Gil Gonçalves
Estou abrasado nas catorze horas da tarde no vulcão solar da terra. É que o ar não está quente, está ardente, como se o inferno adquirisse morada, e daqui não mais desejasse sair. Embrenho-me na rua dos cidadãos sem pátria, onde qualquer automóvel depois de a atravessar deixa uma nuvem de pó vermelho da cor da miséria. A azáfama é a habitual, digna da actividade marginal. Os bebés viajam nas costas das mães, enquanto elas se esforçam na paciência e sorte de alguém, a maioria utiliza o feitiço, que lhes compre algo da escravidão da sua sobrevivência.
A ronda dos ditadores faz-se omnipresente com exército, guarda presidencial, forças de segurança especiais, polícia antiterror, polícia secreta, e outras tantas forças apenas para desabarem sobre as populações, se elas ousarem manifestar o seu descontentamento. Vida de ditadura é repressão permanente de canhão.
As desgraçadas estão no olho da rua porque lhes espoliaram as lavras, as terras, destruíram-lhes as casas, a que jocosamente os novos-ricos lhes chamam de casebres. Antes, onde faziam o seu negócio da venda, apareceram uns espertalhões das desordens superiores que lhes chamaram de burras, porque não sabiam que tudo é pertença do Estado. E com o cuidado de prevenirem que afinal também são donos das pessoas. Tanta conversa suja para logo em seguida anunciarem nos meios de difusão massiva integralmente partidarizados que a miséria das populações vai acabar, porque mais um shoping center se vai edificar pago com dinheiros ilícitos. Aliás, tudo se compõe de ilicitude. Mas não é por demais evidente que casa de espoliado é casebre? Os maridos, e demais idiotas que acreditaram na tal luta de libertação deles, esperam pela mesada em vão. Só a tudo têm direito quem é eleito do partido sem coração da família sem restrição.
Os reconhecimentos policiais são constantes, esvoaçantes, verdejantes como as moscas de bojos possantes. Os cumpridores da lei ficam contentíssimos quando lhes ordenam executá-la nas zungueiras e similares, que é o que existe demais. E atiram-se desumanamente sobre as infelizes que nasceram por muito azar num Golfo da Guiné onde o petróleo transpira por todos os poros novos-ricos. Aqui já não existe terra, nação, pátria, população, mas apenas o martírio diário dos barris de petróleo. Mas os polícias não vão policiar as empresas e os empresários da corrupção, não. Apenas policiam a estrema pobreza da expiação. E carregam à Khadaffi sobre as miseráveis que totalmente indefesas, injustiçadas, até queimadas como feiticeiras. E os barris de petróleo sucedem-se, enquanto nos palácios da ditadura se festeja mais um acontecimento importante: o preço do petróleo sobe, sobe… dá e sobra para pagar a mercenários.
Frequentemente como se acompanhadas ou protegidas de nuvens de pó, novo sistema de alta tecnologia de segurança importado (?) desfilam desabridas escoltas de dirigentes fingindo que resolvem os problemas do povo, quando na verdade, resolvem os seus interesses pessoais e os das suas famílias. Porque ainda existe a teimosia que governar é colocar toda a família no poder, para que se mantenham os negócios, os palácios, e a miséria das populações seja sempre abrangente. O povo é um jardim zoológico, com a diferença de que no zoo é habitual darem comida aos animais, neste zoo humano não. Cada um que assalte o seu pão de cada dia.
A actividade da especulação imobiliária progride como coelhos que se multiplicam extraordinariamente: o único trabalho é alimentá-los e nascem, reproduzem-me epidémicos como os mosquitos do paludismo. De tal modo que dentro de pouco tempo não existirá nenhum local livre, porque tudo se destruiu com novos... estruturantes.
E dos muitos carros luxuosos pagos astronomicamente com as contas da contabilidade que não existe, Angola não tem contabilidade organizada. Os Técnicos de Contas trabalham na ilegalidade, ao sabor da invenção de documentos das entidades patronais, e se não se acomodarem correm o risco do despedimento coercivo, e se ousarem abrir as bocas pende-lhes o assassinato. Pudera, a perda da vida humana está tão vulgarizada. Perante isto, não é possível falar de empresas e empresários. «Perguntem ao vento que passa».
Descem dos seus afamados coches triunfais, carregados de luxo petrolífero, novas-ricas na anedótica tentativa de imitação de figuras famosas da música e do cinema, com orgíacas e reluzentes pulseiras de diamantes pagas a cento e cinquenta mil dólares. Enquanto na Rua do Sol Nascente morre-se facilmente, porque não se tem dinheiro para comprar coartem para curar a malária.
O nosso futuro é inevitavelmente revolucionário.
Assim não, porque a revolução é inevitável. Pode-se colmatar por agora, mas ela acontecerá, infelizmente parece com extrema violência porque ninguém está interessado em travá-la. Os milhões, biliões de dólares do petróleo são muito mais importantes que qualquer ser humano, cidadão angolano perdido na Rua do Sol Nascente.
As manas Lwena e Maria abancaram-se à toa. A Lwena vende cigarros, mau uísque, desse para consumo dos seguranças, bolachas, mais algumas coisas e gasosas. A Maria é kinguila, vende e compra moeda estrangeira, só dólares e euros. E claro, já estão aprontadas para lerem o jornal do dia. Maria activa-se, remexe-se, e inicia o seu folhetim jornalístico:
- Olha, agora andam na guerra das bandeiras.
