António Setas
Todos os dias não, mas uma ou duas vezes por semana ia para o mar com o tio e comecei a aprender as artes da pesca e de navegar. Passado um mês voltei para casa, e na bagagem não havia só roupa e objectos de uso pessoal, também levava as noites passadas no mar, o vento a encher a “mvela”, as dificuldades da pesca, as decepções e as alegrias, as lições do tio Mbala.
Veio Janeiro, e os angolanos ficaram a saber que o dia da Dipanda seria a 11 de Novembro desse ano. Alegria. Entretanto regressei às aulas. Depois, estava a chegar o cacimbo, vieram as makas, zangaram-se os irmãos. Tristeza. Milhares de vítimas, mortos a apodrecer pelas ruas, cheiro a carne podre, ameaças, doença. Uma das vítimas foi uma mulher que ‘‘me gostava’’, a tia Chiquinha, a primeira mulher do meu pai. Fiquei muito triste quando soube da sua morte.
Nessa altura era impossível andar pelas ruas de Luanda. Tiros por todo o lado, gente que aproveitava a ocasião para ajustes de contas, enquanto que nós, axiluanda, virados para o mar, ouvíamos os trovões das armas e só pedíamos que os patriotas nos ignorassem. E eu, ainda candengue, tinha medo, e por mais que admiras- se o “pai Neto” não abraçava as razões de tanto ódio. Enfim, os desígnios e as sendas da política são quase tão impenetráveis como as do Senhor, e não assenta ao pecador candengue por aí se aventurar...
“Xé, minino!... não fala política, não fala política...”
Ocorreu o fatal desfecho depois da tia Chiquinha ter ido de visita a um óbito no Mussulo. Além dela iam os dois filhos, o Xico e o Adi - o Zeca estava no
mar -, ia o vizinho António, irmão do finado, o seu filho Zé e a esposa. Partiram pelo meio da tarde e todos eles passaram a noite em casa do dono do óbito. No dia seguinte era domingo. Pela madrugada de segunda-feira meteram-se no ndongo para regressar aos Imbondeiros. O vizinho António ficou, com o filho, tratava-se do irmão tinham que ficar. O ndongo lá foi, mas nunca chegou à Samba. Foi atacado por um barco a motor com homens armados que, talvez por causa de resistência, ou por terem sido reconhecidos, não estiveram com meias medidas, mataram toda a gente. Só apareceram os corpos das duas senhoras. Os corpos dos dois rapazes sumiram como que por encanto. Nunca mais apareceram.
Por amizade pela tia Chiquinha e por respeito pelo meu pai, dormi todas as noites no Bairro dos Imbondeiros durante mais de duas semanas. É assim que quer a tradição. Foi um enterro importante, com muitos carros e muita, muita gente a acompanhar a tia Chiquinha até ao cemitério. O dono do óbito era o meu pai e foi ele quem “abriu a mesa” na véspera do enterro. As esteiras tinham sido dispostas no quintal para os homens que iam chegando e se deitavam nelas à maneira axiluanda, de lado, sobre o lado esquerdo do corpo, com o cotovelo pousado na esteira, o braço flectido e a cabeça apoiada na mão, enquanto as mulheres se retiravam para outros recantos da casa. Veio da cozinha um bruto “caldo” - cozido de peixe temperado com sal, cebola, louro, tomate, jindungo, óleo de palma e, acompanhado de farinha torrada de mandioca e mandioca fresca -, com três garrafas de vinho por “mesa”, e no centro de cada esteira um prato, cada um com a sua boa quantia em dinheiro para as primeiras despesas em bebidas.
No dia seguinte, depois do enterro, o que primou pelo requinte foi o “sango”, pago com o dinheiro das mesas. Ali estavam as iguarias da praxe e as bebidas finas, para todos os gostos, compradas na candonga.
À missa do 7º dia seguiu-se outra comezaina pelos ajustes da fartura, e logo a seguir o komba. Varreu-se a casa, pôs-se o lixo na rua e deitou-se o dikoso por cima do lixo. E durante mais de um mês, tudo se passou como manda a tradição muxiluanda, com muita gente a entrar em casa, os nossos familiares, amigos do meu pai e colegas de trabalho, por vezes até pessoas desconhecidas a quem não se negava a visita, muita gente a comer e a beber, a ficar por ali durante umas horas e a ir-se embora, não sem dar uma ajuda nas tarefas domésticas, nunca sem uma palavra de consolo, sobretudo para as mulheres, que faziam o trabalho todo. Muitos deles vieram várias vezes. Sabiam que havia comes e bebes e tiravam a barriga de misérias.
Numa palavra, foi um óbito muxiluanda, nos moldes que são de uso há séculos no seio da nossa comunidade. E para fechar o ritual, serviu-se um bom mufete, com muita bebida, o tudo pago ainda com o dinheiro das mesas.
Era beber, beber e comer...Meu Deus, nem vale a pena contar...
«Chiquinha, agora estás bem, isso nós sabemos, e por isso mesmo festejamos! Também sei que se estivesses connosco terias bebido e comido tanto como nós, porque só assim se pode esquecer a dor. Lembras-te do quanto chorámos nos primeiros dias? Lembras-te, sim! Acabou o óbito, e vamos continuar a chorar a tua ausência, mas mesmo ausente tu estarás sempre connosco, porque nunca saíste, nem nunca sairás do nosso pensamento».
Foi esta a minha prece à Chiquinha. Não com estas palavras, porque na altura ainda não me sabia exprimir como deve ser, mas era assim, aí como está escrito, que eu sentia a dor. Uma prece muito minha.
