quarta-feira, 13 de abril de 2011

Os filhos do Papá dya Kota (12). António Setas



NOTAS

Nota 1: o relato do kota Kiala
Segundo a tradição, o reino do Kongo teria sido fundado por um intrépido guerreiro chamado Nimi a Lukeni, filho de Nimi a Nzima e de Lukeni dya Nzanzi, filha de Nessa ku Kilan. O pai era um simples chefe de aldeia no distrito de Kurimba, no antigo “reino” do Kwango, cujo nome se deve a um grande rio, afluente do Zaire, que o atravessava de norte a sul, não muito longe do território dos povos que mais tarde viriam a ser os Lunda.
Ora acontece que o pai de Nimi a Lukeni se tinha estabelecido nas margens desse grande rio(nzari) - conhecido por Kwango a partir da altura em que nele morreu afogada Kwango, uma filha de Kinguri, um dos primeiros grandes chefes Lunda -, e o mais-velho cobrava portagem a todos os viandantes que o atravessavam. Quando Nimi a Lukeni chegou à idade de se emancipar dos pais, já na alta adolescência, era-lhe por vezes confiada, na ausência do pai, a responsabilidade do recebimento da portagem, e um dia, estava ele no exercício dessa função, apareceu-lhe a tia, reclamando a isenção do tributo a pagar sob pretexto de ser irmã do velho Nimi a Nzima, o pai de Nimi a Lukeni. Mas este não concordou, e não se limitou a rejeitar a reclamação da tia. Vendo que ela estava grávida, o que significava estar em gestação no seu ventre um futuro rival, ordenou que lhe abrissem o ventre e matou-a desse modo brutal. Depois do inesperado feito, os membros da família real, dada a ausência nessa altura do rei, puseram-se do seu lado e sustentaram-no contra a justa cólera do pai. Este repudiou-o e Nimi a Lukeni avançou para oeste em conquista de novas terras, assumindo o título de “ntinu” (rei).
Nessa altura, as terras que ele se propunha invadir (a oeste, a actual Angola, e ao norte, o Zaire, futuro reino do Kongo) eram habitadas por numerosos clans e tribos, chefiados por régulos independentes, o que explica a facilidade, a rapidez e a extensão das suas conquistas, que se medem desde os reinos do Ngoyo, Kakongo e Loango, a norte do rio Zaire (com a ajuda de dois filhos e do chefe Nganga Ngoyo), passando pelos territórios do Soyo de Cima e de Baixo, Mpemba, Mbata, Nsundi e Mpangu a sul do Zaire, e estendendo-se ainda mais para sul até ao rio Kwanza.
Ainda segundo a tradição, Nimi a Lukeni ter-se-ia primeiro instalado na margem direita do rio Zaire e só teria fundado Mbanza Kongo mais tarde, depois de ter submetido à sua autoridade todos os que se lhe opunham, nomeadamente Mbumbulu Mwana Mpangala, de Mpemba, e só então fundou nesse ex-reino a capital definitiva, Mbazi a Nkunu, hoje conhecida por Mbanza Kongo.
A partir destas conquistas, Nimi a Lukeni entendeu consolidar a sua autoridade, concedendo aos seus familiares mais próximos títulos políticos importantes que levaram a que o tio fosse nomeado “mani” (ne) Mbata, enquanto que de um dos seus filhos, o terceiro, nascido de uma escrava branca, judia, que lhe fora cedida por mercadores vindos do norte de África, supõe-se ter sido o antepassado de referência dos futuros condes do Soyo, um dos quais, muito mais tarde, foi o primeiro alto dignatário do reino do Kongo a ser contactado pelos portugueses que chegaram à embocadura do rio Zaire em 1482-83.
Por outro lado, saliente-se que, primitivamente, o rei de Kakongo, antes de subir ao trono era obrigado a casar-se com uma princesa de sangue real do Kongo, ao passo que o rei do Loango devia casar-se com uma princesa do Kakongo. O que significa dizer que o sucessor ao trono desses reinos seria sempre de origem Kongo pela regra de descendência matrilinear em uso.