- Como assim?!
- Vou-te já contar: a vida decorre normalmente. Nas ruas jovens vendedores e zungueiras fogem depois das espoliações e surras da polícia. Os geradores, ninguém confia na ditadura da electricidade, lançam fumo tóxico mortal, o único país do mundo onde isto é normal, e a barulheira intencional para encher o saco do vizinho. Tudo o que é ilegal valoriza-se. Parece que ninguém tem noção do que é lei. Os novos-ricos então, ainda sob a protecção da ditadura, mas já com o peso da síndroma Tunísia, não querem saber se os vizinhos estão a morrer ou não, com as suas tropelias de quase quarenta anos legalizadas. E teimosamente dizem que é uma antiga ditadura democrática, logo, quem não é da ditadura, é contra ela. Nada mais fácil do que isso. A bandidagem já incontrolável, pois são mais que as mães, e apesar de Angola estar infestada de petróleo por todo o lado, e isto justifica a deportação dos sem futuro para os rincões, pois o petróleo é incompatível com o povo. Este, ao pé do perfume petrolífero, apresenta um valor exíguo. E onde há petróleo, há dinheiro, e o resto não interessa.
Os corruptos continuam com a justificação, de que não senhor, o dinheiro que ganham, é com muito suor esforço e lágrimas. Claro que isto não convence ninguém, e eles parecem fingir que pela banda está tudo numa boa. Os políticos sempre com as mesmas políticas de quarentena já quarentona, quando abrem as bocas, é de fugir, tipo, salve-se quem puder. Nada mais insuportável, do que ouvir sempre os mesmos com o mesmo dicionário.
Entretanto, a banda atingiu tal desenvolvimento tecnológico, que até para cortar uma chapa de zinco, ou serrar um vulgar tubo de ferro, é necessário um chinês ou um português. E o tuga recorda-nos muito cioso os regulamentos dos tempos coloniais. E afirma sem pejo: «Na minha empresa, negro não pensa, executa.» Provando com isto que a banda ainda não é independente, e que o sem futuro ainda não se libertou da escravatura.
Os problemas do povo subsistem na intolerância política, como se a banda fosse uma prisão cercada de grades de Kabinda ao Kunene. Aí, não sei em que bairro, apesar da proclamação da independência e de uma nova Constituição, a intolerância política revive os bons velhos tempos da intransigência revolucionária. É necessário alimentar o facho e o forno da revolução, e quem nela não se enquadrar, a pena de morte é de se esperar.
Um professor vulgar militante de um partido político da oposição sobrevivente, tem o direito de hastear a bandeira do seu partido no bairro do seu coração, não é?! E assim o fez, mas há sempre alguém que espia, que diz sempre sim. A polícia política é como a Igreja, só acredita num Deus. E claro, prenderam o professor militante. E ele pergunta aos novos mentores do campo de concentração da banda, aqui dignamente representados por um chefe da polícia: «Mas afinal, estou preso, porquê?». «Prontos! Já te estás a fazer de parvo. Então não sabes porque é que foste preso?». «Absolutamente que não!». «Estás preso… porque és de um partido da oposição ilegal!». «Ah! Essa está muito boa, então como é, a banda é só para vocês?» «Evidentemente, aqui não há lugar para mais ninguém. Vais ser julgado e condenado sumariamente.» «Então serei julgado por ser militante de outro partido político?!». «Correcto e afirmativo!».
E veio em socorro do professor o secretário-geral do partido da oposição ilegal. Entra em cena e afirma peremptório: «Farei uma greve de fome em defesa desse homem. Esse professor é-me mais valioso que todos os vossos poços de petróleo». «Ai é?! Que bom, faz lá a tua greve de fome. Junta-te aos nossos exércitos de esfomeados... e esperamos que morras, será menos um que chateia. Até porque temos instruções para acabar com todos vocês, pois parece que não, mas ainda são muito perigosos, e estão implantados em todos os recantos... como uma epidemia cancerosa. Ah! Já sei o que queres… almejas ser lembrado como o mártir da liberdade, não é?! A tua morte será certa, como a nossa vitória». «Ao que chegámos, até os vossos sobas prendem gente?!». «Claro, ó Mártir! Temos orientações superiores para prendermos quem quisermos. A banda é nossa, porra!!!». «Absolutamente, e quando a síndroma Tunísia lhes bater às portas, vão fazer mais como então?!». «Essas coisas aqui nunca chegam. Temos órgãos devidamente estabilizados, quero dizer, estalinizados, policiais e de defesa suficientes, postados por todos os lados como parasitas, não sei se estás a ver. Os olhos e ouvidos da nossa revolução que é imparável. O nosso poder é eterno e abençoado pelas potências internacionais e pela nossa Santa Igreja. O petróleo dita as regras do jogo».
O Mártir preferiu o silêncio. Meditou, que o fim de qualquer ditadura é sempre igual. Como se os problemas de um país se resolvessem na continua prisão e repressão. Quanto mais o poder diariamente e arbitrariamente infligir ferocidade sobre o seu melhor bem que é a população, o dia fatal chegará. E tudo e todos se erguerão, e a ditadura varrerão. E o Mártir confesso da democracia, preparou-se física e mentalmente para enfrentar os caminhos da greve de fome. Os caminhos da vitória gloriosa, da libertação, contra a opressão. Assim falou o Mártir da democracia.
upanixade@gmail.com
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