sábado, 11 de junho de 2011

Livro Negro do 27 de Maio de 1977. O Auschwitz de África. O Stalinismo de Neto


Tudo indica que, depois de se tornar evidente que o plano de Nito Alves alcançar um acordo com Agostinho Neto, no sentido deste viabilizar que o presidente da Comissão de Inquérito, José Eduardo dos Santos, cumprisse três meses depois, com o mandato a que estava investido de audição aos membros suspensos do comité central do MPLA, acusados de fraccionismo, nada mais poderia fazer, pois a sentença já estava antecipadamente traçada. De nada importava investigar a existência de fraccionismo ou validar a inocência de Nito Alves, quando a cabala estava em marcha, para triturar todos quantos tivessem um palmo de texto e constituíam uma ameaça a hegemonia netista.

William Tonet*

Isto fez com que Nito Alves se tivesse colocado de atalaia e recuasse para tentar evitar um banho de sangue nas suas hostes, pese o pensamento de Neto ser diferente. Dai que Nito tenha começado a recuar para norte, mais precisamente, rumo ao seu Piri natal, aglomeração do Bengo, para se juntar aos seus.

Nisto, existem indicações de que os Americanos, postos ao corrente da chegada iminente ao Piri do comandante Nito Alves, teriam tentado salvá-lo, estabelecendo contactos com Holden Roberto para que este movimentasse as suas tropas a fim de o resgatar.

Segundo testemunhos de Holden Roberto e Ngola Kabangu, um destacamento do ELNA (Exército de Libertação Nacional de Angola), ex-braço armado da FNLA, ter-se-ia dirigido para aquela aglomeração a fim de recuperar o comandante, mas este opôs-se, em função da sua convicção ideológica marxista-leninista, que se opunha a orientação capitalista da FNLA, logo acreditou, poder transformar-se num joguete nas mãos dos homens de Holden Roberto e dos americanos.

Em função disso Nito Alves encontrava-se numa situação de impasse: ir para a frente, arrastando consigo o rastilho da morte, engrossado pelas exacções perpetradas pelos Cubanos e a DISA que lhe seguiam o trilho, ou abandonar a luta. Essa era a preocupação maior, e face à chacina que estava a ser levada a cabo pelas feras assassinas de Fidel de Castro e Agostinho Neto junto das populações do Piri, decide então entregar-se, voluntariamente, para evitar a morte de mais gente inocente.

E é no dia que decide apresentar-se de mãos limpas aos seus irmãos inimigos, que os batalhões da FNLA chegam até à sua trincheira. Mas encontram-na vazia, para desespero de Holden Roberto e dos americanos, que aguardavam já pela sua chegada, pois Nito seria a melhor arma política possível contra Neto. Talvez mais eficaz que todas as que eles possuíam,

Pelo que se depreende desta situação, ou melhor, da versão desta situação em que se encontrava Nito Alves depois da derrocada dos seus esforços, para um plano de reconciliação interna e conciliação com Neto, torna-se ainda mais evidente a inexistência de tentativa de golpe de Estado, o que pode ser deduzido pelo facto de não ter havido um plano B, quer dizer, um plano de fuga.

Mas o bom carácter de Nito Alves também se patenteia aquando da sua retirada de Luanda, por ele dar mostras de um humanismo ingénuo, quando mandava descansar ou regressar a Luanda todos quantos manifestassem sinais de cansaço. E essa foi a grande pista deixada pela sua fuga, a provocar o faro dos beleguins da DISA, que antes de colher esses indícios da sua trajectória, tinha a sua máquina apontada para um cerco à embaixada da Rússia, deduzindo estar dentro dela Nito Alves e José Van Dúnem.

Uma “Sazão no Inferno”
Podemos sempre, impunemente, afirmar que se Nito Alves tivesse sido o vencedor, não teria inevitavelmente comandado uma perseguição violenta e justiceira aos seus antigos camaradas, transformados em inimigos de estimação. Seria provável que a purificação ideológica que pretendia, não resultasse num ajuste de contas com consequências semelhantes às que existiram depois da sua derrota.

É certo, no entanto, que a cúpula de Neto sempre teve receio da onda jovem que abraçava a eloquência verbal e a visão esquerdista de Nito Alves, que atemorizava os velhos barões do MPLA.

