quarta-feira, 6 de abril de 2011

Os filhos do Papá dya Kota (11). António Setas


Eu também tinha mudado. O barco com motor de popa só me trouxe dissabores ao princípio - mais tarde também, com as avarias -, acabei por me habituar. Mas, tanto quanto podia, metia a mvela e navegava nas calmas. Por essa altura, porém, o bichinho dos estudos roía-me cá por dentro, o que me levou a rejeitar a proposta de ser sócio da rede da Câmara. Discuti com o meu pai - «’Tás a ver...se me tivesses ouvido...» -, e acabei por encontrar um esquema que me permitiria estudar: Por sugestão minha, a Lia, que à parte as prendas pouco recebia da parte do pai, começou a trabalhar com a minha mãe, e às tantas já trazia dinheiro para casa; eu, passei a pescar aos sábados, domingos e, no máximo, mais uma ou duas vezes por semana; nos restantes dias alugava o barco ao Zé, o filho do vizinho António, marido daquela senhora que morrera com a tia Chiquinha, e ficava-me assim tempo suficiente para os estudos que tanto desejava fazer.
Muito me ajudou o kota Kiala. Emprestava-me livros, levava-me a bibliotecas, ensinou-me a boa maneira de consultar obras de difícil leitura, deu-me verdadeiras lições de mestre em sua casa. Tudo o que aprendi sobre a história da ilha e de Angola devo-o a ele. Lembro-me, porém, que nessa altura, nas maranhas da agitada vida que levava, havia uma questão que nunca me largava e resumia dentro dela todo o meu embaraço: à parte o motor de popa, não haverá mais razões que me impeçam de participar num kakulu?

Passei horas sem conta a pensar nessa questão, para ser mais claro, a pensar na impossível harmonia entre os avanços do progresso e os rituais que contemplam as nossas crenças ancestrais. Mas, com a ajuda do kota Kiala, sempre ele, também ultrapassei essa crise. Fiquei a saber que alguns dos mitos africanos que abordam questões essenciais da existência humana na Terra, tais como movimentos celestes, fenómenos da natureza e todas as relações do homem com ela, têm em princípio, não direi o seu homólogo, mas relações muito mais que aleatórias e ocasionais com um ou outro mito de qualquer um dos continentes da Terra - no que diz respeito ao seu conteúdo semântico, à significação profunda das palavras e ao que se esconde por trás delas -, por exemplo, existe uma lenda dos Índios da América do Sul próxima no seu conteúdo de um mito dos Lapões do Norte da Finlândia! - tão-somente porque o homem, seja de que raça for, descende de uma raiz única, e a origem dos mitos também é única. E se é costume dizer que os mitos só morrem se desaparecer o povo, talvez se possa acrescentar que os seus temas basilares são universais.
Senão vejamos, as crenças primitivas nas forças ocultas, de todos os povos da Terra, nasceram da observação dos fenómenos incompreensíveis da natureza, gravaram-se na mente do homem e foi a partir dessa simbiose que a imaginação elaborou os mitos que estão na origem da noção do sagrado. E a expansão do sentimento religioso do homem, que se propagou pelo mundo inteiro nos diferentes rituais que o consagram, em tão grande número que não é possível contá-los, vem da sua vontade (faculdade) de aceder ao que o transcende, aquilo a que os religiosos chamam Fé, e os não religiosos crêem que se trata apenas de capacidade de imaginar. Todos os povos do mundo têm as suas crenças próprias, e atrás dessas crenças, raízes que são só deles. Mas atrás desse sem-fim de raízes diferenciadas, há uma que é comum a todos os humanos na sua pequenez: a Natureza, com os seus mistérios, milagres, cataclismos, beleza... Mas também com as suas dádivas, a inteligência e tudo o que realmente dá o seu senso ao sagrado, a começar pela esperança.
Mas voltemos ao kakulu e ao mito das yanda, e tomemo-lo como exemplo de ritual e crença específicos para tirar uma ilação que me parece defensável. Para o muxiluanda como eu, o facto de não participar activamente no kakulu, e mesmo a descrença em si no mito das yanda, pouco abalam a estrutura da raiz que lhes é comum. Esta, elemento fundamental da identidade muxiluanda, é indestrutível enquanto houver muxiluanda à superfície da Terra, porque faz parte da sua natureza, faz parte do povo, “que pouco ou nada se preocupa com a sua identidade cultural, vive-a”(Amílcar Cabral). Com crença ou sem crença, com participação activa na cerimónia ou sem ela. Está-lhe na massa do sangue. Assim como a singularidade histórica e religiosa do povo judeu determina que o judeu será sempre judeu, acredite ou não acredite em Jeová, vá ou não vá à sinagoga.

