terça-feira, 7 de junho de 2011

Livro Negro do 27 de Maio de 1977. O Auschwitz de África


Neste mês de Maio, vamos ainda e sempre recordar os que não sabiam por que razão eram assassinados. São dezenas de milhares e as suas famílias esperam do Executivo uma palavra, uma só palavra: CONCILIAÇÃO.
Hoje apresentamos o texto que servirá de abertura a um livro que brevemente vai ser publicado. E, durante todo o mês de Maio apresentaremos alguns extractos do mesmo, esperando que essa iniciativa seja entendida não como um apelo à vingança, mas sim como uma chamada de atenção aos governantes no sentido de os levar a proferir a sublime expressão que todos os angolanos esperam: RECONCILIAÇÃO

William Tonet*

De tanto remover as cinzas sempre cintilam as brasas que se diria estarem apagadas. E assim, por um conjunto de circunstâncias pontuais, decidimos fazer a abordagem, em livro, de um drama nacional, o 27 de Maio de 1977, que mais tarde ou mais cedo terá que ser sanado, sem no entanto esquecer, nem descurar, a dificuldade e a grandeza da empreitada.
Os antecedentes da trama engendrada contra Nito Alves, ícone guerrilheiro, e Zé Van-Dúnem, prisioneiro de São Nicolau, e milhares de outros jovens intelectuais, continuam escondidos no lamaçal fedorento e cúmplice onde ainda se movimentam antigos camaradas de armas, transfigurados em algozes para a defesa dum poder manchado de sangue, que prossegue a sua rota insensível aos clamores das almas de milhares de vítimas assassinadas e de seus familiares que aguardam por um simples boletim de óbito.
Caricatamente, ante a crueldade dos assassinatos selectivos em massa e sem julgamento levados a cabo pela DISA, polícia política do regime de Agostinho Neto entre 1977 a 1979, é confrangedor, em pleno século XXI, o mutismo e o cinismo do regime, em tentar tapar com uma peneira rota o maior genocídio levado a cabo no século passado por uma força política no poder, contra militantes do seu próprio partido, cujo crime teria sido o de reivindicarem um maior pragmatismo ideológico na condução dos destinos de Angola. Ademais, estamos em face de um fenómeno que sai das fronteiras angolanas.
Na realidade, depois dos horrores praticados por Adolph Hitler, na II Guerra Mundial, a DISA, polícia política de Angola, protagonizou a maior chacina ocorrida no século XX em África, com a mui benévola colaboração intervencionista do partido no poder, o MPLA. Esta é a verdade.
Os números oficiosos, baseados nas prisões arbitrárias, na quantidade de presos em campos de concentração, nas múltiplas cadeias, nos fuzilamentos diários, nos enterrados vivos, nos jogados de avião ou lançados ao mar, são aterradores: 40, 60 ou mesmo 80 mil vítimas, na sua maioria intelectuais brutalmente assassinados sem direito a qualquer tipo de defesa. Uma autêntica “limpeza da intelectualidade autóctone”.
E nessa mal-aventurada empreitada, “o guia imortal”, “o político profundamente humano”, como se propaga ter sido Agostinho Neto, ao mostrar tamanha insensibilidade no seu desempenho, “promulgando as listas de morte” levantadas pela “corte de sangue”, não será que se transformou em “político assassino” entre o 27 de Maio de 1977 e Março de 1979?
Enterrando à força a balança da justiça, atirou às urtigas os preceitos da mesma: imparcialidade, sensatez e frieza, apanágio dos grandes líderes nos momentos de divergências internas. Mostrou-se sempre, mais ou menos, parcial, sobretudo depois de ter tomado partido irreversível pela ala liderada pelo seu padrinho e confidente, Lúcio Barreto de Lara. Será esta opção digna do perfil de um grande líder?
Nito Alves, o comandante da 1ª Região que o havia salvo de morte súbita política no 1º Congresso do MPLA, realizado em 1974 em Lusaka, capital da Zâmbia, quando a maioria dos militantes do interior e exterior estavam contra a direcção do partido, três anos depois viu-se cobardemente abandonado pelo homem que ele tinha salvo, Agostinho Neto, e sem possibilidade de esgrimir os seus argumentos em fórum próprio.
Travou uma luta titânica contra o tempo, por se ter dilatado voluntária ou involuntariamente o prazo de dois meses dado pelo Comité Central à Comissão de Inquérito liderada por José Eduardo dos Santos para ouvir os acusados. Não foi ouvido. Catalogado como culpado, antes de qualquer juízo final, escancarou-se-lhe o coração para explicar aos membros do Comité Central e organizações sociais do partido, a injustiça que campeava contra a sua pessoa. Frustrado, encarou de frente a cobarde e assassina muralha de betão, ardilosamente ministrada na comunicação social, por Costa Andrade “N’dunduma” e Artur Pestana Pepetela, que, numa premonição impressionante, para além da diabolização a Nito Alves, previram todo o cenário posterior.
Fustigado por todos os lados, apontou baterias para um “túnel escapatório”: “As 13 Teses em Minha Defesa”, uma visão comunista baseada em fórmulas marxistas-leninistas, que ingenuamente acreditou ser a linha defendida por Agostinho Neto.
Ledo engano!
Neto acreditava sobretudo no não-alinhamento!
Sobre este assunto, diga-se, o primeiro Presidente da República Popular de Angola e do MPLA, foi severamente insensível, e responsável, talvez não a tempo inteiro, pelas mais graves atrocidades cometidas na história de Angola independente.
Por esta razão, ninguém de forma imparcial, poderá afirmar se Neto era um idealista político ou um assassino incubado, mas seguramente é obrigado a rememorar, por exemplo, a crise de 1963 do MPLA, e as que se seguiram, para entender melhor a mentalidade oblíqua e de facto incubada deste médico, casado com uma portuguesa, líder político por convite, e poeta da África profunda com algum talento por veia epidérmica, que liderou por dois anos a República, depois de ter esmagado com o apoio de forças mercenárias cubanas, russas, guineenses, moçambicanas e argelinas, a oposição política da FNLA, que contava com o apoio das tropas zairenses, e a UNITA, que se tinha aliado em desespero de causa aos racistas Sul-Africanos.

