quarta-feira, 8 de junho de 2011

Ainda, o Auschwitz de África. (in “O livro Negro do 27 de Maio de 1977)


O ponto da situação nas vésperas da Dipanda

William Tonet*

Quando se deu o golpe do 25 de Abril em Portugal, o MPLA estava a desfazer-se aos pedaços. Para dar uma ideia do estado de desmoronamento do Movimento, partimos do enunciado de que a Revolta Activa e a Revolta de Leste encetadas em 1969 eram apenas a parte visível do “iceberg”, pois muitas foram as “revoltazinhas” que eclodiram nessa altura e depois.

Passamos a citar uma lista dada por Dalila Cabrita Mateus e Álvaro Mateus (“Purga em Angola”, páginas 33 e 34, ASA, Outubro de 2007, Porto) de levantamentos e motins de que ficaram registos e/ou testemunhos para a história:

«Em princípios de 1970, um grupo de guerrilheiros avança sobre a base de Nadane, exigindo regalias para as etnias do Leste.

Em Fevereiro desse mesmo ano, dá-se a rebelião de guerrilheiros da etnia dos Quiocos (Chokwé) num campo de Lusaca.

Já em 1971, verificam-se as divergências no campo de Mangão/Irinde, na Tanzânia.

Também esse ano, ao que parece devido a uma ordem de Iko Carreira, verificam-se novos conflitos com os quiocos, na base de Cassanga.

Por seu lado os guerrilheiros “mbundu” (Sul de Angola) teriam afirmado não querer pertencer ao MPLA, enquanto este fosse dirigido por “nortistas” e euro-africanos.

Em 1972, verificam-se vários incidentes, de que se salientam: a agitação na Zona C da 3ª Região Militar, com a subversão do Esquadrão Prata Chinga; reacções das etnias do Centro e do Sul de Angola; reacções dos quiocos, que se queixavam de terem sido excluídos de certas funções.

Também em 1972, a acusação feita por membros do Comité Director a Agostinho Neto, acusado de prepotência.

Já no ano de 1973, são vários os casos:

Em Janeiro, uma insubordinação na base de Chipango, contra elementos do Norte.

Mais ou menos na mesma altura, na base Cassamba, guerrilheiros manifestam o seu descontentamento.

Em Maio, são detidos cinco guerrilheiros de Leste, acusados de terem tentado assassinar Agostinho Neto.

Em Julho, Daniel Chipenda divulga a sua “Carta Aberta aos Militantes”.

E pouco depois, em Brazzaville, a segurança do MPLA teria descoberto uma conspiração contra Agostinho Neto.

Sendo tudo isto uma realidade incontornável (...) tendo chegado a um estado de atomização não só na Frente Norte, mas também na frente Leste, um grupo de quadros político-militares regressados da China, tenta aquilo que ficou designado por Movimento de Reajustamento. O comportamento da direcção política nas assembleias de militantes teria sido particularmente anti-democrático, criando um clima de intimidação militar». O que está na origem da Revolta Activa.

A propósito de tudo isto, e não só, a PIDE/DGS depreendeu que o MPLA nessa altura estava a passar por uma crise de graves dissidências ocasionadas por «contradições internas rácico-étnico-políticas, que se agravavam pelo fracasso da sua manobra de extensão para Leste e pela incapacidade de reabastecer e reactivar a 1ª Região Militar. Esta crise caracterizar-se-ia pela existência de duas facções, uma apoiada pelas etnias de Leste e Centro (pró-Chipenda), os bundus, a outra apoiada pelos movimentos do Norte e pelo cabindas, em que (...) se filiam os euro-africanos do movimento pró-Neto. Depois de vários incidentes, com baixas de ambas as partes, na érea de Kalabo, ter-se-iam realizado reuniões conciliatórias sob pressão da OUA e com arbitragem da Zâmbia

(IANT/TT, Arquivos da PIDE, pasta 1, fls.33 e seguintes)».

As conclusões tiradas pela PIDE/DGS a propósito das dificuldades vividas no seio do MPLA, «contradições internas rácico-étnico-políticas, que se agravavam pelo fracasso da sua manobra de extensão para Leste e pela incapacidade de reabastecer e reactivar a 1ª Região Militar, resumem bem o que se passava no Movimento.

Atente-se, sobre este tema preciso das causas de dissensões no seu seio, ao facto de a primeira dissensão em 1962, com Viriato da Cruz, ter como ponto importante de fricção a questão racial; já na questão aberta com a Revolta Activa, predominou quase em exclusividade a problemática política relacionada com os princípios de democracia interna, cientemente amordaçados pelo presidente Neto; enfim, no caso da Revolta Activa, passou-se o que viria a ser mais tarde uma espécie de “leitmotiv” estratégico do MPLA.

A direcção de Brazzaville foi posta ao corrente duma queixa da discriminação de que eram vítimas os militantes oriundos das zonas Leste, Centro e Sul do país e enviou um delegado, para determinar até que ponto eram pertinentes as reivindicações desses camaradas.