Passaram os anos, segundo uns muito depressa, segundo outros devagar, e para saber como, aí estão os tira-teimas, relógios e calendários.
Tivemos direito a eleições democráticas, a uma péssima guerra e a uma comovente reconciliação. Hoje - talvez as yanda tivessem ouvido alguma prece que as comoveu -, augura-se uma paz duradoura para Angola. Viro-me para a Lia e vejo os meus filhos, o David, que já entrou para o liceu, o Nucho, na quarta classe, e a cassule, a Márcia, ainda Maria-nabiça-que-tudo-cobiça, nos seus três anos e meio, a mexer em tudo o que lhe passe ao alcance das mãos. Olho para eles e vejo a minha Lia. E não paro de malucar. É verdade que o progresso é uma boa coisa, trouxe-nos o automóvel, a electricidade, essas máquinas todas, a televisão, os computadores, a varinha mágica, em suma, um certo prazer e conforto. Mas também trouxe um afastamento do que realmente somos. É que, com todas essas invenções, fomos levados a olvidar que não passamos de simples animais, racionais, mas animais. E o resultado está aí: uma corrida frenética para a frente, de mãos abertas para o cesto de ovos do progresso, sem olhar a estragos. Chegaram os automóveis, deixámos de dar passeios a pé e mais depressa definhámos; chegou a televisão, deu-nos para passar horas a olhar para ela e esquecemo-nos do jantar, dos filhos, dos parentes e dos amigos, esquecemo-nos de conversar e de conviver; chegou o computador...agora já posso fazer coisas formidáveis é verdade, mas há quem passe não são horas, é o dia inteiro diante do écran. E com a Internet até posso namorar com a Yong Tchi, que é chinesa, mora no Japão e eu nunca vi !... Isso é vida ?!!
Quanto mais vou para velho mais perto me sinto das minhas raízes, ao recordar as lições que me deram os filhos do Papá dya Kota, o tio Mbala, o kota Kiala e os meus pais. E vivo com elas no calor que me vai nos dentros e de que muito me orgulho, sem me preocupar com etiquetas, preconceitos e ritos, mas sentindo-as em mim, não sem um indefinido temor, ao pensar que corro o risco de seguir o caminho das tartarugas gigantes, dos elefantes e das baleias, assim como o de milhares de espécies animais e vegetais ameaçadas, isto sem falar das que já desapareceram da superfície da Terra, no final de contas por obra do progresso. Contudo, sou um homem, e creio que sei pensar e transmitir o que penso. Continuo a ir para o mar e a pescar. Viro-me para o Nucho e vejo-lhe nos olhos o brilho dos meus olhos, que vêem nos dele o brilho que eles tinham outrora, quando eu ia pescar com o tio Mbala. O Nucho será pescador, “akwa zanga” como o pai, mau grado o nosso Bairro dos Imbondeiros ter sido invadido por gente de “fora” e ser hoje um musseque. E os meus filhos, estes e os que vierem, serão nutridos pela mesma seiva da raiz antiga. Religiosa ou profana pouco importa, o que conta é eles ficarem a saber quem são e de onde vieram. Progresso, computadores e tudo o mais, sim senhor, mas primeiro a cabeça a funcionar para salvar o que ainda há para salvar. A começar pela nossa identidade.

Entretanto, a vó Júlia foi ter com os reis do Kongo, no Céu; o tio Mbala e a tia Londa vão vivendo na Xicala e não tem mês que passe sem uma visita nossa; o tio Augusto continua a beber demais e no auge das suas carraspanas pretende que se deve a ele a invenção do Xeltox; o meu pai e a minha mãe estão ali na sala a ver a novela... E eu, pego no papel que me deu o kota Kiala quando estava para morrer, com a sua mão apertada à minha e à da Lena, a dizer baixinho, «É para ti... uma carta... um escravo que chegou a ser padre, vê lá tu... morreu aqui em Luanda. Não foi bem assim que ele escreveu...eu é que lhe dei o jeito... » - dá-me sempre para chorar quando me lembro dele -, e leio:

«Não há nada de realce nesta ilha a não ser as árvores da floresta, e tantas são que nos escondem o sol. Não se pode dizer que este seja o lugar mais bonito que eu vi na vida, mas neste sítio não é a beleza da paisagem que atrai o olhar, é a magia que paira ao sabor do vento, o encanto do conjunto, terra, sol e mar. Quando chega a hora do pôr-do-sol o céu cobre-se de cores, todos os dias diferentes, e creio que ao longo dos séculos não houve dois crepúsculos idênticos! Que Deus me perdoe, parece feitiço. Todos os tons de todas as cores que a natureza tem se misturam, e o céu não se cansa de tecer vestidos de gala, decorados por véus grandiosos, de veludo e de cetim, de seda e de cambraia.
Chamo-me João Preto, é o nome que os portugueses me deram. Mas eu sou dos Ginka Asola, de nome materno. Nunca esquecerei.
João Preto.

Luanda, no mês de Novembro de 1789.»

Imagem: rogegill.blogspot.com

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