A convicção messiânica de Nito Alves
Em 27 de Maio de 1977, apenas 19 meses depois da independência, teve lugar em Angola uma denominada pelo então regime de Agostinho Neto "intentona golpista" comandada por Alves Bernardo Baptista, vulgo Nito Alves, membro do Comité Central do MPLA. O alegado golpe é abortado deixando um saldo de mais de 70 mil mortos. Um dos maiores crimes contra a humanidade.
Henriques Teles Carreira, vulgo Iko, então Ministro da Defesa, joga papel importante e decisivo no julgamento extra-judicial e posterior fuzilamento do denominado cabecilha da inventada rebelião armada, feito por um pelotão de fuzileiros na Fortaleza de São Miguel, em Luanda.
Para as milhares de famílias, que perderam os seus entes queridos durante e depois da repressão dos insurrectos, o trauma causado por esse pesadelo ainda é, 34 anos depois, a pura realidade. Mas o segredo por parte do regime em volta desta questão é considerado Segredo de Estado, ou melhor, e para citar o historiador angolano Carlos Pacheco, "o silêncio tem funcionado tal e qual uma espécie de arca fechada a sete chaves, que se hesita a abrir".
Mas seja como for, o 27 de Maio constitui a página mais negra que a história de Angola já conheceu, considerado o facto da atrocidade registar-se numa altura fora do domínio colonial português, aí a gravidade acrescida da mesma.
Mas o labirinto de segredos em volta do 27 de Maio de 1977, não é o único mistério que marca a existência da história pré e mesmo colonial de Angola. Verdades sobre os verdadeiros motivos e assassínios de Matias Miguéis, José Miguel Francisco irmão do conhecido cantor angolano "Calabeto", braços direito de Viriato da Cruz, alegadamente mortos por ordens expressas de Agostinho Neto em 1965 no regresso de uma Conferência em Jacarta, na Indonésia de Sukharno, são apenas alguns de muitos outros casos por se esclarecer, tal como as verdadeiras razões que levaram ao assassínio de Deolinda Rodrigues, heroína do MPLA. Terá sido em retaliação de Holden Roberto pela morte de Matias Miguéis e José Miguel Francisco? Quem e porquê mataram um tal "camarada" Ferro e Aço? Para não revelar a forma Barbara e cruel das execuções de Matias Miguéis e Miguel Francisco?
Quais foram as verdadeiras razões que levaram Nito Alves sob conivência do Comité Director do MPLA, a executar o conhecido Comandante Lourenço Casimiro, ou simplesmente "Miro", na chamada Primeira Região político-militar?
Voltando ao tema central, afinal o que esteve por detrás do cenário do 27 de Maio? Tinha necessariamente que existir um 27 de Maio, e a repressão teria que ser tão violenta tal como ela se deu? Que relação histórica teve o 27 de Maio com outras rebeliões e Movimentos contestatários no seio do MPLA, tais como as conhecidas "Rebelião da Jibóia”, liderada por Katuwe Mitwe, transformada depois em Revolta do Leste" co-coordenada entre este comandante militar e o político Daniel Chipenda e a "Revolta Activa" de Gentil Viana? Por mais retóricas que pareçam estas perguntas em certos círculos do Movimento nacionalista angolano, certo é, entretanto, que elas merecem necessariamente respostas, estudos e reflexão adequadas. Nesta modesta contribuição o meu objectivo não é por isso confrontar-me com tais perguntas, mas sim, sensibilizar aqueles que detêm o talismã das verdades sobre este complexo e controverso dossier, muitos deles espalhados pela diáspora, para que se pronunciem ou que se calem para sempre.
Não restam dúvidas de que a falta de debate interno, a falta de contestação externamente visível nas lideranças partidárias no seio do MPLA e também da UNITA e mesmo da FNLA, excluía e exclui a possibilidade de se sararem feridas com base na aplicação de melhores métodos para aperfeiçoamento de normas político-morais no seio destes Partidos políticos, antigos Movimentos nacionalistas angolanos.
