sábado, 18 de fevereiro de 2012

O juízo dos juízes do Sagrada Esperança. Manifesto do “Albatroz”, o plágio e a alteridade na literatura moderna O juízo dos juízes do Sagrada Esperan



Hoje por nostalgia, mas também um forte sentimento de amizade e companheirismo vou falar de Albatroz Cultural que é a designação simbólica de um movimento literário que nasceu em Paris na década de 1970, animado por emigrantes de nacionalidade portuguesa. António Setas, meu amigo e confidente recordo fez parte desse movimento, dito de“Literatura de Aguarrás”.

William Tonet

E vou fazê-lo pelo facto de o júri do prémio Sagrada Esperança, ter decidido, não importa se bem ou mal, retirar o prémio ao escritor António Setas, por ter incluído na sua obra algumas citações, não ultrapassando sequer 11% de uma obra, que havia traduzido de Jean Martial Mbah.

A penalização do júri parece-me excessiva, tal como a consideração sobre o alegado plágio, quando o novo pensamento da literatura mundial é muito volátil sobre o assunto.
Na actualidade, com as novas tecnologias da comunicação, até os escritores não abdicam da sua utilização, daí que os livros estejam a ser vendidos electronicamente, baixando na internet. O escritor e professor canadense, Manuel Carreiro ligado às áreas de Filosofia, Letras e Educação, num interessante ensaio sobre Literatura e Alteridade tem a seguinte opinião: “o simples facto de o escritor ter uma história para contar é o primeiro movimento de alterização em literatura: para escrever, é necessário, antes de mais nada, imaginar-se outro. É necessário habitar este outro da linguagem e criar ficções, é necessário criar a mente de um outro, as personagens, e criar todas as suas interacções. Devo dizer que mesmo os géneros auto-proclamados de não - ficção não podem escapar ao processo de alterização. Se alguém escreve a sua própria autobiografia, está saindo de si para criar uma narração, um personagem baseado em si próprio. Se alguém clama que devemos averiguar e nos ater a “factos históricos concretos”, esquece-se de que mesmo a história é uma “estória” (apenas para resgatar a clássica e datada distinção): a história também configura-se uma arte narrativa – o tal facto concreto já deixou de ser no instante em que aconteceu – resta-nos narrá-lo. Posso invocar o famoso aforismo de Nietzsche aqui:“não há factos, somente interpretação”.

Ora aqui chegados, temos imediatamente interpretações distintas porquanto continua o escritor, “depois do trabalho com a linguagem e da criação do universo ficcional, transmite-se o “texto-tecido” para o leitor. Segundo movimento de alterização: agora é o leitor quem participa do movimento de alterização entrando na cabeça do escritor, habitando a sua pele, interpretando o que os narradores dizem e criando sentido”.

O terceiro movimento de alterização consiste na capacidade da arte nos transformar enquanto pessoas. Eu passo a ser um outro (aqui, estou a resgatar e distorcendo o famoso aforismo de Rimbaud). A obra assessorada poderá (ou não) nos modificar, nos influenciar de alguma maneira. Mas ela certamente nos convidou a sairmos de nós, a deixarmos de ser um pouco nós mesmos e nos convidou também a desenvolver um pouco de empatia. Embora eu utilize a primeira pessoa neste texto, você, leitor, agora habita o meu pensamento, e segue a minha argumentação. Neste pequeno instante da leitura, tu, leitor, estás na minha cabeça, na minha imaginação, na forma como uso a linguagem para tentar te alcançar, te tocar. Agora que acabei a frase anterior, o instante da criação terminou, o facto perdeu-se. Parei de escrever e olhei pela janela. Retornei e transmiti o ocorrido. Ele se foi. E você aqui, a acompanhar.
Voltemos à tentativa de teorizar, agora. Gostaria de ressaltar que empatia e alteridade são coisas distintas, mas a primeira conduz à outra: enquanto a empatia consiste em se identificar com o outro (ou seja, é ainda a nossa perspectiva que está em vigor), a alteridade consiste neste difícil exercício que implica em aceitar esta “outridade”. Alteridade é o outro em todo o seu mistério, inacessível e belo, incompreensível e inapreensível. Alteridade pouco tem a ver com interpretação, firulas linguísticas, entendimento ou compreensão. Alteridade consiste em aceitar este inapreensível mistério que o outro simplesmente é".
Visto o caso por este prisma, torna-se mister, também, a transcrição do manifesto do Albatroz referente à criação de colagens literárias. Independentemente do valor literário que possa ter, ou não ter, este movimento existiu e o meu kota, António Setas participou nele. Hoje defendo que essa ideia é correcta, pois homenageia um texto dando-o a ver sob prismas diferentes daqueles que foram opção do seu autor.

«Sem a subtração o olhar esguio no outro a Arte não existe na sua plenitude, dizia Picasso, não exactamente com estas palavras, mas exprimindo claramente esta ideia. Ele próprio "roubou" Modigliani, assim como Rimbaud "roubou" Verlaine, Mozart "roubou" Bach...E onde está o verdadeiro artista que não "rouba" ideias, ou técnicas novas, ou uma ou outra migalha das melhores obras dos outros artistas? (não se trata aqui de plágio, que apenas é agressão matreira, mas de colagens)

Uma colagem não é plágio nem "roubo", aquele, tanto como este último, vergonhosamente usurpadores. A “colagem” é parte integrante da dialética da Arte, é, simplesmente, arte, arte menor e humilde, mas arte».