Entretanto a situação na cidade acalmara-se, o MPLA dominava a situação e a resistência dos outros partidos, a FNLA e a UNITA, desfazia-se em pequenas bolsas de insignificante resistência. O liceu tinha fechado as portas e não se previa para breve a sua abertura. E, como desse modo eu ficava de braços a abanar, sem ter nada que fazer, pedi ao pai para ir aprender a pescar com o tio Mbala. O Luisão deixou. No dia seguinte fui para casa da tia Londa. Tinha saudades do mar.
Tudo o que sei da arte do pescador devo-o ao tio Mbala. Fiquei a saber o que era “pisar na água”, a andar de dia e de noite no mar, a saber por onde ia e para onde ia, a sentir cá por dentro quando devia parar. O mar era a minha alegria. O tio saía da Xicala, apontava para um ponto saliente da costa de Luanda, o alto de um morro ou um prédio, fazia o reconhecimento dos alinhamentos, este aqui, aquele ali, e sabia que tinha que se afastar da costa. Afastava-se e metia a sonda, um fio com uma peça côncava de chumbo preenchida com um pedaço de sabão. Levantava a sonda e via: se o sabão estivesse como antes de o ter mergulhado, intacto, era fundo de areia ou de lama, se viesse com sinais de choque era fundo de pedra, “casa de peixe”. Calculava a posição pelas mensagens dadas por todos esses sinais da terra e do mar... sim, talvez fosse ali o bom sítio, e lançava a linha.
Às vezes metíamos a sul a pescar sem mapa, sem nada, e o tio Mbala dizia que não havia maka, o mapa estava na cabeça e quem ajudava era o coração. Explicou-me o que era a onda e o nevoeiro, «Atenção ao nevoeiro! Se tens nevoeiro lanças a âncora e fundeias. Passa o nevoeiro, a primeira coisa que tens que ver é a onda, de onde vem, mudou, não mudou...E a corrente, muito perigoso, é como a onda do alto mar que chega pela banda, pensas que estás a fazer rota em frente mas não, avanças como um caranguejo, de lado».
Com ele também fiquei a saber que em tempo de cacimbo pesca-se de preferência de dia, porque há muito ditwiki (cachucho), peixe que “come de dia”, e na estação das chuvas é o contrário, é melhor pescar depois do sol posto, porque o peixe que mais abunda é o xibata (peixe-espada), que “come de noite”. Mas o que mais me impressionou foi quando ele me disse que só pescador valente vai pescar para o alto mar, passa a barra se está na Corimba, mete a oeste se sai da ilha. É no alto que se apanham as espécies de peixe mais rentáveis e as que mais depressa se vendem, o espada, o cachucho, o pungo, a garoupa e o mero, além do cherne, da corvina e do anequim, que também são peixes do alto; na baía só tem pargo, roncador e murianga; tanto aqui como acolá pesca-se a ferreira, o peixe-pirão, o peixe-tabaco, o peixe-nariz, o peixe-porco... Mas só no mar é que se vê o que vale um pescador.«E quando estiveres no alto, se por acaso te aparecer um desses mostrengos do mar, anequim, tubarão, ou peixe-martelo, então é que se fica a saber se tens unhas para bater com a ‘‘bangala’’ no peixarrão, pega lá, meu cabrão!!, e lhe fazer a cara num bolo», dizia o tio Mbala.
De permeio com estas e outras dificuldades os ventos, as marés e as correntes, isto sem falar da lua, que ao subir no céu pode mudar a direcção do vento a dar-lhe força. Havia o perigo das kalembas, frequentes de Agosto a Outubro. Todos os dias o tio Mbala ensinava, explicava, e era sempre ele a dar o exemplo, num constante esforço para fazer de mim mais do que um bom pescador, mais do que um bom marinheiro, um autêntico “akwa zanga”.
Mas ainda tinha muito que aprender, porque as lições do mar nunca se esgotam. Como não têm conta as vezes em que o esforço consentido, a angústia, o medo, numa só palavra o sofrimento, ultrapassam os limites da valentia. Sendo esta a realidade, que não me venham cá com cantigas, com imagens poéticas de pescadores comparados a pastores e o mar um paraíso habitado por sereias. Fico fora de mim quando me aparece no horizonte um desses gabarolas, que vêm para aí dizer que trabalham uma ou duas vezes por mês e pescam numa folgaria inacreditável peixe suficiente para poderem viver até ao mês seguinte. É mentira!! E se não for mentira, juro pelo sangue de Cristo, só pode ser feitiço!
A folga era ao sábado e ao domingo, e eu passava-a sempre em casa da minha mãe. Depois da morte da tia Chiquinha o meu pai pensou em levá-la para a casa do Bairro dos Imbondeiros, mas ela recusou, «Nem pensar, Luís! Tira bem isso da cabeça, nem pensar». Perante a imediata e firme recusa o meu pai ficou-se por um silêncio que consente, e no seu foro íntimo até devia ter ficado aliviado, pois se eu com a minha idade via nesse lance confusões atrás de confusões, imaginava que na cabeça dos adultos ainda devia ser pior. Assim, o Luisão continuou a viver na Samba, agora sem mulher e sem o último filho que lhe restava, que tinha ido para as FAPLA, mas com uma governanta jovem, a Mira. Com tanta dor por que tinha passado os descendentes do inflexível Papá Dya Kota aceitavam o seu procedimento.
Imagem: cavaleirosdonorte.blogspot.com
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