Ao longo da história da existência do MPLA, UPA/FNLA e da UNITA, todas as contestações e dissidências foram repelidas com a maior violência possível por parte das respectivas lideranças, e muito particularmente por parte dos líderes "incontestáveis", Agostinho Neto, Holden Roberto e Jonas Savimbi, respectivamente. Desta forma estava excluído qualquer campo para o debate franco e aberto bem como para crítica e muito menos auto-crítica.
Já o histórico Viriato da Cruz, cuja figura e nome foram publicamente apagados pela poderosa máquina de Informação, o DIP (Departamento de Informação e Propaganda) do MPLA, não levou a melhor com o seu antagónico, Neto. A ambos eram reconhecidas qualidades como: intelectualidade, disciplina, robustez e perfil políticos e outros adjectivos. Em termos comparativos, entretanto, Viariato da Cruz era, segundo seus contemporâneos, o homem que detinha o poder e influência sobre as massas populares aderentes ao MPLA.
Tal como Viriato, no MPLA também existiu um homem, Nito Alves, pese embora e em termos de idade não fazer parte da geração dos fundadores do MPLA, que conseguiu a dada altura ganhar vários extractos das massas populares e círculos influentes no seio do Movimento.
O politólogo e historiador congolês Jean-Michel Mabeko Tali, resumiu assim a pessoa política de Nito Alves, bem como sua inserção e carreira no MPLA: "Ele, como outros da Primeira Região, tinha claramente feito entender a sua diferença quanto à visão que tinham, não só da forma como a luta foi dirigida, mas muito rapidamente, de questões como a gestão da questão racial da sociedade e as questões sociais".
Nito Alves, aproveitando a soberba chance de organizar o MPLA em Luanda, mesmo antes da chegada de Neto a Luanda em Fevereiro de 1975, ganhou naturalmente nome e popularidade e era já conotado como sendo líder de uma tendência pró-soviética, mais tarde provada devido sua assiduidade em Moscovo.
Com a chegada de Neto e seu círculo restrito a Luanda, começam as intrigas com o objectivo de o afastar do círculo restrito do Partido e consequentemente do Presidente Agostinho Neto. As divergências internas foram crescendo, ao ponto de mais uma vez chegarem a existir pelo menos três fracções no seio do Partido: os Netistas (de Agostinho Neto), entre eles também o ideológico Lúcio Lara e Iko Carreira; Os Nitistas (de Nito Alves) apoiado por José Van-Dúnen, Bakalov, Sita Vales e outros; os chamados Tugas, conotados com o Partido Comunista Português-P.C.P. alegadamente mais próximos a Nito Alves.
Este cenário é praticamente parte ou sequência de uma norma que no passado longínquo marcaram as dissidências no seio do MPLA, quase sempre em forma de Trindade: Facção Neto; Facção Chipenda - também chamada de Revolta do Leste e a Revolta Activa.
Ao se aperceber de que as rebeliões no seio do Movimento visavam reduzir o seu protagonismo e carisma, Agostinho Neto aborta a realização de uma Conferência Nacional do Movimento proposta por dirigentes contestatários da sua liderança, entre eles evidentemente Nito Alves. A partir desta altura, as suspeitas de uma rebelião por parte de Nito Alves e sua forte ala, basicamente militar, estavam preto no branco, isto é, eram mais do que evidentes. Aliás os movimentos preparativos de Nito Alves e sua equipa, nunca passaram despercebidos pela liderança do MPLA, foram, isso sim, menosprezados. Este status quo ganha novos e sérios contornos, uma semana antes da tentativa do golpe de estado, com a agudização da situação para os revoltosos.