E estes para inverter a situação, Neto muniu-se e aproveitou a ingenuidade e o voluntarismo de centenas de jovens delinquentes e da DISA, que, sem perceberem bem o que estava em jogo, na alta esfera política, transformaram-se em sanguinários assassinos e obedecendo a uma estratégia evidente de manutenção do poder político, disparavam em tudo, que considerassem inimigos.

A maioria desses jovens assassinos não tinha qualquer tipo de informação sobre a monstruosidade da barbárie planificada pelo “in circle” de Neto. Se tudo isso é, ou podia ser verdade, o resultado da repressão ultrapassou largamente o limite do racional, mesmo considerando a realidade africana e a forma emotiva e ingénua como Nito e os seus mais directos colaboradores se comportaram. São-lhes acometidos sem dúvida erros graves de avaliação que foram decisivos no desenlace final.

A repressão destinada a castigar os nitistas não esperou pela tomada de fôlego dos que detinham algum poder de acção, pela ocasião imediatamente transformado em força de retaliação.

Nem que fosse gente sem nenhum acesso às rédeas do Poder, serviam-se de rédeas emprestadas, nem que fosse gente sem rédeas nenhumas nem acesso a elas, utilizavam rédeas de fabrico caseiro. Repunha-se em jogo, depois das repetidas lições de guerrilha urbana dos Comités de Acção até às primeiras fífias dos acordos do Alvor, e depois nas manobras e verdadeiras batalhas da “Guerra de Luanda”, contra a FNLA e a UNITA, repunha-se em jogo, dizíamos, as mais eficazes técnicas de aniquilar o inimigo. Só que desta vez o inimigo era os próprios camaradas do MPLA, considerados criminosos por pensarem de maneira que não convinha aos detentores das verdadeiras rédeas do Poder.

Na noite do dia 27, não no dia seguinte, começam as rusgas monstras em Luanda, primeiro no Sambizanga, depois nos outros musseques, e depois por aí fora, a alastrar-se por todo o país, pontuadas com o encarceramento e/ou a execução de todas as pessoas ligadas ao grupo de Nito Alves, ou simplesmente suspeitas disso, isto sem contar os ajustes de contas pessoais, inspirados quase sempre por denúncias fantasistas.

Todas, não vale sequer a pena enumerá-las, realmente todas as organizações ligadas ao MPLA são particularmente atingidas pela repressão, sob pretexto de que nas mais altas esferas do governo se havia concluído que todas, realmente todas as estruturas sociais, não só as que eram dependentes do MPLA, incluindo a DISA, as Polícias, as FAPLA e os Ministérios, mas também todas as forças vivas da sociedade tinham sido violadas, poluídas ou tocadas pela expansão do fraccionismo.

A ajudar o crescimento do ódio contra os nitistas já se liam havia bastante tempo artigos altamente depreciativos, mas agora muito mais, eram editoriais duma violência inaudita, sob o título genérico “Bater em Ferro Quente” no Jornal de Angola, orientado por um “netista puro e duro”, Costa Andrade N’Dunduma.

A reacção da comunicação social
Neutralizada a insurreição e tendo em seu poder a RNA (Rádio Nacional de Angola), a facção vitoriosa do MPLA pôs de imediato a funcionar uma tenebrosa máquina de propaganda, utilizando para o efeito um conjunto de vozes musculadas que diabolizavam sem apelo nem agravo a facção derrotada, particularmente os seus líderes Nito Alves e Zé Van-Dúnem.

Spots de propaganda, destilando ódio canino e revanchismo primários iam para o ar a todo instante, reclamando a captura e morte de todos os «fraccionistas».

Na RNA ocorreu a prisão massiva dos elementos conotados como apoiantes da facção vencida do MPLA, dentre eles jornalistas, técnicos e pessoal da administração, incluindo o seu director geral, M. Matoso, criando-se assim as condições propícias para a instrução de um processo purgativo de quadros, do tipo estalinista.

N’Dunduma e o Jornal de Angola
Se na RNA a purga ocorreu em catadupas, o processo de catarse no até agora (2011) único diário, o matutino Jornal de Angola (JÁ), foi mais selectivo, registando-se o enclausuramento de um jornalista: Reginaldo Telmo Augusto da Silva. A prisão deste nosso companheiro ocorreu após um telefonema dirigido à chefia da DISA, pelo então director geral do Jornal de Angola, Fernando da Costa Andrade, também conhecido por N’Dunduma wé Lépi, até a sua morte deputado à Assembleia Nacional pela bancada do MPLA.

