sexta-feira, 25 de março de 2011

Os filhos do Papá dya Kota (9). António Setas


Mal tivesse a ocasião a Lia aparecia no Bairro, ficava durante três ou quatro dias em nossa casa e repartia para Porto Amboím, vaivém que se repetiu quatro vezes durante mês e meio. Esta azáfama devia-se à falta de peixe decorrente de uma violenta kalemba de Agosto, nada a ver com a que levara o Belela, contudo causadora de sérios danos materiais, sobretudo a pescadores do Mussulo e da Xicala. Queixavam-se os luandenses, que viam os preços do pescado disparar à toa, queixavam-se as senhoras das salgas, as fábricas e os próprios pescadores, que além dos danos sofridos não viam peixe nem dinheiro a entrar. E foi por essa altura que correu pelo Bairro o mujimbo de que se ia organizar um kakulu, método infalível para acalmar, pedir clemência e ajuda às yanda, porque o mais certo era elas terem sido vítimas de desrespeito intolerável, vá-se lá saber por via de quem.
Entre as pessoas que mais se animaram com a nova estava a Lia. Ela queria ver para acreditar no que lhe diziam algumas pessoas do Bairro, que as yanda são como nós, humanos, vivem entre nós - há quem tenha visto as cidades onde elas habitam -, mas que normalmente só se consegue ver um ou outro sinal da sua existência, luzes, lençóis e fitas de luz com muitas cores debaixo de água. Sabia que elas são ituta, seres espirituais terrestres (ver nota 2), que interferem na vida das pessoas tanto para o bem como para castigar, isso depende das pessoas, do comportamento das pessoas, de muita coisa. Vivem na água e podem encarnar, por exemplo, os gémeos, as pessoas que nascem depois de mais de nove meses de gravidez, ou os que ao nascer já vêm com dentes, são ituta verdadeiros, e mais vale acarinhá-los e fazer-lhes todas as vontades, senão pode haver azar. E não era preciso explicar-lhe que os territórios das yanda são como os das províncias de qualquer país, encostados uns aos outros, com a diferença de que vão do mar ou das águas interiores para a terra firme, e que aí, em terra, elas têm as suas árvores, o imbondeiro sobretudo, mas também outros ‘‘paus de sereia’’, como a matebeira, a musekenya e o ife, isso sabia a Lia. Mas pouco sabia do kakulu, cerimónia organizada em honra das yanda, rito antigo de veneração e reposição do respeito que lhes é devido, mais não seja que pela inegável influência que elas exercem sobre os caprichos do mar. Sabia que o kakulu era a sua mais alta expressão, mas não lhe conhecia a feição, nunca o tinha vivido. E agora, arrancada à sua zona “de fora”, com muita doçura bem entendido, sentia-se um pouco perdida no Bairro, queria saber, fazia perguntas, «Orienta-me», pedia-me ela. Porém, a minha sabedoria sobre essa delicada matéria era de duvidosa origem, dado que os kakulu da ilha tinha-os eu vivido de longe, e quem oficiava eram Ilamba do Cacuaco, ou do Caxito. Debatia-me entre as duas versões, a da ilha e a do Kwanza. Além disso, sabia muito bem que a gente da Samba, da Corimba e do Mussulo, consideravam esses ilamba do norte de Luanda pouco credíveis. De pouco lhe podia acudir. Quem tentou ajudar, embora sem nunca lhe dar a boa nova que ela tanto esperava, foi o meu pai.

Um dia, como não podia deixar de ser, conseguimos enfim falar do kakulu. A conversa já tinha começado antes, não à volta de uma mesa, como bem assenta a qualquer uma, mas à beira da minha chata nova, entregue na véspera, modificada, tal e qual como eu queria, pintada de azul, pronta a ir para o mar. Tinha-se-me metido na teimosa ter um mastro, arranjar maneira de fabricar um dispositivo para montar o mastro e dispor como deve ser todos os aparelhos de segurar vela, cordas e roldanas, todo o necessário para navegar nas calmas. A Lia não percebia nada de barcos à vela e alheou-se um pouco do bate-papo. Entretanto nós, o meu pai e eu, debruçávamo-nos tanto ao próprio como ao figurado sobre o problema, metíamos a cabeça nos fundos da embarcação para ver como montar um reforço que aguentasse com segurança a pressão do mastro, quando a Lia, que não se explicava a razão dos nossos contorcionismos, me perguntou, «Mas que ginástica é essa, Rui?». Ergui-me - o Luisão não, continuou debruçado a imaginar soluções - e expliquei-lhe que era preciso um reforço nos fundos para aguentar o mastro, que sem vela não dava jeito ir para o mar... «Vem até aqui, vem», fez ela baixinho. Pegou-me pelo braço e afastámo-nos, «Deixa-te disso. O meu pai vai te dar um motor...chuutt!, é segredo». Caí das nuvens, «Um motor!!?...», «Sim, um motor de 40 cavalos. Tu não sabes o que é um motor?»...Fiquei muito contente, é claro, dei-lhe uns beijos mais ou menos castos, pois havia por perto uma boa dúzia de mirones, e ela não perdeu o ensejo para me pedir o troco da boa notícia que me tinha dado, «Pede lá ao teu pai que me leve ao kakulu?» Num reflexo intuitivo olhei para trás, vi o Luisão a extrair-se penosamente de entre os bancos da chata e disse, «Quando formos almoçar»
Durante o almoço que se seguiu abordei com pezinhos de lã a importância das yanda no nosso trabalho, a necessidade de um kakulu com tanta falta de peixe, os prejuízos, as kalembas, e a certa altura a Lia perguntou, «Mas há kakulu, ou não há?», E eu, muito depressa, «Vai haver, sim, vai haver, o pai explica». Calei-me logo, não viesse de lá um tradicional «Cala a boca!». Mas o Luisão tinha de facto mudado muito. Além disso ele bem sabia que a Lia se interessava pelo assunto porque no nosso bairro não havia muro que não tivesse orelhas. Olhou para ela com meiguice, todos ele dentes ao léu, e anunciou, «Vai haver kakulu, sim senhora, e tu agora és da família, estás “por dentro”». Calou-se de repente, cobriu-se-lhe o rosto de tristeza, por um pouco não lhe desapareciam os olhos como quando se zangava, mas lá conseguiu subtrair um sorriso do percalço que se aprestava a anunciar, «Tem havido maka grossa com aquela malta da ilha. Organizam kakulu p’ra turista, ‘tás a ver, uma vez até a imprensa lá foi meter o nariz, não pode ser...Este kakulu é o do Mussulo, na Barra do Kwanza. É uma cerimónia de mais velhos. Depois, no dia seguinte, vamos benzer as praias, talvez nessa altura...vai ser difícil. Fica para outra vez, ‘tá bem?». Ficámos tristes. A Lia olhou para mim com ar de quem diz, «Já sabia que ia ser assim»...Mas concordámos, as razões dos mais velhos respeitam-se.

