quarta-feira, 23 de março de 2011

Os filhos do Papá dya Kota (7). António Setas


Abriu muito os olhos, ficou assim durante uns segundos e decidiu, «Pronto, vamos começar pelo princípio, um ki mona mesu, um não, são pelo menos três...sabes o que é um ki mona mesu?», «Sei», «Óptimo. Vamos devagar. O primeiro é o mais antigo, muito antes dos portugueses terem chegado à foz do rio Zaire... isso tu sabes, que os portugueses chegaram à foz do rio Zaire?», «Sim, pai». «Ah! Outra coisa. O que te vou contar é a história que nos vem da tradição oral. Vou-ta contar muito pela rama, muito simples, sem entrar em pormenores. Apenas para que tu fiques com uma ideia. De acordo?», «Sim». E começou. Contou primeiro como Nimi a Lukeni, o fundador do reino do Kongo, teve como mulher uma judia do Norte de África, uma escrava de quem teve um filho de quem descendia grande Nezinga, famoso por ter introduzido as conchas, o nzimbu, como moeda no reino do Kongo (Nota 1)
Quando o senhor Kiala, era o nome do kota, acabou de falar, respirei a fundo, como quando se acaba de viver um momento de grande emoção. Ora aí estava um dos grandes pontos de interrogação que deixaria doravante de me atormentar. Todavia, ficava uma pergunta no ar, « Conchas, pai, conchas há por toda a parte, não é só na ilha de Luanda?», «Já lá chegamos, já lá chegamos, calma». Pediu à Lia para ir em busca de água, olhou para mim e sorriu. Ficámos alguns segundos em silêncio. A Lia voltou com a água, pôs o tabuleiro em cima da mesa à volta da qual estávamos sentados e encheu os copos. Bebemos um pouco de água fresca e o kota preveniu, «Antes de continuar é preciso clarificar um ponto. Toda a faixa costeira de Angola, do rio Dande, que os portugueses chamavam rio Fernão Vaz, até ao rio Kwanza, sempre foi ocupada por muita gente, sobretudo mundongo. Quando os bakongo conseguiam instalar-se nesses territórios era pela força das armas e nunca de maneira definitiva. E um dos antepassados do famoso Nezinga, que também se dizia descendente da tal escrava judia de quem já te falei, foi um dos Senhores da linhagem de Nimi a Lukeni que chegou até à zona de Luanda. Vinha do Leste, de um lugar chamado Kurimba, no Kuango, e obrigou os mundongo a fugir. Não todos, pois bom número dentre eles ficaram ao seu serviço. Segundo parece foram alguns dos seus súbditos, ou seus descendentes, portanto bakongo, que mais tarde apresentaram ao rei os tais nzimbu da ilha de Luanda. E o rei teria gostado tanto que em pouco tempo cada um deles passou a valer cinco ou seis conchas das que habitualmente circulavam por todo o reino do Kongo. É claro que o rei quis saber de onde vinham. Deram-lhe a informação, e ele decidiu enviar homens armados para ocupar a ilha de onde provinham tão preciosas conchas, a ilha de Luanda. Um desses invasores tem uma estória muito curiosa que já te vou contar. Mas antes disso, vou-te falar dum feiticeiro que chegou ao Mussulo e foi protegido por um dos mani Kurimba, descendente do primeiro, que tinha vindo do Kuango».
E contou. Por pouco deixava de respirar para o ouvir (Nota 1).

Tinha chegado a hora do almoço. Sobreveio uma hesitação, não da minha parte, quedo e mudo, siderado pela sorte de felicidade que me tinha invadido. Nunca pensara poder um dia ouvir tantas revelações em tão pouco tempo. Por fim consegui articular um, «Obrigado, pai». O kota Kiala olhava para mim e sorria, olhava para a cozinha, a Lia fez um gesto para se levantar, e só então acordei do meu estado de graça. Ia também para me levantar, mas fui impedido pela mão do mais velho, «Não, vamos comer qualquer coisa, depois continuamos». A Lia levantou-se e foi para a cozinha.
Veio de lá a Lena, mulher rechonchuda, para todo o serviço como fiquei a saber mais tarde. Pôs a mesa e retirou-se, no momento em que a Lia já vinha com a travessa de caldeirada de choco. Entretanto o kota tinha-se levantado e abria uma garrafa de vinho português. «Mas onde é que ele foi buscar isto tudo?...e em minha honra!?...» Mas não tive coragem de lhe perguntar se o vinho era da candonga.
Comemos, a falar de pesca e de “redes”, e a dada altura contei-lhe a narrativa tradicional que o meu pai um dia me tinha revelado sobre a retirada de Ngola a Kilwanji, a partir dos lados da Sonangol. Gostava muito dela.
“Segundo consta, Ngola a Kilwangi parou na “mulemba wa ixi ia ngola”, perto da estrada, olhou uma última vez com desdém para os que lhe davam corrida, obrigando-o a retirar-se do território que era dele, e meteu para o interior, mas sempre virado para o sítio de onde vinha, sem nunca voltar as costas. Atravessou assim, sempre virado para o sítio de onde vinha, as suas terras, por ali ia dormindo, dando-lhe nome e deixando, nas que tinham água e lavras, os filhos, a sua raiz, e homens de trabalho, cada um com a sua profissão”.
O kota não parava de sorrir, e eu sentia que ele me gostava. Era bom estar ali com a Lia à minha beira. Acabámos de comer, a mesa foi levantada, o kota Kiala contou o seu terceiro ki mona mesu. E eu calei-me, bem caladinho, para ouvir (Nota 1).