Enquanto que na RNA e JA se verificou falta de solidariedade entre profissionais do mesmo centro laboral, o mesmo não aconteceu na Televisão Popular de Angola. Naquela altura a TPA tinha como director Geral um respeitado jurista, o dr. Orlando Rodrigues que não pactuou com a solidariedade para com os seus companheiros, pelo que nenhum elemento da Televisão Popular foi enviado para os calabouços da caliginosa polícia política do regime.

No entanto, foi a TPA, com o suporte do Ministério da Defesa, quem forneceu o pessoal e equipamento para elaboração da longa metragem intitulada “Anatomia, Fisiopatologia e Autópsia de um Golpe” que retracta a visão da facção vencedora dos acontecimentos verificados em torno da insurreição do 27 de Maio.

É neste filme, que sofreu múltiplas alterações no seu conteúdo ao longo dos anos, que se pode ver a maneira humilhante como decorreu a captura de Nito Alves, um dos principais cérebros para a transformação interna do MPLA, em plena região cafeícula dos Dembos, a pouco mais de 200 quilómetros a norte de Luanda.

Foi através da TPA que a nação inteira e o mundo se aperceberam das condições desumanas a que os insurrectos eram submetidos, antes de prestarem depoimentos nos órgãos de informação sobre o controlo da facção vencedora do MPLA.

Os declarantes apresentavam traços de terem sido alvo de sevícias. Nas suas palavras denotava-se o sinal de coacção. Na riqueza de detalhe exposta pelos detidos transparecia uma clara petição de clemência ou indulgência para os seus actos.

Os vitoriosos utilizaram o Jornal de Angola, para a mais ignóbil e hedionda propaganda, atiçando os cidadãos a odiarem os seus compatriotas derrotados. Houve mesmo, através das páginas do matutino oficioso, mensagens incitando à vingança e à morte de respeitáveis dirigentes do MPLA e das FAPLA, apesar do posicionamento de alguns deles, relativamente ao movimento de 27 de Maio, ser desconhecido.

Os apelos ao ódio e vingança eram feitos sistematicamente, desde muitos meses antes da insurreição do 27 de Maio, nos editoriais do Jornal de Angola, produzidos pela incansável veia prosadora, poética e maliciosa de Costa Andrade Ndunduma, que, investido de poderes alargados, dirigia insultos velados aos dirigentes, membros do Comité Central do MPLA, o qual apodava de «fraccionistas», com maior incidência após a realização da III Reunião Plenária do MPLA, realizada em Luanda, no mês de Outubro de 1976.

Na ressaca do 27 de Maio, os apelos a vingança estavam inscritos no Jornal de Angola não só em manchetes, mas sobretudo nos sanguinários editoriais com o título genérico «BATER NO FERRO QUENTE», que tinha na Rádio Nacional de Angola, a sua preciosa e fundamental caixa de ressonância.

Os referidos editoriais, assim como os pronunciamentos do Presidente da República Popular de Angola, Dr. Agostinho Neto, e de alguns dos seus seguidores mais próximos, contribuíram certamente para a eclosão do maior genocídio de angolanos de todos os tempos, consubstanciado na eliminação física de quadros de grande valia, maioritariamente autóctones e do MPLA.

De acordo com a versão oficial sobre a insurreição, «um TRIBUNAL MILITAR ESPECIAL», foi criado para julgar os implicados no alegado golpe de 27 de Maio e corresponder ao sentimento nacional de CASTIGAR SEM PERDÃO todos quantos revelassem responsabilidade na sua organização e execução”.

O referido tribunal era presidido por Luís Miguel Neto (Xietu) e supervisionado por Iko Carreira, Ludy Kissassunda e Henrique Santos «Onâmbwe». O problema é que esse pretenso Tribunal nunca efectuou qualquer julgamento digno desse nome, quer dizer, com advogados, testemunhas e público. E está claro que nunca se deu ao trabalho de encenar julgamentos, como aconteceu em algumas ditaduras. Tudo fitas.

Mais tarde, em 1979, o MPLA - Partido do Trabalho criou um Tribunal Revolucionário Popular, cuja missão principal era rever os processos instaurados contra os fraccionistas.

De facto, uma tentativa gorada, uma brincadeira, sabendo-se que, mesmo sendo verdade que o Presidente da República investia juízes, que até apareciam à mesa do tribunal bem-postos, togados e tudo, a dar o tom solene e consentâneo com a nobre missão que lhes fora confiada, em muitos casos esses magistrados eram iletrados!

*Continua/Com António Setas

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