Já nesse tempo os homens brancos vinham negociar nas terras do Kongo, e foi assim que Nimi teve como esposa a escrava judia referida aqui atrás, que lhe foi cedida em troca de escravos negros por comerciantes vindos do Norte de África,. E de um dos filhos que ele teve com essa mulher, o supracitado antepassado dos condes do Soyo, descendia um homem notável, o príncipe Nezinga, sobrinho de um dos antigos reis do Kongo (talvez Nanga kya Ntinu). Esse príncipe, por razões mal esclarecidas, matou a mulher do tio, o rei, e fugiu para as terras vizinhas do Soyo de Cima - nesse tempo o Soyo estava dividido em duas partes, o de Cima ao Sul, e o de Baixo a Norte -, onde reinava o Soyo dya Nsi, um régulo modesto e com pouco poder. O príncipe Nezinga eliminou o dya Nsi, tomou o poder e passou a pagar tributo ao tio, como era de tradição quando um parente do rei do Kongo ocupava um novo território. Pela mesma ocasião o tio perdoou-lhe a morte da esposa, e o Soyo passou a fazer parte do reino do Kongo.
Entretanto, os Mouros do Norte continuavam a ir até ao reino para comprar escravos, e dentre eles apareceram no Soyo os Fatimidas, que diziam que um dos seus mais ilustres antepassados, o XIIº Imam, dito o Oculto, por ter desaparecido milagrosamente de uma cave onde se tinha escondido, de certeza que não estava morto e mais dia menos dia deveria descer dos céus e surgir no cimo de uma árvore. Muito perturbados com essa narrativa, os solongo começaram a adorar as árvores e a acreditar que nos seus altos poderiam aparecer os nkisi nsi, os espíritos da terra que viviam nas nascentes dos rios, e eles adoravam. Por outro lado esses homens brancos, mouros, que chegavam ao reino do Kongo pelo mar a bordo de barcos à vela, sempre tinham sido associados às areias das praias e às conchas, para os solongo sinais das sua grandes riquezas. Por essa razão, e também por ser descendente de uma mulher de raça branca, como acima foi dito, Nezinga levou um dia de presente ao seu tio algumas conchas, areia e água do mar, como símbolos da cativante cultura dos homens brancos do Norte. Em troca recebeu mandioca, uma cabra, farinha de massambala e outros bens. Foi a partir dessa altura que as conchas caori, e mais tarde os nzimbu da ilha da Luanda, passaram a ser usadas como moeda de troca no reino do Kongo».