Este, Daniel Chipenda, sendo um homem do topo da hierarquia dentro do Movimento, assumiu as suas responsabilidades e enviou um relatório em nada abonatório para os responsáveis da direcção central, pois confirmava que de facto havia casos gritantes de discriminação, a pontos de se poderem dar exemplos de fuzilamentos e mesmo que “queimadas” rituais de certos oficiais chokwé sem qualquer tipo de julgamento, por mais sumário que fosse, assim como substituição de chefes locais por outros impostos e oriundos do Norte, e outras sevícias morais, sem contar com o facto, por exemplo, de não haver nas centenas de angolanos que puderam beneficiar de uma bolsa de estudos na Europa ou em Cuba, ou algures, nem sequer um punhado de chokwés que tivesse beneficiado dessas facilidades para singrar na vida.

Essa era a realidade, triste mas inegável, que a direcção do MPLA não foi capaz de assumir com a devida elevação humanística, preferindo enveredar por vias mais fáceis, a começar pela acusação de Daniel Chipenda ser intriguista e tribalista. Quer dizer, pegaram na culpabilidade própria e transportaram-na para o campo do seu ex-homem de confiança. Mais ou menos como ainda acontece nos dias de hoje, quando aparece dentro do partido dos camaradas alguém a denunciar seja o que for. Sempre que for possível, e há quase sempre uma maneira de aí chegar, os males denunciados são recuperados pela cúpula e o denunciador é apontado com seu principal mentor, promotor, ou causa.

MPLA DIVIDIDO EM TRÊS

Assim, teremos em Angola, logo a seguir ao 25 de Abril, um MPLA dilacerado em pelo menos três pedaços. O Congresso da Lusaka confirmou isso mesmo, e não fosse a Revolta Activa “ter seguido a ala presidencialista afecta a Agostinho Neto, sem contudo lhe seguir o raciocínio estratégico, hoje tudo seria diferente, a começar pelo próprio MPLA.

Mas a “Revolta Activa” largou de Lusaka como um só homem (tirando 4 dos seus membros que ficaram com Daniel Chipenda) que não inviabilizou, com este seu gesto, o prosseguimento do congresso na sua qualidade de órgão capacitado para eleger a cúpula dirigente.

Nessa altura, reconheciam-se muito bem as tendências que urgia reconciliar, os presidencialistas, a “Revolta Activa” e a “Revolta de Leste”.

Agostinho Neto sabia que as suas chances de sobreviver a esse congresso eram praticamente nulas e optou de imediato por se opor à presença de alguns membros da “Revolta de Leste” que, segundo ele, de angolano pouco ou nada tinham, alguns mesmo nem falar português sabiam, exprimiam-se em francês ou em lingala.

Estava aberta uma polémica que não se ficaria por tão (des)insignificantes episódios, continuou por ali fora até ao “ramalhete” final, o discurso de Nito Alves, que se apresentou naquele palco improvisado como defensor de Neto, mais “netista” do que Neto em pessoa, alcandorado numa fraseologia marxista-leninista do mais belo efeito. Mas mais ou menos incompreensível para a maior parte dos delegados presentes.

Nito sabia falar. Segundo os seus mais acérrimos inimigos, «sabia tranformar em “Tortilla Campesina (e Operária)”, rica em ingredientes de fácil digestão, o que passava pela mente de toda a gente em forma de omelete sem ovos!»[2].

Nito Alves era uma excepção à regra, na medida em que no MPLA, à parte a sua pessoa, não havia nessa altura quem se impusesse como orador de elite. Toda a estratégia do MPLA em Lusaka foi posta magistralmente em cena por esse efémero “menino bonito” do presidente Neto, que lhe deve, sem dúvida, a sua sobrevivência como líder do MPLA.

Depois dessa sua performance em Lusaka, passou-se o seguinte: os congressistas com os da “Revolta de Leste”, a cabeça, apesar de ter eleito, digamos democrática e simbolicamente, Daniel Chipenda como presidente do MPLA, a ala presidencialista, a partir de Brazzaville, quartel general de Neto, propôs ao presidente eleito no congresso da capital zambiana, um compromisso posterior, sob alegação de o Movimento não entrar com rupturas, para o interior das cidades, com Agostinho Neto como presidente e Chipenda no lugar de vice-presidente do Movimento.

Porém, este último depressa renegou o compromisso, sob pretexto de autoritarismo por parte de Neto. Virou a Oeste e desceu para Luanda, acreditando poder ser reconhecido como presidente do MPLA, mas deparou-se que o seu posto tinha sido convertido em líder de facção, que se passou a denominar de Facção Chipenda, fortemente combatida pelas estruturas guerrilheiras e clandestinas do MPLA.