Estava de facto previsto organizar um kakulu. E a habitual colecta já tinha começado algumas semanas antes, pouco depois da kalemba de Agosto. Prolongar-se-ia pelo menos por mais uns dois ou três meses. È que se quiséssemos venerar com justo aparato as nossas yanda, ainda faltava muito dinheiro para poder adquirir o peixe, a farinha de mandioca, as outras vitualhas, os garrafões de vinho, as grades de cerveja, as garrafas de uísque e de cognac, aguardente e cabaças de maruvo, o tudo comprado em grandes quantidades na candonga. Tanto dinheiro, não era em menos de quatro ou cinco meses que se poderia arranjar. Isto sem esquecer os utensílios diversos, os tecidos, os pratos, os copos, as mesas do culto e os ingredientes para a água lustral, o dikoso, antigamente uma mistura de caulino branco, água e noz de coco. Muito, muito dinheiro. Estavam já a contribuir, e continuariam a fazê-lo, os patrões das “grandes redes”, muitos pescadores independentes e a grande maioria das senhoras “natas” ligadas à faina. Os empresários da pesca motorizada e industrial não participavam. Nem tão-pouco tinham sido contactados.

Quanto aos participantes no kakulu, há séculos que são, por assim dizer, os mesmos, os filhos da terra, neste caso preciso os filhos da ilha ligados à pesca, as “famílias natas” residentes no Mussulo e nas terras da baía do Mussulo, até aos limites norte da Samba. Muito mais reduzido seria o número de “famílias” que viriam da ilha de Luanda e dos musseques, “do mato”, que apenas seriam aceites se fossem fornecedores de pescadores às “sociedades” de pesca à rede da zona do Mussulo e da Samba. Porém, desde que entrassem, todos eles sabiam que, participando na cerimónia, seriam bem-vindos, mas que pela mesma ocasião, enquanto se realizava o kakulu, ficariam sujeitos às ijila do costume. Ser-lhes-ia interdito pescar e comercializar peixe, tomar banho na praia, lavar mais de meio corpo, mudar de roupa, ouvir a rádio e ter relações sexuais. Em troca, todos beneficiariam, mais do que os que não viessem, do estatuto de muxiluanda “puro”, assim como das dádivas das yanda.

Contudo, como era de esperar, antes do kakulu teve lugar o casamento. Na Igreja da Nazaré. Confesso que me senti mal no fato que me comprimia. Abria os olhos para o aparato do culto católico como se estivesse a vê-lo com lentes de alcanço, as minhas raízes tremiam enquanto eu esperava a noiva ao lado do altar, e só confortei o meu desânimo ao pensar que o amor a tudo leva e seja onde for que ele nos conduza, sempre prevalece a sua força. Pensei no motor que ia receber e me separava também das tradições antigas, numa corrida às benfeitorias do progresso. E continuei à espera, enquanto ao meu lado o kota Kiala e a Lena, escolhida à última da hora para madrinha, o que lhe ia causando um chelique de felicidade, tremelicavam de emoção, tanto ou mais do que eu. Chegou enfim a noiva, de braço dado com o pai Faria - «A Lia, tão bonita...e o rapaz tão atrapalhado!», diria mais tarde a vó Júlia -, fui para recebê-la, ela deu-me o braço, e avançámos para o altar. Chegou o momento de dizer sim, foi o que fizemos. Demos aquele beijinho, e quando a cerimónia acabou vieram outros com algumas lágrimas, numa grande mistura de sentimentos, alegria, medo do futuro, esperança no futuro, tristeza pela separação perene dos pais com os filhos, todas essas emoções que dão à vida algum sentido.
A boda decorreu no ‘‘Kianda kya anazanga’’, um centro cultural na moda, perto da Xicala. Música, maestro! Veio de lá o Faria e saltaram dos bastidores os quatro músicos que animariam a festa. Comida aos montes; bebidas às pipas; música e dança até ao nascer do sol. Um casamento como muitos outros, alegre e embriagador.
A nossa lua-de-mel - outro mambo do progresso -, qual lua-de-mel qual carapuça!, foi no Bairro dos Imbondeiros, ao lado do motor de quarenta cavalos, sorrateiramente entregue à Lia e agora escondido num recanto da casa.
Para evitar makas relacionadas com o kakulu, que estava marcado para a semana seguinte. Isto, sabendo que não ia participar, agora imaginem se eu participasse.

Imagem: Porto Amboim. fazermuamba.blogspot.com

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