Continuou, «Limito-me a seguir a lógica. Todos os sábados e domingos estou aqui; durante a semana é pelo menos duas vezes que eu visito a mãe Tonicha... de que me serve a casa do Bairro?, só para eu me chatear com a Mira, que lava mal e porcamente a roupa e faz sempre a mesma comida, peixe com arroz ou fuba, e fuba ou arroz com peixe. Chega!...» Rimo-nos, e ele aproveitou para rematar, «Vamos fazer assim, os pombinhos ficam com casa própria, e eu vou recomeçar a namorar com a minha Tonicha». Virou-se para a minha mãe, que estava ao seu lado, «Não é, galinha?», abraçou-a e deu-lhe um beijo. E a minha mãe, «Você é que manda». Disse-o com um ar sisudo, mas eu bem lhe via a comissura dos lábios viradas para cima nas extremidades, como que aspas de uma palavra que ela guardava muito bem guardada: felicidade.
Fiquei a pensar nas voltas que a vida dá. Lembrei-me da tristeza da minha mãe quando eu era criança e ela ficava sozinha em casa, lembrei-me do cacete do pai a dar-me cabo das costelas, da tia Chiquinha e dos seus mimos, veio-me à memória a sua morte trágica, o óbito, as lágrimas, a Dipanda e os sofrimentos que vieram com ela, e depois passei em revista todas as vitórias que alcançámos na liberdade conquistada, quase todas resultado das lutas do dia-a-dia. Mas para alcançar o quê, afinal?... A resposta estava naquele sorriso da minha mãe, anunciando céu azul e alísios, que nos empurravam de vento em popa para mares mais tranquilos. Era assim que eu pensava.
A semana passou a correr de um lado para o outro, da Lia para o mar e do mar para a Lia. Quando nos encontrávamos ao fim da tarde falávamos de tudo, mas tudo ia dar ao casamento. Ficou decidido que a cerimónia seria no dia dos anos da Lia, daí a uns quatro meses, no dia 5 de Novembro, e que o padrinho seria, caso aceitasse, o kota Kiala. A seu respeito corriam-me no testo duas questões. Uma, se era ou não era do Governo - nunca se ouvia falar dele -, a outra, que relação havia entre ele e a Lena. Nada de importante, mas as respostas tinham o seu quê, porque cada uma delas levantava o véu de jardins secretos, a política e as mulheres, o que significa dizer o dinheiro e o sexo, as duas tetas da humanidade. Mais valia ficar-me pelas dúvidas.
Nesse sábado jantámos em casa dos pais da Lia, o cabelo cortadinho e fatiota decente. E no domingo fomos almoçar à vivenda do kota Kiala, que nos recebeu com alegria, como se já soubesse que ia ser nosso padrinho. A mesa estava posta para quatro pessoas, a Lena almoçaria connosco. Veio um cozido com todos, vinho, pudim francês e vinho do Porto.«Puxa! Nesta casa come-se bem!», pensei. Concluí que o kota era mesmo uma pessoa importante. A Lena encarregou-se de responder à segunda pergunta. Depois das travessas terem sido postas em cima da mesa, legumes, carnes, arroz, e o molho, feito a partir de uma redução de uma boa canja de galinha, tudo separado, a Lena sentou-se ao lado do kota Kiala, toda ela em açúcares para o anfitrião, e ele, suavemente feliz, dava-lhe de quando em vez umas espreitadelas de agradecimento, dúbias, pois muito mais longe do que o agradecimento se adivinhavam os alvos do seu olhar. Na conversa que tivemos à mesa não se falou só do casamento, apesar dos esforços repetidos da Lena, que não se cansava de jurar que nada havia tão bonito no mundo como um jovem casal de apaixonados, que o nosso futuro seria cor-de-rosa e que teríamos pelo menos dez filhos. Com algum esforço desviávamos a conversa para outros assuntos e ela voltava à carga, andámos nisto até ao fim do almoço. A dada altura, no entanto, o kota Kiala meteu o falatório nos carris da Lena, «Afinal, quem é o padrinho do vosso casamento?», perguntou. A Lia aproveitou a ocasião e respondeu-lhe, a atrevida, «É você, tio. Não sabia?». O kota olhou para mim e de imediato compreendeu que se tratava de uma “conspiração’’, um contra dois, com a Lena fazia três, não havia jeito de recusar, nem tal ideia podia passar pela sua cabeça. Levantou-se, eu levantei-me, levantaram-se as mulheres, e abraçámo-nos. Nisto, a Lena foi até à cozinha e trouxe uma garrafa de champanhe francês! «Para os noivos!», clamou.
Não era preciso ser bruxo para adivinhar que a Lena... a Lena só podia ser a cara-metade do kota!
Quando faltava um pouco mais de dois meses para o casamento, o meu pai não esteve para ficar mais tempo à espera da data da cerimónia para me entregar a prenda prometida, uma chata de madeira. Caminhava para os setenta anos de idade e mostrava-me com esse febril anseio de que modo os homens da sua idade podem regressar à infância. E também como são capazes de dar muito mais carinho aos filhos.