Isolado, não lhe restou outra escapatória se não a de associar-se à FNLA de Holden Roberto para combater até às últimas consequências o MPLA/Neto; no que diz respeito à “Revolta Activa”, digamos que essa foi simplesmente ignorada, e Mário de Andrade, que se tinha juntado à guerrilha e passado menos de um ano renunciado por razões pouco claras (dissensões com Neto segundo uns, fraqueza de “pequeno burguês” segundo outros), nunca mais foi ouvido nem chamado.

Quem mais ganhou foi o “herói” de Lusaka, Nito Alves, recompensado ao seu justo valor de “ponta de lança” político fora de série e promovido, depois da Dipanda, a ministro da Administração Interna.

Tudo isto se passou sem conhecimento imediato dos militantes do MPLA a oficiar em Angola, muito particularmente em Luanda.

MPLA GOLPEIA ORGANIZAÇÕES CLANDESTINAS

As Comissões Populares de Bairro (CPB), Comités de Acção, Associações de Estudante Universitários de Luanda (AEUL)s, Sindicatos, Comissões de Trabalhadores, e mesmo alguns partidos não armados -, ainda longe de qualquer dissensão, preparavam, espontaneamente, como vimos, uma recepção triunfal à direcção do Movimento.

Mas no seu seio já medravam, também, algumas derrapagens, e para provar esta asserção não é preciso fazer um desenho, basta saber que mal Lúcio Lara chegou a Luanda em Novembro de 1974 com a primeira fornada da direcção do MPLA e propôs que integrassem as suas estruturas, as respostas dos Comités de Acção foram mais ternas do que meias tintas, alguns membros dessas organizações integraram o MPLA a título pessoal e pouco mais. Diga-se, no entanto, que ao fazê-lo, praticamente nenhum deles renunciava à sua participação nos Comités, e por consequência foi-se assistindo a um fenómeno que Mabeko-Tali denomina “entrismo”, o que significa que havia tentativa de incrementar nas hostes do MPLA a ideologia desses Comités, que, como vimos, eram quase todos de extrema-esquerda, principalmente maoístas.

Além disso, como vimos também, havia Comités de direita, nacionalistas e tradicionalistas, e muitos dos seus membros integraram de livre vontade o MPLA, que, à chegada do presidente Neto a Luanda em Fevereiro de 1975, se deparou com uma manifestação de entusiasmo que ultrapassou todas as expectativas, uma verdadeira apoteose, como que uma vitória moral antecipada.

Em todo o caso, temos a partir de Fevereiro, Março de 1975 em Luanda, um MPLA, por um lado purificado, “netista”, “evacuado”, mas também “amputado” de fraccionistas da “Revolta de Leste”, doravante inimigos armados, e sem a presença incómoda dos intelectuais da “Revolta Activa”, por outro lado, vemo-lo confrontado com pedidos de adesão em grande número e de origem incontrolada. Sim, agora era urgente absorver todas essa entusiástica juventude luandense, que via no Movimento um formidável instrumento de luta revolucionária, o que, como hoje se sabe, estava muito longe se ser o caso. E, para complicar toda esta situação, também era necessário acolher de braços abertos os Comités de direita, nacionalistas e defensores da tradição. Complicado.

Era, como se poderia dizer, muito pássaro a voar para a mesma gaiola, e muitos deles a projectarem esmagar os outros, mas não havia solução à vista, senão fechar os olhos às diferenças e unir forças para tornar possível opor resistência eficaz à espectacular força bélica da FNLA e da UNITA.

[1] Em Lusaka encontraram-se, para definir o destino do MPLA, 165 delegados da ala Agostinho Neto, 165 da “Revolta de Leste” (de Daniel Chipenda) e 70 da “Revolta Activa” (Joaquim Pinto de Andrade). Neste figurino, quem iria decidir para que lado penderia a balança só podia ser a “Revolta Activa”, que, provavelmente daria a vitória a Chipenda. Agostinho Neto sabia disso e, depois de manobras calculadas, acabou por abandonar o Congresso, gesto esse que foi imitado por sessenta e seis membros da “Revolta Activa”, pois quatro ficaram ao lado de Daniel Chipenda. Este foi eleito, mas sem quórum, portanto, o resultado do sufrágio não podia ser legitimado.

[2] Frase dum militante afecto à “Revolta Activa” que deseja manter o anonimato. Que me revelou também o seguinte: «Certo dia, já depois de Lusaka, Mário Pinto de Andrade, dirigiu-se a Agostinho Neto e perguntou-lhe, a propósito de Nito Alves, «É “isso”... que tu queres pôr a governar Angola!?».

Um comentário:

  1. Calcinhas de Luanda9 de junho de 2011 às 02:01

    É raro ver análises assim tão objectivas e desapaixonadas sobre o real valor do MPLA em Abril de 1974.
    A verdade começa lentamente a vir à superfície e talvez se possa iniciar uma avaliação correcta e desprendida do que se passou em Angola a partir do 25 de Abril de 1974 e do custo que teve para o futuro do país.
    Vamos a ver se a catarse irá funcionar.

    ResponderExcluir