com os pagamentos efectuados em 2008.
Para esse ano, os montantes pagos indevidamente pelo BNA resumem-se, segundo a PGR, a uns 15 milhões e 900 mil dólares, pagamentos fictícios, claro está, que figuram no artigo 81º do processo, a saber:
a) USD 4.900.000,00, para a empresa Cooperativa
de Construções “CUP-CUP2;
b) USD 11.000.000,00, para a Linkvalor, SA.
Mas nesse mesmo artigo está lavrado um parágrafo
c), no qual consta a descrição de um ofício dando conta do pagamento de USD 26.350.000 (vinte e seis milhões e trezentos e cinquenta mil dólares americanos) à empresa Imofinnaza Inversiones, SA.
Qty Descrição Beneficiário Montante
1 -- transferência de capital --- Cooperativa de Construções “CUP-CUP2 - USD 4.900.000,00
2 –transferencia de capital ------------ Linkvalor, SA ----------------USD 11.000.000,00
3 –transferência de capital--- Imofinnaza Inversiones, SA -------------- USD 26.350.000
Todas estas três operações somadas totalizam USD 42.250.000,00 (quarenta e dois milhões, duzentos e cinquenta mil dólares), legalmente autorizadas pelo governador do Banco Nacional de Angola e não por nenhuim dos cidadãos que se encontram nas masmorras.
A PGR, pelos vistos esqueceu-se deste último montante!
E o que é ainda mais estranho, é que esse esquecimento só pode ter sido voluntário, pois no artigo 87º do processo judicial do Ministério Público que temos vindo a analisar está escrito o seguinte:
«Fruto dessa operação (a fraude) concluída com êxito, foram transferidos para (…) a conta da Imofinnaza Inversiones, SA, o valor de UD 26.350.000,00 (…». No total faz, 42.250.000,00.
Esquecidos? Não, escondidos, mas com o rabo de fora!
Nos artigos 89º e 90º desse mesmo documento oficial, são enumerados em pormenor outros ofícios que teriam servido para pagamento de outras facturas imaginárias. No 89º, uma transferência de USD 5.250.435,15, para a conta na Fidelity Bank, no Grand Cayman, da empresa Fermar Investments Ltd, segundo processo falsificado constituído pelo ofício nº762/MINFIN-CUT/2008, datado de 14 de Abril de 2008; no 90º temos mais cinco ofícios solicitando pagamentos de que absolutamente nada indica que não foram efectuados:
1.- Transferência de USD 26.350.218,10, para a conta sediada no Crédit Suisse, da empresa Imofinnaza Inversiones SA, segundo ofício nº938/MINFIN-CUT/2008, datado de 13 de Junho de 2008.
2.- Transferência de USD 25.957.750,21 para a conta sediada no banco Ebilaed Emirates Bank International, Dubai (EAU) da empresa Safe Line General Trading, segundo ofício nº939/MINFIN-CUT/2008, datado de 13 de Junho de 2008.
3.- Transferência de USD 24.570.410,00 para a conta sediada ne Union Bank California da empresa Rescom Investments, segundo ofício nº940/MINFIN-CUT/2008, datado de 13 de Junho de 2008.
4.- Transferência de USD 25.370.410,00 para a conta sediada no Bank of America, em Cuberland, Rhode Island, da empresa Globalee, segundo ofício nº942/MINFIN-CUT/2008,datado de 13 de Junho de 2008.
5.- Transferência de USD33.875.435,15 para a conta sediada no Banco Português de Investimentos (BPI), da empresa Soma, Reciclagem e Comércio de Inertes, Lda, segundo ofício nº944/MINFIN-CUT/2008, datado de 13 de Junho de 2008,
Qty Descrição Beneficiário Oficio Montante
1 -Transferência Crédit Suisse-- Imofinnaza Inversiones SA nº938/MINFIN-CUT/2008- USD 26.350.218,10
2 Transferência Ebilaed Emirates Bank International, Dubai (EAU) --Safe Line General Trading nº939/MINFIN-CUT/2008 - USD 25.957.750,21
3– Transferência Union Bank California - Rescom Investments - nº940/MINFIN-CUT/2008 -USD 24.570.410,00
4 - Transferência no Bank of America, em Cuberland, Rhode Island-- Globalee--nº942/MINFIN-CUT/2008--USD 25.370.410,00
5- Transferência no Banco Português de Investimentos (BPI) Soma, Reciclagem e Comércio de Inertes, Lda- nº944/MINFIN-CUT/2008-- USD33.875.435,15
No total de contas são USD 141.374.658,61 (cento e quarenta e um milhões, 374 mil, seiscentos e cinquenta e oito dólares americanos e sessenta e um cêntimos). Aos quais convém acrescentar os USD 42.250.000,00 de data incerta, provavelmente de Abril de 2008, como sugere o artigo 82º do processo em causa.
Total, USD 183.624.658,00! E que eles saíram dos cofres, lá isso é que saíram, pois a única desculpa avançada pela PGR para não os levar em conta, baseada no facto de os originais terem desaparecido, não vale nada, não tem ponta por onde se lhe pegue.
O que não se conseguiu saber foi o destino dado ao dinheiro, mais de 180 milhões!!
O que se sabe, segundo a PGR, é que no mês de Junho de 2008 deslocaram-se a Portugal quatro dos arguidos, para se inteirarem in loco da situação. Regressaram mais tarde a Angola mas não deram a conhecer o resultado das suas investigações.
Ora sendo dado como certo que dessas transferências foram encontrados os ofícios a provar que esses pagamentos foram feitos, não se percebe por que razão a PGR não os contabilizou.
No final de contas, considerou como pagos pelo BNA um total de 15 milhões e novecentos mil dólares, quando na realidade desapareceram dos cofres do Estado, só em 2008, repetimos, só em 2008, mais de 180 milhões de dólares, como consta nos parágrafos nº81, 87,88,89,90,91 do processo a cargo do Ministério público. No cômputo final foram mais de 340 milhões de dólares americanos que realmente desapareceram do cofre único do Tesouro, o do nosso petróleo, o que nos leva a terminar esta digressão do mesmo modo que na nossa última edição: este resultado anunciado pela PGR assemelha-se a um relatório de naufrágio, ou de um incêndio, ou de um desastre natural - «Desastre no BNA: 159 milhões de dólares mortos e 180 desaparecidos! Ressuscitaram 100!!
Isto não fica assim, amanhã incha!
Homem que apanhe um soco no olho e ameace o seu agressor com a expressão de revolta impotente, “Isto não fica assim!”, arrisca-se a ouvir da boca do outro a boa resposta, “Pois não, amanhã incha”. O que aconteceu ao infeliz povo de Angola foi um pouco a mesma coisa: vieram dizer-lhe que tinham roubado o seu dinheiro, o povinho impotente nem disse, só pensou, “Ah! Isto não devia ficar assim… pois não, inchou!
O desastre anunciado de cerca de 60 milhões de dólares desaparecidos do BNA (diferença entre os anunciados 159 roubados e os quase 100 encontrados) em menos de meio ano passou a ser de mais 240 milhões (diferença entre os 340 milhões realmente pagos pelo BNA e os menos quase 100 recuperados).
Andam por aí desaparecidos, portanto, qualquer coisa como 220 a 240 milhões de dólares. E já começaram a aparecer uns milhõezitos e com o tempo aparecerão mais, de certeza absoluta.
*Continua
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