A história dos Kimbundu mostra que, fossem quais fossem as tendências estruturais que incitavam as pessoas a criar estruturas políticas, foram, antes do mais, circunstâncias históricas não estruturais que determinaram, dentre a miríade de instituições transversais, as que cresceram, se desenvolveram e duraram o tempo suficiente para poderem mais tarde serem consideradas um Estado.
António Setas
Sem dúvida mais de um factor promoveu o crescimento de cada um dos reinos, e por isso convém fazer uma classificação dos diferentes tipos de circunstâncias históricas que foram importantes para a sua formação. Relembramos aqui que, na edição da semana passada enumeramos os principais motivos que estiveram na origem da criação de condições para que se constituíssem os Estados objectos deste estudo. Hoje vamos analisar mais de perto outros aspectos relacionados com o mesmo assunto.
Os Estados Kimbundu segundo um outro critério
1) Estados primários, que surgiram através da conversão, ou evolução de uma instituição política local, como o kilombo e o ngola. Estes Estados distinguem-se por se basearem em grande medida nas práticas e ideias locais e podem, por essa razão, ser excepcionalmente estáveis e duradouros.
2)Estados secundários, tais como o ndala kisua dos Mbondo, originado por secessões a partir de Estados mais antigos. Estes Estados, se quisessem sobreviver tinham que adaptar as suas instituições originais, oriundas de um reino que agora lhes era estranho, às novas circunstâncias locais. Um outro exemplo é dado pelos títulos makota que fugiram do kulaxingo em 1619 para abraçar as instituições e ideias Tumundongo.
3)Estados fundados independentemente de controlo exterior, mas imitando instituições presentes nas redondezas. Este processo, conhecido dos antropólogos por “difusão de estímulo” explica, possivelmente, parte da história dos sucessivos Estados baseados no kinguri a leste do Kwango. Também se pode aplicar à formação de alguns bandos Mbangala que apareceram mais para oeste, nos finais do séc. XVI e princípios do séc. XVII. Subsiste no entanto uma certa dificuldade para distinguir a “difusão de estímulo” teórica de uma possível extensão de uma estrutura estatal já existente, feita através de concessões de títulos políticos de uma a outra linhagem dos Tumundongo.
Enfim, temos o método baseado em temas conceptuais que parece terem-se repetido em muitos dos casos analisados entre os Kimbundu. Abordaremos três: o “de fora”, a importância dos recursos humanos e a função do rei como árbitro.
1)“Estranho”, pessoa “de fora” (outsider). Para os Kimbundu, apenas as pessoas ligadas pelo parentesco estavam aptas a ser “de dentro”. As estruturas políticas Kimbundu eram, por definição, organizações que estruturavam o relacionamento entre estranhos, ou seja, não-parentes. Os próprios reis Kimbundu eram “estranhos”(outsiders) apartados dos seus grupos de filiação por cerimónias iniciáticas, que os colocam acima delas. Eles detinham o monopólio do poder no que se refere à autoridade exercida sobre as pessoas que se viam umas às outras como “estranhas”, mas não podiam interferir no funcionamento interno das instituições constituintes dos seus Estados., no caso dos Kimbundu as linhagens.
2)Os recursos humanos disponíveis. A defeito de tecnologia, de escrita e de outros meios tecnológicas avançados e eficazes, o número de aderentes ao rei desempenhava uma importantíssima parte no bom desempenho do monarca.
3)A função do rei como árbitro. Dada a complexidade das linhagens e a constante interferência de instituições transversais no desenvolvimento das sociedades Kimbundu, o facto de o rei ocupar uma posição nos limbos, acima de todas as linhagens, dava-lhe a autoridade necessária para interferir como “árbitro”
Pode-se concluir deste breve resumo dos mecanismos de tomada do Poder, que a história política dos Kimbundu foi a história das “pessoas de fora”, os reis, numa sequência de tentativas de alargar a sua autoridade sobre as relações entre pessoas que eram, pelas suas origens, estranhas entre elas. E as tradições Kimbundu confirmam, metaforicamente, que as coisas se passaram deste modo, ao atribuírem unanimemente a fundação do Estado a caçadores e conquistadores “de fora”, como Ngola Inene, Cibinda Ilunga, e outros.
Por outro lado, as sociedades bantu, e a dos Kimbundu em particular, não eram letradas, nem tecnológicas, e quando os Europeus chegaram a África puderam formar Estados e alargar a sua hegemonia política, aplicando técnicas administrativas e militares até essa data, evidentemente, inacessíveis aos autóctones, que só podiam erguer Estados pura e simplesmente baseados na quantidade de gente predisposta a ajudar uma elite no alcance desse objectivo. Daí a importância crucial do número absoluto de elementos da população na formação dos Estados, de que adveio a importante posição dos escravos no coração de muitos reinos Kimbundu (ver a espantosa eficácia dos Imbangala).
Enfim, o preponderante papel do rei , como “pessoa de fora”, colocava todos os seus súbditos, sem excepção, na condição de realmente submetidos a uma autoridade com poderes sobrenaturais, de que todos eles, “filhos” de um pai potentíssimo, necessitavam, o que afasta a necessidade de conquista por parte do rei, para explicar a razão que levou essas pessoas a assumir uma posição subordinada em relação ao monarca, fosse ele qual fosse. A sua simples função de arbitragem, a sua neutralidade outorgada pelo estatuto de “rei de fora” (outsider), apoiava a sua reputação ser o único árbitro capaz de oferecer um julgamento imparcial.
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