«Numa colagem as frases do texto original são propriedade in¬telectual do autor, contudo uma vez publicado o seu texto, este fica à disposição dos que o leram, e o colador não faz mais do que escolher no seu seio alguns "tijolos" e desviá los temporariamente para realizar uma nova construção. Findo o trabalho o colador restitui a César o que é de César, inclina se com o devido respeito e espera que o fruto da metamorfose operada no texto de origem seja apreciada.
Com a tese de doutoramento de Jean Martial Mbah foi o que António Setas fez. Colou e no fim fez (quer dizer, pensava poder fazer) a vénia que lhe era devida. Vénia essa adulterada por uma tentativa de o denegrir e desvirtuar o seu trabalho. Uma tentativa infeliz que impediu que fosse limpidamente demonstrada a sua honestidade.
Os contornos sinuosos da trama urdida
O celeuma começou, quando depois de ser considerado vencedor do prémio Sagrada Esperança/2011, o júri viria mais tarde decidir em contrário, com o seu presidente a tomar uma atitude de pouca urbanidade, ao preferir enviar uma mensagem ao invés de um contacto pessoal, com a seguinte redacção (mensagem transmitida a A.Setas por intermédio do Dr. António Fonseca):
“CARO ANTONIO SETAS:
TENHO A INGRATA MISSAO DE TE INFORMAR QUE EM REUNIAO DE 20 DE JANEIRO O JURI DO PREMIO LITERARIO SAGRADA ESPERANÇA DECIDIU RETIRAR-TE A ATRIBUIÇAO QUE HAVIA FEITO A 30 DE NOVEMBRO.
DE ACORDO COM O JURI " EM FACE DOS FACTOS PROVADOS E RECONHECIDOS POR ANTONIO SETAS, DE SER MAIS DE UM TERÇO DO ROMANCE A TRANSCRIÇAO LITERAL DA OBRA DE JEAN MARTIAL MBAH, ESTE PERDE EM CRIATIVIDADE E VIOLA O ARTGO 3`ª, n ª 2 DO REGULAMENTO QUE DETERMINA QUE AS OBRAS A CONCURSO ´´ DEVERAO SER RIGOROSAMENTE INNEDITAS ``. PELO QUE O JURI, CONSCIENTE DE QUE A MANUTENÇÃO DA ATRIBUIÇÃO DO PRÉMIO CONSTITUIRIA UM VERDADEIRO ENTORSE AO REGULAMENTO, DECIDIU RETIRAR O PRÉMIO A ANTONIO SETAS E NÃO ATRIBUÍ-LO NA PRESENTE EDIÇÃO."