A dada altura, provavelmente por princípios ou meados do século XV, o rei do Kongo teve conhecimento de ameaças que pesavam sobre a ilha de Luanda, onde ele já se tinha instalado a fim de colher os preciosos nzimbu que serviam de moeda no seu reino. Essas ameaças vinham do Ndongo, onde reinava então o terrível Ngola a Kilwanji kya Samba, rei Mundongo e parente seu, portanto seu súbdito. Pelo sim pelo não, para evitar makas futuras, ele decidiu enviar-lhe um emissário, cuja missão, apesar de ser pacífica, se apresentava muitíssimo arriscada, visto que esse emissário seria obrigado a passar pelo Soyo de Cima, cujo rei, nessa altura, era Nezumba dya Mvika, um trineto do grande Nezinga, de facto neto da sua filha mais nova, Ntilu, e de quem se dizia que matava quase toda a gente que passasse pelo seu reino. O problema era bicudo, mas talvez houvesse maneira de contorná-lo, confiando essa missão a um certo Senhor, que se passeava sempre com uma varinha mágica na mão e tinha chegado havia já algum tempo ao reino do Kongo, acompanhado pelo seu séquito. Chamava-se Kanzi ya Pakala, e a varinha de que nunca se separava era a ndanji, raiz da nsanda, a figueira sagrada africana, de que se servia com grande eficácia para descobrir lençóis de água subterrâneos. Imagine-se a felicidade do povo em plena estação seca! Há falta de água?, não tem maka, chegava o ne Kanzi, aproximava lentamente a ponta da varinha do solo e se ela começasse a estremecer é que havia água naquele sítio, bastava fazer um poço! Depois de repetir várias vezes essa proeza, crescendo a cada uma delas o seu prestígio, tornou-se homem de grande influência em Mbanza Kongo. E, quando o rei lhe propôs essa delicada missão, nem lhe passou pela cabeça recusar. Que diria o povo se ele recusasse tão grande crédito de Sua Majestade? E lá foi, acompanhado por uma numerosa comitiva bem armada.
Quando chegou ao Soyo de Cima encontrou-se com o rei Nezumba, que lhe perguntou se ele trazia a raiz, e ele disse que sim, já vaidoso por tão longe ter chegado a sua reputação. Mas a raiz que Nezumba queria não era a de nsanda, sagrada no Kongo, no Soyo não, a que ele exigia era a de tamborineiro, a Nsaka dya ntadi, a mais sagrada de todas as árvores, plantadas por sua ordem em todo o território solongo, que olhasse em volta, podia ver. Agora sim, a maka era grande!, porque a dita árvore era tão sagrada, que todos os que atravessassem o Soyo sem uma dessas raízes em sua posse seriam decapitados! Kanzi não se descompôs, avançou e mostrou a sua raiz. Os guardas e o próprio rei desataram a rir, não, não era aquela era a outra, e a cabeça de Nezumba também já quase não era cabeça, não ia ficar no sítio. Mas estava-se em plena estação seca, em nenhum sítio havia água, e Kanzi insistiu, pediu que lhe dessem uma derradeira chance, ele podia provar que a sua raiz fazia milagres. O rei perguntou-lhe quais milagres, e ele disse que se lhe poupassem a vida, o reino do Soyo teria muita água. Como muita gente tinha morrido nesse ano por causa das secas, Nezumba aceitou a proposta. Foram momentos de grande ventura para Kanzi, que não só descobriu grande quantidade de lençóis de água subterrâneos graças à magia da sua cana, como, segundo a crença popular, teria provocado um grande aguaceiro que alagou a terra ressequida pelo sol e deu vida nova a todas as culturas até aí em perigo de secarem. Mas, se é verdade que Nezumba ficou feliz por desta feita o seu povo ter fugido à ameaça da fome, muito mais amargurado se sentiu por dentro ao ser obrigado a reconhecer que a raiz da nsanda era mais poderosa do que a que ele tanto adorava. Mesmo assim cumpriu a sua palavra e deixou Kanzi partir com o seu séquito.
Kanzi meteu a Sul, continuando tranquilamente a sua marcha na companhia de uma comitiva cada vez mais numerosa, com muitos solongo atraídos pela sua reputação de milagreiro a juntarem-se à caravana. Atravessou os rios M’Bridge e Loge, atravessou um território a que chamavam Mussul, ocupado por numerosos lumbu, alguns dos quais passaram a acompanhá-lo. Passou o rio Dande e entrou nas terras do Ngola a Kilwanji kya Samba. Mas não chegou a ver nem sombra de mundongo, os homens do Ngola, porque esses já tinham fugido há muito tempo para o Sul e para Leste, por obra de um chamado mwene Kurimba, que se tinha instalado na zona costeira entre os rios Dande e Kwanza. E uma vez mais o acaso ajudou o aventureiro, porque o mwene Kurimba que o recebeu, descendente do primeiro conquistador Mukongo dessas terras, não se opôs a que ele se instalasse com os seus na ilha de Luanda, da ponta do Mbinhi até às Palmeirinhas. Se os Mundongo que andavam pela área o deixassem em paz. Kanzi aceitou o rédito e instalou-se na ilha. É dele que descendem todos os que passaram a dar pelo nome de mwene Mussulo.
Imagem: Reino do Kongo. pt.wikipedia.org

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