Gil Gonçalves
O esfomeado sai nu do ventre da sua mãe, e assim continuará. Assim como veio, assim irá. O único proveito que teve na vida foi observar os seus ossos sem carne. Comeu a fome das trevas, e padeceu muitas enfermidades. Morreu tuberculoso fora do hospital porque eram tantos, tantos tuberculosos que não havia lugar para mais ninguém. Eis uma coisa bela que vi: eles, os petrolíferos a comerem e a beberem sem se cansarem todos os dias da sua vida. Esta é a porção que lhes resta. O petróleo deu-lhes riqueza e fazenda e poder para deles comerem. A nós resta-nos a fome. Porque nunca se lembrarão dos dias da nossa vida.
Um bom rei que se preze abandona o povo à sua sorte.
Há um mal que tenho visto e é frequente entre os escravocratas. Um rei desumano a quem o petróleo deu riquezas, e nada lhe falta. O petróleo não deixa mais ninguém daí comer. E pelo andar das coisas gerará mais cem filhos e viverá muitos anos. E na sepultura para onde vai leva o dinheiro para lhe ser útil na encomendação da sua alma. Mesmo nas trevas para onde vai ninguém jazerá em paz. Não verá mais o sol, mesmo assim nunca eternizaremos. O esfomeado ficará ainda mais nu, não saberá como veio e como irá. As enfermidades desesperam como violentos terramotos. A tuberculose estabeleceu-se, é epidemia. Só haverá alimentação nas trevas. Nem com a morte haverá paz. Uma coisa iguala os novos-ricos e os que passam fome. No dia da morte o coração pára. Vão todos para o mesmo ossário.
Os que conseguem trabalho alimentam as bocas dos novos-ricos, e mesmo assim eles não se contentam. Porque, que mais tem o rico que o pobre? O rico tem o poder de espalhar a fome. O pobre tem o poder de se acorrentar. Até os olhos do rico tem poder. Basta um olhar e tudo se transforma em petróleo. São sempre os mesmos nomeados, e com eles não podemos contender. Sendo certo que têm muitas coisas para aumentarem a maldade. Isto é o que têm de melhor. Só eles sabem o que é bom para nós. Nem merecemos a regalia de descansar nas suas sombras.
As vantagens do sofrimento da fome… uma paciência, sapiência eterna
Melhor é a fama do rico, do que o valor de qualquer pobre. Melhor é a morte do que o nascimento de um esfomeado. Entre a casa de um faminto e a casa do rico onde há luto, melhor é ir a esta, porque sempre se come alguma coisa. Melhor é a riqueza do que a pobreza, assim pensa o famélico. Na casa do rico onde há luto, está lá o coração dos outros ricos. É melhor ouvir a repreensão do rico, porque disso depende o futuro do faminto. O riso do pobre é como o crepitar de espinhos debaixo de uma panela com água… se a conseguir (a água). Melhor é o principio de uma riqueza sem fim, do que um coração com muitos princípios. Nunca deixes o teu espírito irar-se na presença de um rico. É a coisa que mais detestam. O rico diz: estes dias são melhores que os passados. Isto revela muita sabedoria. Qual herança!?. Não deixo nada para ninguém. O rico adora a sombra do dinheiro. Nisto reside a sua sabedoria. Atentem para as suas obras. Quem fará melhor que eles? No dia da prosperidade deles tenta encostar-te. Quando celebram o seu aniversário não faltes, pode ser que sejas notado e quem sabe…
Por mais que tentemos não conseguimos derrotá-los. O feitiço deles é muito forte. Nunca sejas justo nem sábio. Os ricos não gostam disso. Serás destruído, destituído no próximo decreto. Viverás mais tempo, se fingires acreditar em tudo o que eles te dizem. Quem teme os ricos é um grande sábio. Devemos dar graças a Deus por tanta sabedoria revelada naqueles que nos governam. Na verdade são os mais justos que apareceram até hoje sobre a terra. Nunca pecaram. Nunca foram amaldiçoados por um servo. E nunca eles amaldiçoaram quem quer que fosse. Quanto mais sábios se tornam, mais a sabedoria se afasta deles. Estão sempre longe e profundos. Alguém os consegue encontrar? Temos sábios a mais. Daí o desencontro das ideias. Uma coisa mais amarga do que a fome, é fugir de noite e de dia das prostitutas, que nos perseguem como o exército mais bem organizado do mundo. Trinta anos gastos para achar as causas da fome. E quando surgem com novos planos, ficamos assustados, porque a fome vai aumentar. Por mais que a nossa alma busque, encontramos sempre o mesmo caminho. Porque não são derrubados? Porque não nos deixam em paz? Queremos que isto acabe depressa. Mas eles não deixam. Têm muitas invenções.
