Foi um José Eduardo dos Santos profundamente magoado o que ouvimos discursar na última sexta-feira na abertura de mais uma reunião do Comité Central do MPLA. De tanta mágoa, o Presidente preferiu pôr de lado a razão e deixou seu coração falar pelo que dispensou os seus "writers" de ofício preferindo escrever de punho próprio o seu discurso.
Maurílio Luiele*
Assim, não deu outra, os medos, paixões, a raiva, enfim, as emoções acabaram sendo a nota dominante do discurso. O que se espera de um Chefe de Estado é que faça sempre prevalecer a razão em seus actos em detrimento das paixões porque, diz Karl Popper:"o racionalismo (entenda-se uso privilegiado da razão) está ligado ao reconhecimento de que é necessário criar instituições sociais que protejam a liberdade de crítica, a liberdade de pensamento e, portanto a liberdade dos homens. Ele cria uma espécie de obrigação moral de apoiar estas instituições. Por isso o racionalismo tem estreita ligação com a demanda política de se realizar uma engenharia social prática - paulatina, é claro - no sentido humanitário, a demanda de uma racionalização da sociedade, de um planejamento para a liberdade, para que ela seja controlada pela razão; não pela "ciência", não por uma autoridade platônica pseudorracional, mas por aquela razão socrática que conhece suas limitações e por isso respeita o semelhante, não aspira a coagi-lo - nem mesmo para fazê-lo feliz.
A adopção do racionalismo, além disso, implica que haja um meio comum de comunicação, uma linguagem comum da razão; estabelece uma espécie de obrigação moral para com a linguagem, a obrigação de manter seus padrões de clareza e de usá-la de tal modo que ela possa preservar a função de veículo da argumentação. Em outras palavras, a obrigação de usá-la de modo claro, de usá-la como um instrumento de comunicação racional, de informações significativas e não como um meio de "expressão pessoal" (In: David Miller(org): Popper, temas escolhidos; pág. 42)
Edgar Morin, por seu turno, diz que "a razão corresponde a uma vontade de ter uma visão coerente dos fenómenos, das coisas e do universo. A razão tem um aspecto incontestavelmente lógico" (MORIN, 1990) mas distingue racionalidade e racionalização. Segundo Morin, "a racionalidade é o jogo, é o diálogo incessante entre o nosso espírito que cria estruturas lógicas que as aplica sobre o mundo e que dialoga com o mundo real. Quando este mundo não está de acordo com o nosso sistema lógico é preciso admitir que o nosso sistema lógico é insuficiente, que apenas encontra uma parte do real".
A racionalidade, não tem nunca a pretensão de esgotar num sistema lógico a totalidade do real, mas tem a vontade de dialogar com o que lhe resiste. (MORIN, 1990). Ao enfatizar o diálogo como traço da racionalidade, Morin ressalta tal como Popper a relação estreita que a racionalidade mantém com a comunicação. Morin, diz, no entanto, que a RACIONALIZAÇÃO é a "patologia da razão" e" consiste em querer encerrar a realidade num sistema coerente. E tudo o que, na realidade, contradiz este sistema coerente é desviado, esquecido, posto de lado, visto como ilusão ou aparência". Assim pela racionalização tendemos a minimizar ou rejeitar os argumentos contrários e ter uma atenção selectiva sobre o que favorece a nossa ideia e uma desatenção selectiva sobre o que a desfavorece.
Como se pode ver, a racionalização é um mal bastante presente em política e é ditada em grande medida pelas paixões políticas que nutrimos, mas é de todo conveniente que ela não se manifeste em actos de um magistrado do nível de um Chefe de Estado pois escancara caminhos à injustiça social.
O recente discurso de José Eduardo dos Santos é pois uma aula magistral sobre racionalização, no pior sentido, diga-se. Ela está presente quando atribui à pobreza à herança colonial ignorando que a opção socialista radical pelo MPLA reprimiu a propriedade privada e perseguiu proprietários então apelidados de pequeno-burgueses. Que a opção socialista, permitiu entretanto, o enriquecimento de uma elite de burocratas ao serviço do partido-estado. Como ignorar então a responsabilidade do MPLA no quadro de pobreza que se instalou e aprofundou no pós-independência? É evidente que a guerra não conta a estória toda.
A racionalização esteve presente no discurso de JES quando deliberadamente negou que tenha 20 bilhões de dólares mas não explicou como seus filhos se tornaram tão rápidamente os mais ricos de Angola. É evidente que Isabel, Zénu e Tchizé têm juntos uma riqueza que se aproxima disso e não é imaginação nossa; não somos nós que inventamos os seus grandes impérios econômicos que incluem bancos, rentáveis empresas de telecomunicações e outros infindáveis negócios. Isto é real, não é imaginação. Ou a UNITEL, o BIC, o Quantum, não existem?
Mas o Presidente foi mais longe ao pedir que fossemos ao Sector de Inteligência Financeira do BNA para saber se havia contas no estrangeiro em seu nome. Só pode ser brincadeira imaginar que um cidadão comum em Luanda sairia de sua casa, enfrentando o caótico trânsito luandense para chegar ao BNA e inquirir ao tal sector do BNA se tais contas existem. A resposta estamos todos a ver qual é: porrada se refilares, como o próprio JES sugeriru nas entrelinhas.
Enfim, já é hora dos dirigentes do MPLA deixarem de tratar os angolanos como crianças que não são capazes de pensar por si só e que por isso agem sempre impelidos por interesses estrangeiros. Quem não conhece o povo não deve ousar dirigi-lo. As reclamações que motivaram as últimas manifestações e que correm soltas na Internet têm pleno fundamento, por isso, responder a elas é resolvê-las de facto e não fazer recurso à política de avestruz (esconder a cabeça na areia).Ou "O MAIS IMPORTANTE (já não é) RESOLVER OS PROBLEMAS DO POVO" como nos ensinou Agostinho Neto?
Finalmente já é hora das autoridades angolanas entenderem que as redes sociais são uma nova e irreversível forma de fazer política. São parte do "espírito do tempo" e não adianta quixotescamente avançar contra elas, não resulta.
O recente discurso do Presidente Eduardo dos Santos deixa assim uma manifesta preocupação: nosso Chefe de Estado está deixando de lado a razão como matriz dos actos de Estado conspurcando-os com racionalizações, emoções e paixões. Isto pode conduzi-lo inexoravelmente a um ciclo vicioso que resulte em paranoia pois como diz Morin " a paranoia é uma forma clássica de racionalização delirante" e diz mais "entre a paranoia e a racionalização nã há fronteira nítida" Se esta tendência se concretizar (esperamos que não!) JES tenderá a agir cada vez mais como todos os ditadores conhecidos. Imerso nas paixões e emoções, com a razão cada vez mais distante, tenderá a atitudes cada vez mais irracionais com consequências imprevisíveis para os destinos do país. O último exemplo deste tipo de evolução patológica conhecemos bem: Laurent Gbagbo, que aliás Eduardo dos Santos apoiou. O fim conhecemos todos.
Espero pois, que para o bem de Angola a razão prevaleça em José Eduardo dos Santos e não tenhamos que experimentar o dissabor de ser conduzidos pelos seus medos, paixões e emoções.
*In Club-k.net
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