A chata tinha sido construída na Samba, e como estava previsto que eu fosse habitar com a minha Lia para o Bairro dos Imbondeiros, concluí que seria boa ideia instalar-me em casa do meu pai algum tempo antes de me casar. Falei com a Lia, que nessa altura andava numa roda-viva, pois o seu trabalho com o pai Faria levava-a a miúde a Porto Amboím, falei com o meu pai, combinámos tudo, e, depois duma festa de despedida em casa do tio Mbala e da tia Londa, instalei-me com as minhas bikuatas nos Imbondeiro. A casa tinha dois quartos e eu passei a ocupar o que deveria ser o da Mira, mas não era, porque ela dormia com o Luisão, o que numa certa medida facilitava a minha vida. De resto, mesmo que ninguém lhe tivesse dado a dica ela sentia que devia haver ninho de besouro no “berço” e multiplicava agora os cuidados e os carinhos ao “bebé”, o meu pai, que passou a beneficiar do privilégio de ter sempre roupa limpa e repassada a tempo e horas, e um ou outro pitéu mais requintado à mesa, caldeirada, cozido, churrasco, ou moamba de dendém, no lugar do sempiterno peixe com arroz ou fuba.
No dia em que cheguei, a chata estava quase pronta. Fui vê-la. Os bancos não me agradaram, eram muitos baixos para a minha estatura; o poço da âncora e o cofre eram pequeníssimos, não queria aquilo assim. Fiz um desenho, que mostrei ao Luisão, e ele estava de acordo. Entreguei o desenho ao mestre e ele aceitou fazer como eu queria, só que esse trabalho implicava custos ...«Pouco importa», cortou o meu pai, «faz o que está aí desenhado, eu pago». O mestre acabou por fazer um bom preço e no dia seguinte começou a fazer as modificações que eu desejava. Instalou-se então uma súbita calmaria na minha vida. Fiquei à espera...da chata, do casamento, disso tudo. Tinha algum tempo livre à minha frente.
Um dia, o Zé, filho daquela senhora que tinha sido morta com a tia Chiquinha no ndongo, convidou-me a ir a uma festa no Ialacolo, que a malta do Bairro frequentava quando tinha vontade de se encontrar com garinas bonitas, que naquela zona havia muitas. Vieram connosco mais quatro amigos do Zé, e eu fiquei surpreendido, um pouco assustado mesmo, quando reparei que dois deles levavam cacetes grandes, desses que servem para fazer a cara num bolo a um peixe-martelo. E perguntei ao Zé, «Levam cacetes para quê?», «É melhor. Às vezes dá porrada. Com os cacetes não tem maka», «Mas ouve lá, um cacete desses mata um tubarão!», «Pois é, Rui, tu não conheces esses gajos do ‘‘musseque da mandioca’’, pois não?...São perigosos, estou a falar. E não são dois ou três quando se zangam, tens logo uns dez à tua frente. Mas quando vêem o cacete ficam sossegados...até dá gosto vê-los», «Mas zangam-se porquê?», «Ciúmes, mano. Temos mais dinheiro do que eles, temos mais garinas. Não te preocupes, não vai haver maka». Lá fomos à festa. Tudo correu bem, à parte uma ou outra escaramuça isolada, mais banga que outra coisa.
Regressámos a altas horas. O Zé trazia uma bonita escurinha, dois dos amigos traziam cada um com a sua “cavalheira”, os outros dois, e eu claro, que não parava de pensar na minha Lia, não tínhamos parceira. Antes de chegar a casa os três casais desapareceram na natureza. Foram trocar ideias e outras coisas mais sobre a maneira de fazer filhos; nós, os solteiros, fomos direitos a casa. Em caminho comentámos a festa, que não tinha sido lá grande coisa... Pois não, as garinas tinham-nos mandado pastar! Identificámos as mais assanhadas, as mais doces, as mais bonitas, que felizmente não tinha aparecido ninguém a opor-se a que a malta saísse com elas, coisas assim. Depois girámos, cada um para sua casa. E, quando me deitei, imaginei o que se teria passado se fosse o contrário, serem os do “musseque da mandioca” a agarrar as nossas garinas na praia. Isso é que era bom, vai masé agarrar a tua avó! Aqui, p’ra agarrar só há redes! Ninguém ia deixar, isso é certo.
Pensava nisso tudo e ria-me, mas no fundo não estava de acordo com essa maneira de agir. Ir até ao território dos outros à procura de garinas e embarcá-las, no meu entender deveria supor que os que viessem à praia em busca de garinas também pudessem sair com elas. Mas não, ali na Samba não era assim. E vinha ao de cima, muito mais do que qualquer “diferença” que nos distinguia dos outros kaluanda, um complexo de superioridade que eu compreendia, mas não partilhava, embora ele se manifestasse numa atitude que pretendia defender a nossa comunidade. Enfim, mais uma pequena kijila própria da juventude. O que me preocupava era a Lia, sempre ausente, por causa dessas viagens a Porto Amboím.
Imagem: mazungue.com
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