Quando cheguei à rua, depois de me ter despedido do kota Kiala, abri o peito e deixei entrar o ar. Sentia-me embriagado por ter colhido num ápice algumas das informações que durante anos tinha procurado em vão. Até à data apenas me tinham sido revelados detalhes, estórias descosidas, nunca uma destas narrativas com cabeça tronco e membros. A minha cabeça estava cheia de príncipes, reis, raízes, lutas e uanga. E cheia de Lia, que tinha ficado a ajudar a Lena. Cheguei a casa, meti-me no quarto e pus-me a pensar. Dava-me conta de que as estórias do kota Kiala me tinham aberto uma porta pela qual eu estava decidido a entrar. Foi nesse momento que decidi retomar os estudos. Mais tarde falaria com o tio Mbala.
No sábado seguinte voltei a encontrar-me com a Lia. Fomos passear pela praia. De um momento para o outro saltou-me da boca o que desde o primeiro dia em que falei com ela tinha vontade de lhe dizer, «Gosto muito de ti, Lia. Demais». Peguei-lhe na mão, apertei-a, e ela apertou muito a minha. Um bom sinal. Como esses do rio que os navegadores portugueses um dia encontraram, anunciando-lhes a proximidade da Índia. Mas eu não precisei de navegar, nem de batalhar, nem de matar ninguém, para que todas as riquezas da “minha Índia” viessem a ser minhas. A Lia olhou para mim e disse baixinho, «Eu também, Rui. Demais». Senti a emoção do homem que se transforma em Super-homem, agarrei-me ela como se a Terra me tivesse fugido dos pés, e beijei-a como se a pracinha onde estávamos, cheia de gente, estivesse vazia.

Foi uma daquelas paixões relâmpago que de imediato carecem de Sacra- mento. Começamos a namorar, alternando passeios pela praia com visitas ao kota Kiala e aos nossos velhos, isto sem falar dos finais de tarde passados em casa da tia Londa, admirados com a nossa felicidade e com a beleza do pôr-do-sol. Pouco tempo depois toda a Xicala (onde também viviam os pais da Lia), a Samba e o Prenda sabiam. E um dia o meu pai, que continuava a viver no Bairro dos Imbondeiros e a passar os fins-de-semana no Prenda, pegou em mim e levou-me até à casa da Samba. Tinha coisas importantíssimas a dizer-me. «Filho, estás um homem e precisas de pensar no teu futuro. Eu sei que se o Mbala abrir a mão tu já és mestre, podes ter o teu barco. Tens agora essa namorata, não sei se é a sério ou se não é, mas se for diz-me...», « É a sério, pai», interrompi eu. Muito surpreso, vi o meu pai a abrir os braços para me abraçar. E abraçou-me, «Assim é que eu gosto, vamos fazer um trato. À frente da tua mãe, para ela ser testemunha».
O trato que o meu pai me propôs no sábado seguinte, quando fomos comer o funji a casa da minha mãe, sem o Augusto, resumia a enorme mudança da sua atitude em relação a mim. Desejava provar que sentia pelo filho um verdadeiro amor de pai, mas porque era macho arisco, rude no trato e incapaz de exteriorizar por gestos e palavras os seus sentimentos, recorria ao que se sentia capaz de me oferecer sem receio de parecer ridículo: o dinheiro. Propôs-me pois, se me casasse, entrar como sócio para a rede da Câmara. Ele oferecia-me uma chata, dessas novas, feitas com pranchas de madeira, fundo plano e popa adaptada para receber um motor de 40 cavalos. Mais, se quisesse continuar a pescar à linha podia, se quisesse ‘‘encostar’’ rede, ele entrava com a rede. Quanto à Lia - já sabia tudo o raio do homem -, o pai era malanjinho e “calcinhas”, o que por um lado dava jeito por causa da maka do alambamento, era quadro superior de uma das raras empresas privadas de pesca industrial, e a mãe não fazia nada, era dona de casa. Havia dinheiro e talvez ele também ajudasse. Olhei para a minha mãe, repetindo a mirada que já várias vezes lhe tinha lançado durante a conversa, e não descobri nenhuma mudança no seu sorriso beato, mas sim no brilho dos olhos, muito lá no fundo, o rabinho da alegria que ela escondia e não se dispunha a alardear diante do meu pai.

O pedido de casamento foi um pouco à moda dos “calcinhas”, para agradar ao pai da Lia. Faltou-lhe aquele... eu sei o quê, dos rituais da nossa gente. Levámos as grades de cerveja, vinho, bebidas finas, bolos e pastéis de bacalhau, o meu pai, trajado à empresário, até nem parecia pescador, e a minha mãe, ai Jesus, não me toques que me desafinas, com os cabelo desfrisado, lábios pintados e vestido feito de propósito para o efeito. Comemos, bebemos e dançámos com moderação. Mas foi uma festa bonita. Quem tinha sido convidado e não estava presente por motivos de trabalho foi o kota Kiala. Mandou um ramo de flores, um livro de História, uma garrafa de uísque e um envelope com um convite para ir almoçar a casa dele no domingo seguinte.
Após termos decidido qual seria a data do casamento, o meu pai pegou outra vez em mim e levou-me a casa da mãe. Só percebi para quê quando ele começou a falar. «Ouçam bem o que eu vou dizer. Sem meias-tintas. O rapaz não tem casa própria. Mas eu falei com o senhor Faria - o senhor Faria era o pai da Lia - e já lhe disse, não tem maka, o casal vai viver para uma casa que tenho no Bairro dos Imbondeiros». Calou-se, à espera das recaídas do que acabara de dizer. Mas nem eu mexi, nem a mãe falou.

Imagem: casamento.culturamix.co

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