A repressão dos insurrectos
O Comité Central do MPLA reúne-se nos dias 20 e 21 de Maio, seis dias antes da intentona golpista, e decide expulsar do grémio central do partido, Comité Central, os dois que viriam mais tarde a ser identificados como sendo os "cabecilhas" do Golpe de Estado, a saber: Nito Alves e Zé Van-Dúnen.
Em consequência deste e doutros factos, Neto autoriza a temível máquina repressora da DISA, moldada ao estilo e eficácia da PIDE e com métodos repressivos comparados aos da GESTAPO de Adolfo Hitler e da STASI da antiga RDA, para que fizesse um acompanhamento literalmente severo e consequente da preparação de uma provável insurreição.
Resultado da intentona golpista: mais de 28 mil mortos; mais de 3 mil desaparecidos; mais de metade dos oficiais superiores do Exército no activo (Majores e Comandantes na sua maioria) foram abatidos da forma mais selvagem.
Nito Alves, o homem mais falado e procurado em Angola nos meses de Maio e Junho de 1977, viria a ser alegadamente preso dias depois, tendo sido submetido a um longo e rigoroso interrogatório. Para legitimar a sua própria execução, foi finalmente forçado a redigir a seguinte sentença de morte, que se supõe ter sido redigida pelo seu próprio punho:
"A decisão da eliminação física dos responsáveis eliminados no dia 27 de Maio de 1977 foi tomada por mim, Zé Van Dúnen e Sita Vales. Mas é de notar que tal decisão visava apenas os responsáveis de que tínhamos conhecimento correcto da sua prisão: Major Saydi Mingas, os Comandantes Bula, Dangereaux e Nzaji. Os outros detidos eram desconhecidos por nós".
Nota de realce, é o facto de o Comité Central do MPLA admitir na sua nota de informação do Bureau Político do MPLA de 12 de Julho de 1977, Pág.15 (Edições Avante!) uma certa "passividade dos órgãos dirigentes, assoberbados com a complexidade da situação, que exigia soluções para os graves problemas de ordem militar", facto que não terá permitido ter calculado com exactidão, o estado avançado em que a preparação do golpe havia alcançado.
Para o MPLA, e segundo se pôde ler no mesmo documento, tanto Nito Alves como o seu braço direito, José Van-Dúnen, enveredaram pelo caminho do fraccionismo, pois a sua "acção deixara de se inspirar nas leituras de Mao Tsé-tung para passar a inspirar-se nas leituras superficiais de alguns textos de Lénine e de outros autores marxistas, que nem sempre eram compreendidos dentro do seu verdadeiro contexto".
Com o aborto da rebelião armada de 27 de Maio de 1977, acabava um sonho recém iniciado como bem o descreve Jean-Michel Tali: "Nito [Alves] queria uma revolução pura e dura, do tipo bolchevique, o seu discurso pró soviético não deixara dúvidas sobre isso. [...] O importante na minha opinião, é entender a dinâmica sócio-política que desemboca nesta tragédia. Parece-me importante colocar a questão em termos das lutas sociais que sustentam o discurso político de Nito e sua convicção quase messiânica, de que a história tinha colocado nos seus ombros um papel fundamental neste processo revolucionário angolano".
Extractos do 7º capítulo da obra de Orlando Ferraz "Angola: Depois da Tempestade a Bonança" com 240 páginas a ser lançado brevemente.
*Com António Setas

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