Devemos obedecer às leis imutáveis da fome.
Quem é como o opressor? Quem o consegue interpretar? A falta de sabedoria faz o seu rosto duro. Devemos obediência eterna aos que nos fazem morrer à fome. Devemos obedecer com muita atenção aos mandamentos do rei. Ele faz tudo o que deseja, o que lhe apetece, e tudo nele é infalibilidade. E que ninguém duvide disso. As represálias serão rápidas, ninguém escapará. Só a palavra dele tem poder. Tem o poder absoluto de enviar todos para o inferno da fome. Quem lhe obedecer não sofrerá nenhum mal. Já chega o mal da fome, que mais falta?!
E perguntei a alguns jovens se queriam trabalhar: perguntaram onde. Respondi-lhes que era no campo. Eles não aceitaram, não querem esse tipo de trabalho. Que querem então? Só eles sabem. Os dominadores têm poder sobre o nosso espírito. Decidem quando devemos morrer. Tem poder sobre o dia da nossa morte. As armas da peleja da fome estão com eles. Temos que nos transformar em águias, voar e invadir-lhes os palácios. Têm todo o tempo para nos dominarem. Não sei como o conseguiram: afinal o tempo também está à venda? Conseguiram comprá-lo!? Depois de nos matarem à fome, nem terra nos dão para a sepultura? Somos enterrados em qualquer lado? Com tanta terra à vista? Também isto é a realidade.
O faminto morre lentamente; sem esperança aguarda que a fome cumpra o juízo final
Como o juízo da fome demora tempo, os governantes aproveitam para estudarem as ciências do mal. E os dias se prolongam cem vezes mais: o reino da maldade total foi finalmente edificado. Já não temem nada. Até as suas sombras nos controlam. Tornaram-se grandes cientistas. As obras dos justos são consideradas más. As obras que eles não fazem, são as boas obras. E inventaram uma boa e bela coisa: comer, beber, e alegrar-se. É essa a ocupação principal dos maldosos. Os outros que se lixem. Roubem como nós. Tentem vá! …nem sabem o que os espera. Maldosos! Não descansam, não dormem por causa do dinheiro. Então vi toda a obra deles, que nós não podemos alcançar. Só eles sabem tudo. Quando abrem a boca, o que já não suportamos, temos que fechar os ouvidos, porque as nossas cabeças estoiram. Porque são fulminantes os raios das suas palavras.
As mesmas coisas da fome só sucedem aos justos. Sonhemos com aquilo que o MPLA nos promete e escutemos a única actividade política da oposição submissa… apenas comunicados.
O meu coração palpita porque não consegue entender: que as obras dos justos e dos sábios não estão nas mãos deles. Trocaram o amor pelo ódio. Vê-se facilmente nas suas faces. Toda a desgraça nos acontece. Ainda continuamos sacrificados em nome da revolução. Este é o mal que ainda resiste. Os esfomeados caçam com as mãos. Porque os cazumbis (almas do outro mundo) precisam de morrer. Apenas têm uma consolação: jamais serão recompensados. Deambulam por aí sem memória. São muito barulhentos quando pesquisam nos caixotes do lixo. Perderam o amor, ganharam o ódio e a inveja. Já não há mais esquina que não lhes pertença. Os que nos governam sonham em dominar o Universo. Vai pois e imagina que bebes e comes o pão que nunca terás. Mas quem se agrada das obras dos esfomeados? Nunca em tempo algum terás roupas ou vestidos. Pois se nem comida tens. Como vou amar a minha mulher todos os dias da minha vida? Se a ocupo a pensar no que comerei hoje? Tudo o que apanhar para comer será feito com todas as minhas forças. Porque na sepultura para onde vou comerei as larvas do meu corpo.
Existem apenas três democracias: Branca, Negra e Petrolífera.
Depois de tanto sofrimento nesta economia popular, ainda vou mais no inferno?
