segunda-feira, 14 de março de 2011

Os filhos do Papá dya Kota (4)


António Setas

Quando ia ao Bairro dos Imbondeiros era sempre bem tratado, nunca senti que me recebessem com os restos que tinham ficado da véspera. A tia Chiquinha gostava muito de mim, dava-me mimo, e eu gostava bué dela. O ambiente é que não me agradava, não sei porquê, talvez o desprazer sentido na convivência com do meu pai, o cazumbi do Papá Dya Kota, uma disciplina diferente a que eu não estava habituado. Só gostava de lá ir por alturas do Carnaval. Aí sim, ia com muito gosto.
Eles tinham um clube, um grupo, é isso, um grupo de Carnaval chamado o União Nzumba, e era sempre um grande prazer estar presente numa festa, sentia-me todo inchado por saber que tudo aquilo, os trajes lindíssimos, as missangas, os carros, os homens e as mulheres que dançavam, e até os cantos eram um pouco meus. E os comandantes, os reis, as rainhas, as princesas e os condes eram um pouco da minha família, porque o meu pai dava muito dinheiro ao grupo e a tia Chiquinha ajudava a organizar sem olhar a canseiras, como deve ser, os quadros e as danças. Além disso, no União Nzumba as principais figuras eram todas da nossa gente, do Bairro dos Imbondeiros. Só escapavam duas ou três, tudo o resto era nosso, mais de vinte soldados, vinte ‘‘cavalheiras’’, instrumentistas, chefes da ronda (os que faziam as reuniões e recebiam o kumbu dos de fora), ‘‘gentios’’(os que mantinham a ordem), tarrafeiros, que lançavam rede e davam assim o seu cunho ao grupo, porta-candeeiros (obrigatório), e muitas outras figuras nos trinques, isto sem falar do kimbanda, indispensável, discreto mas indispensável, para “desarmar” os rivais e impedir que a pele dos bumbos rebente em plena acção. Já viram o desastre que seria sem o kimbanda?...
Era costume as danças saírem à rua nos primeiros dias de Janeiro a dar a volta ao bairro, das 14 às 20 horas. Isto todos os domingos até ao Entrudo. E nessas representações por vezes acontecia que dois grupos rivais, ou aliados, se encontrassem. Se eram rivais não se lhes passava cartão, o melhor era olhar para eles com a devida altivez, para que soubessem o que se pensava deles; se fossem “aliados” punham-se um em frente ao outro e dançavam face a face com todas as figuras principais em destaque, a ver quem era o melhor. Raramente, mas acontecia, tinha maka da grossa quando dois grupos rivais se encontravam, com feridos, e até um ou outro morto.
Na noite do Sábado Gordo era a “passeata”, ensaio geral. No domingo de manhã apresentava-se a bandeira, e à tarde, aí pela 14 horas é que aparecia a malta toda na máxima força, devidamente trajada. Enfim, na terça-feira chegava a hora do desfile oficial, e não era para brincadeiras. Todos os grupos se exibiam sucessivamente ao longo de um percurso previamente definido e passavam diante da Tribuna. Grande momento!, o pináculo dos festejos, quando eles passavam diante da Tribuna. Com gente do Governo, e com todos os membros do júri, que ali estavam para dizer qual era o melhor grupo de Carnaval do ano.

Nunca me tinha passado pela cabeça fazer parte dum grupo de Carnaval. Observava e folgava, mais nada. Mas um dia, a tia Chiquinha veio ter comigo e perguntou-me se eu queria ver os trajes que estavam a ser confeccionados por um alfaiate do Rangel. Disse-lhe que sim e fomos ao Rangel a casa do alfaiate do grupo. Chegámos, entrámos e pudemos ver os trajes do comandante, do rei e da princesa, outros mais, espantosos não havia dúvidas. Em seguida, mostraram-me uma farda especial que muito me agradou. «Queres vesti-la?», perguntou a tia, «Quero». Vesti a farda e fui ver-me ao espelho. Fiquei de boca aberta, por pouco nem me reconhecia. E a tia a perguntar, «Queres guardá-la?», «Para fazer o quê, tia?», «Para ir ao cortejo, filho! Não queres?», «Quero». Foi assim que eu participei no Carnaval desse ano.
Não falhei a um ensaio, fiz boa figura nas vezes em que saímos à rua e no ensaio geral. Lembro-me do cortejo, da alegria que todos sentimos enquanto desfilávamos, e da tristeza no fim, porque quem ganhou dessa vez foi o União Mundo, da ilha do Cabo. Depois... não é que o ambiente tivesse azedado, mas senti que havia um não sei o quê que me separava do grupo, todo ele composto por gente do Bairro dos Imbondeiros. Seria porque a minha tristeza não era tão profunda como a deles? Seria por eles me considerarem “de fora”? Não sei, mas para evitar amuos futuros com esses meus kambas que levavam mais a peito do que eu o despique, decidi voltar a ser o antigo espectador aferroado, que continuava a sofrer quando perdíamos. Mas sozinho.