MELHORES COMPRIMENTOS

ANTONIO FONSECA
Ao recepcionar esta nota António Setas responde aos 02 de Fevereiro ao INIC.
“Caro director:
Recebi bem a mensagem sobre a decisão do júri do Prémio literário Sagrada Esperança.
Várias questões se levantam em função dessa decisão:
1º- Por que razão uma decisão tomada no dia 20 de Janeiro me foi comunicada somente no dias 2 de Fevereiro?
2º - Como é que menos de trinta páginas de um anexo duma obra com 104 páginas (são efectivamente 102) de ficção pura e 135 páginas no total, fazem mais de um terço da obra em questão?
3º - Como foi possível levar em consideração que tudo o que coincide com o que está escrito na obra de Jean Martial Mbah tivesse sido indevidamente retirado da sua obra, como se esse autor fosse legatário universal de todas as datas, de todos os nomes de pessoas, de países e de factos divulgados por toda a parte, a ponto de considerar que os rodapés mencionando países que reconheceram a independência de Angola em 1975 também tivessem sido retirados do seu trabalho, como se ele fosse o único no mundo a mencioná-las?
Não estou de acordo e vou interpor recurso.
Sei que não serei recebido, mas vou interpô-lo, serenamente.
A minha defesa, lamento, mencionará o que me sucedeu no passado, pois estou em crer que esta decisão foi tirada a ferros com influências que nada têm a ver com a validade da obra recusada.
Sem outro assunto, Sr. director queira aceitar os protestos da minha alta consideração
Luanda, 2 de Fevereiro de 2012
António Setas”
E para completar a sua indignação o ex-premiado estende o seu sentimento ao colectivo dos jurados, face a decisão de lhe retirar o prémio
“Caro Nelson:
Recebi a mensagem do Prémio fugitivo. É claro que não agradeço, mas também sei o que é pactuar e não protesto. Admito ter cometido erros, dos quais o júri do S.E. me apresentou a factura. A meu ver, severa demais, mas também admito que não havia alternativa, digamos, plausível, era isso, ou dar-me o Prémio, o que seria um trauma terrível para essas pessoas que patrocinam o dito cujo.
Estou a pagar a factura sem rancor. Tão naturalmente como fiquei ofendido com a frase «Em face dos factos provados e reconhecidos por António Setas, de ser mais de um terço do romance a transcrição literal da obra de Jean Martial Mbah».Explicações aqui vão a seguir.
Por decisão do júri do Prémio Literário Sagrada Esperança do dia 20 de Janeiro de 2012, o galardão que me tinha sido outorgado no dia 20 de Novembro de 2011, foi-me retirado pelas razões seguintes:
«Em face dos factos provados e reconhecidos por António Setas, de ser mais de um terço do romance a transcrição literal da obra de Jean Martial Mbah, este perde em criatividade e viola o artigo 3`ª, n ª 2 do regulamento que determina que as obras a concurso“deverão ser rigorosamente inéditas”. Pelo que o júri, consciente de que a manutenção da atribuição do prémio constituiria um verdadeiro entorse ao regulamento, decidiu retirar o prémio a António Setas e não atribuí-lo na presente edição."
O júri decidiu, está decidido.
Contrariamente ao que, a quente, me propunha fazer, interpor recurso, penso que o melhor é não interpor coisa nenhuma e acatar. A luta seria comparável a um hara-quiri. O que não me impede, primeiro, de não estar de acordo com a decisão do júri no que toca exclusivamente às motivações invocadas, segundo, contestar a apreciação feita sobre as colagens que fiz, de partes do texto da obra de Mbah, tendo sido elas transportadas, pela retórica jurisdicional, para a noção de “transcrição literal de mais de um terço do romance”.
Admito sem dificuldade que neste último ponto, embora possa contestar, sou obrigado a inclinar-me, pois o que eu pensava fazer, isto é, tomar as contribuições colhidas na obra de Mbah como referências, o que acontece é que elas se apresentam no meu texto como sendo da minha lavra e neste ponto preciso, admito ter cometido erros que me empurram a aceitar este veredicto que muito me afectou.
O primeiro erro foi não ter contactado Mbah e pô-lo ao corrente daquilo que acabei por fazer, colher da sua obra dados históricos para completar a minha obra de ficção.
Outro erro foi não ter levado em conta que o transporte de um texto científico para o discurso directo impossibilita a menção de referências às fontes utilizadas, porque as considerações, frases da fonte, automaticamente se diluem no discurso directo. Nada fiz para eliminar essa opacidade, por medo de que me acontecesse o que se passou em 2003.
Nesse ano, o meu manuscrito, apresentado ao Prémio S.E., foi eliminado na selecção final da última reunião do júri, porque tinha uma fita adesiva a ligar as folhas, fita na qual havia uma publicidade, já não me lembro de que produto, mas, de qualquer modo, do tipo “Omo lava mais branco”. Fui eliminado por essa única razão e nesse ano não houve vencedor do Sagrada Esperança…
O director dessa altura, João Constantino, poderá confirmar o que eu afirmo aqui atrás.
Quanto às motivações do júri, passo a recitar, «Em face dos factos provados e reconhecidos por António Setas, de ser mais de um terço do romance a transcrição literal da obra de Jean Martial Mbah (…)».
Para começar, eu nunca confirmei fosse o que fosse, e a asserção é incorrecta.
O meu manuscrito comporta 135 páginas, das quais 102 de ficção pura e 33 de “Cadernos”sobre as dissidências MPLA/FNLA na guerra de libertação de Angola.
As 33 páginas da totalidade dos cadernos já são menos de um terço do total das páginas de ficção.
As páginas de ficção não são a obra, mas apenas uma parte da obra que apresentei.
Enfim, se “descascarmos” os cadernos e ficarem apenas as contribuições de Mbah, eis o que acontece:
Número de palavras do manuscrito: 39.945.
Número de palavras dos subsídios de Mbah: 5.190 - Cerca de 12, 5%...
Número de palavras do anexo: 10.739
Número de caracteres do manuscrito: 324.917.
Número de caracteres dos subsídios de Mbah:32.096 - Quase 10%...
Número de caracteres do anexo:66.252
Creio que não é preciso comentar, tanto mais que este resultado até para mim é surpreendente. Pensava que a proporção de subsídios fosse maior, pelo que efectuei uma nova contagem que confirmou este resultado (envio também o resultado dessa pesquisa).
Para terminar, duas questões. Ficaria muito grato se me respondesses com sinceridade.
1–Quando, em que altura, na presença de quem disse eu algo que pudesse permitir a infeliz tirada inscrita na sentença do júri: «Em face dos factos provados e reconhecidos por António Setas, de ser mais de um terço do romance a transcrição literal da obra de Jean Martial Mbah…»?
Espero que essa imensa vergonha me será evitada por uma rápida correcção.
2–Por que razão uma decisão tomada a 20 de Janeiro só me é anunciada no dia 3 de Fevereiro?
Ficaremos por aqui e, sem outro assunto a tratar, aceita um kandandu do António Setas”.
E foi desta forma que o escritor esclarece os muitos equívocos existentes e, quem tem olhos de ver e mente aberta pode, doravante ficar com uma melhor percepção daquilo que na realidade aconteceu.

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