A fome é mais útil aos outros do que àquele que a possui
Aqui, o tempo e a sorte não pertencem a todos. Os sábios não têm direito a pão. De repente ou não, o mau tempo está sempre a cair-nos em cima. Em cima deles nunca cai. As redes malignas deles fizeram com que diminuísse o nosso peixe. Sábios aqui, não têm valor. Só é sábio quem tiver muito dinheiro. Nas províncias não há quase ninguém, fogem para a capital. Houve um polícia que levou um tiro nas costas em defesa da pátria. Há oito anos que está imobilizado. Ninguém se lembra, nem quer saber deste pobre homem. Aqui, a força vale mais que a sabedoria. Os sábios são desprezados, não têm valor. As palavras dos tolos são ruidosamente ouvidas. Com tanto barulho as palavras dos sábios não se escutam. As armas de guerra valem mais do que qualquer sabedoria. E um só atirador destrói e espolia os nossos bens.
A loucura da fome causa muitas desgraças
O lixo é tanto e por todo o lado, que até o perfume Coco Chanel número cinco de 1922 desconsegue ludibriar os maus cheiros. Os tolos têm dois corações: um à esquerda e outro à direita. Aqui, os tolos quando abrem caminho à força, gritam que são sábios. Quando alguém incomoda um governador, fica sem lugar. Cometem-se muitos erros e não há ninguém que os assuma. Os ricos e os tolos assentam-se em lugares altos. Os príncipes andam sempre em carros da cor do petróleo. Que brilham graças aos contratados dos diamantes. Os servos quase não têm por onde andar. Quem abre as covas está muito cansado. Os mortos da fome não tem conta. Alguns governantes já levaram chuva de pedras. Não há excelência na sabedoria para dirigir.
As cobras quando mordem alguém ficam envenenadas. As palavras dos tolos devoram-nos. As palavras quando caiem das suas bocas espera-se o pior. Por mais que as multipliquem o fim é sempre o mesmo. Nunca se cansam de falar. Os príncipes comem de manhã, à tarde, à noite. Estão sempre a comer. Os esfomeados lutam para conseguirem um pão. Eles conseguem refazer as forças depois do cansaço da comida. Quem não tem nada para comer, nunca se cansa. Os tectos das casas estão destruídos, a água goteja, ninguém se sente culpado. Passam a vida a fazerem convites para festas. A bebida é demais. O dinheiro acaba depressa. Vida de esfomeado é assim. Eh! Não conheço ninguém que aqui não amaldiçoe os novos-ricos.
Não se perde nenhuma oportunidade para comermos (!) e bebermos. Daí as festas sem fim.
Não tendo pão para lançar sobre as águas, como o acharemos passados dias? Repartir com sete, ou com oito? Não temos comida. Como vamos repartir o que não temos? Quando um esfomeado cai, para o sul ou para o norte, no lugar em que cair ali ficará. Ninguém quer saber. Só nos resta olhar para o vento, porque não temos nada para semear. Queremos lá saber qual o caminho do vento. O que queremos é comida. Pela manhã não posso colher nada. Já disse que não tenho nada para semear. Atroz é a luz da fome, que provoca cegueira. Como podemos ver a luz do sol? Como viveremos muitos anos com a fome? A fome é alegria? Alegra-te jovem com as tuas bebedeiras, e anda pelos caminhos da destruição, de olhos nublados pela bebida. Não consegues remover o mal que está entranhado na tua carne. Quem o removerá?
A fome da mocidade prepara-a para a velhice e morte precoces
Para nós jovens, todos os dias são maus dias. Tudo escureceu. Quero lá saber dos conselhos. O que é que há aí para beber! Ando sempre bêbado. Ninguém quer saber de mim. Todas as portas que conhecia já se fecharam. Quando me embebedo não temo nada. A rua é a minha casa paterna, eterna. Quem se mete comigo, despedaço garrafas e rasgo, corto quem me chatear. Durmo no pó da rua sem espírito. E quanto mais bebo, mais sábio fico.
O dever da população consiste em dar graças pela fome concedida e guardar os seus mandamentos
Por mais que tente, a bebida não me deixa encontrar palavras agradáveis. As palavras da sábia bebida agarram-se a mim de tal modo, que não consigo retirá-las. Falar de livros são coisas inúteis. Prefiro aqueles que ensinam a beber. Uma coisa há que me incomoda muito: ficar sem bebida. Quer seja boa quer seja má, o que interessa é que me faça perder o juízo. Especialmente o vinho a martelo, eternamente importado. Há coisas que são intemporais e a previsão meteorológica diz que virá muita chuva e ventos ciclónicos, disto todos sabemos. E os nossos desgovernos sabem-no? Fingem… são países só com dirigentes, porque povo há muito que não existe. Uma coisa o esfomeado nunca sabe… o que irá comer amanhã?
upanixade@gmail.com
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