Durante a semana o meu pai aparecia sempre de surpresa, meio-dia, meia-noite, e entre essas duas horas qualquer uma lhe servia. Mal chegava, as suas mãos largas como barbatanas a espadelar o ar, sempre cheio de fome, pudera, vinha do mar, sentava-se à mesa e pedia que lhe servissem qualquer coisa que se pudesse meter debaixo de um dente. A maka era que às vezes não havia nada em casa, nem um naco de pão. Zangava-se, e eu ficava sempre à espera que os olhos lhe desaparecessem no fundo das órbitas. Mas não, barafustava, «Nem uma migalha de pão!!? ...com todo o dinheiro que eu vos deixo!», batia com a mão fechada na mesa e ficava-se por aí, os olhos não desapareciam. E eu suspirava, desiludido mas aliviado. Quem não sabia em que pé dançar era a minha mãe. Pensou, malucou, e acabou por encontrar a solução na compra de um cesto onde meteu dois embrulhos com fuba, algum peixe seco, batata doce, mandioca e umas cebolas, fechou o cesto e guardou-o. Ninguém lhe podia tocar, era só para o pai. Por vezes ele chegava a horas decentes e comíamos juntos, o que dava uma boa ocasião para falar de tudo um pouco, abordar os problemas do dia-a-dia ou rirmo-nos das desgraças dos outros. Mas do que eu mais gostava era quando a minha mãe vinha com as estórias que seus parentes bakongo da ilha de Luanda lhe tinham contado. E que ela não se fartava de me contar.
A minha mãe, que sempre tinha trabalhado na venda de pescado e era filha, neta e trineta de mulheres como ela, que nunca tiveram outro ofício na vida, dizia que muitas das mulheres da sua kanda tinham sido em recuados tempos apanhadoras de nzimbu (zimbo), quando essa concha era ntadi, dinheiro corrente no reino do Kongo. E cada vez que tinha a sua “crise bakongo”, como eu lhe chamava, aprumava-se, provocando um segundo de silêncio, e explicava como se fazia esse trabalho na ilha.

«Vinha a maré vaza e as mulheres corriam para o mar com os kofus na mão. Os kofus eram cestos estreitos, em forma de cone, que lhes serviam para a apanha. Corriam, mergulhavam nas onda - e pela maneira como o faziam logo se veria qual era a mais valente -, enterravam o kofu na areia, erguiam-se, voltavam atrás, esperavam uma nova onda e quando ela chegava punham-se outra vez a correr, a mergulhar e a enterrar os kofus na areia. Demorava um certo tempo até ele se encher, e quando isso acontecia a mulher que o tinha atulhado voltava costas ao mar e ia para a praia, sentava-se na areia molhada e separava o que havia no cesto com a ajuda das crianças da sua família, os nzimbu para um lado, a areia, os pedregulhos e as outras conchas sem valor para o outro.
Era assim no tempo de cacimbo, quando o mar está mais bravo. Na estação das chuvas, por mar calmo, também se fazia a nkana, como era costume na nossa terra do Kongo, quando se pescava nas lagoas e nos ribeiros. Construía-se um recinto na areia com muros feitos com lama, alguns paus e capim seco, o mar vinha com a maré e inundava o recinto, depois descia, e com os kofus atirava-se com a água para fora do recinto improvisado e recolhiam-se os peixes e os búzios que lá ficavam».

O meu pai deixava-a falar, ouvia com atenção e no fim ria-se, «Olha que em Angola já não vamos longe com os kwanzas, mas vocês lá no vosso reino, com búzios a servir de dinheiro!!?...Ah! Ah! Ah!» , perdia-se de riso. A minha mãe ficava furiosa e era rápida na riposta azeda, «Olha que com os mundongo da tua banda era com sal que pagavam as mercadorias! E não é tudo, os bakongo é que ocupavam a ilha de Luanda, tinham guerreiros que escorraçavam os mundongo, que fugiam para o Sul ou para as terras de Leste, e os que não fugiam ficavam para servir os bakongo. E digo-te mais, aqui na ilha quem mandava era o rei do Kongo! E com um kofu de nzimbu, sabes quantas cabras se compravam?!, vinte e cinco!... valia ou não valia!?» Continuavam assim a discutir, o meu pai na galhofa, a mãe a ir aos arames, mas a conversa nunca ia muito mais longe do que as dicas que eles tinham ouvido dos mais velhos, acabava sempre por encalhar nos baixios da ignorância que partilhavam, e cada um deles ficava no seu. Quanto a mim, que tudo ouvia com atenção, ficava-me com a versão desse grande reino do Kongo a crescer na cabeça. O meu pai era mundongo, a minha mãe bakongo, tudo isso me dizia respeito. Nos tempos que se seguiram, quando a História do reino do Kongo vinha à baila metia a minha colherada, fazia perguntas e arrependia-me. O meu pai mandava-me calar e dizia, «Isto de ter filhos é bonito vê-los, mas quando abrem a boca...» Só quando ele se ia embora é que eu conseguia tirar da minha mãe tudo o que ela sabia sobre o grande reino do Kongo. Foi assim até pouco tempo depois da data da nossa Dipanda ter sido anunciada. A partir de então tudo mudou em Angola. E na minha vida também.

Ano de Cristo de 1974. O dia de Glória, a Dipanda, foi anunciado para o final do ano seguinte. A outra notícia importante desse ano foi a minha passagem para o terceiro ano do Liceu. «Uma lança em África», como disse o Guedes ao meu pai. A recompensa foi obter o direito de passar um mês em casa do tio Mbala, sob o pretexto de ir para a praia. Uma praia muito minha, e até aí secreta, sem areia e cercada de mar por todos os lados, o ndongo do tio Mbala.

Imagem: Luanda, 1940. prof2000.pt

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