Por razões que não identificava, senti que “alguém” queria impedir que me fossem revelados os segredos maiores do kakulu. Um dia, que fomos comer uns cacussos ao Cacuaco - estava a equipa completa - a Lena, a Lia, o kota Kiala e eu -, atrasámo-nos depois do almoço a falar da necessidade de preservar as nossas raízes e defender as tradições legadas pelos nossos antepassados. A um dado momento o kota disse uma frase que me marcou para sempre, nunca mais a esqueci, «As tradições antigas, a nossa religião, a uanga e os seus rituais, são absolutamente indispensáveis à afirmação da nossa identidade africana, banto e negra, mas podem nos trazer alguns inconvenientes graves, podem mesmo ser perigosas». A frase ficou assim no ar por cima do silêncio que se instalou, até ao momento em que eu lhe perguntei quais eram esses inconvenientes e perigos. Ao nosso lado estavam a Lena e a Lia a falar dos segredos do pastel de nata e da massa folhada, distraídas da conversa, e o kota, depois de lhes ter lançado uma mirada rápida e constatar a distracção que as afastavam do nosso diálogo, quase me segredou que havia ainda nos nossos dias muloji, feiticeiros, que organizavam sabbats secretos em terrenos reservados. Fiquei na mesma, porque não sabia o que significava a palavra sabbat, nem percebia o que queria dizer “terrenos reservados”. E o kota, que bem sabia que eu não sabia, explicou-me que o sabbat é uma cerimónia que tem lugar sempre num sábado de lua cheia em presença de “feiticeiros” ou “feiticeiras”, num sítio bem determinado, à meia-noite, e na qual se apelam forças ocultas: Pãs, alguns espíritos bons, chamados para acudir às doenças ou às dificuldades da vida, mas também Luciferes e outros príncipes das trevas, espíritos, génios e divindades maléficas, no fito de justificar actos que o menos que se possa dizer deles é que não são dignos de seres humanos. A verdade é que em alguns desses sabbats pratica-se ainda hoje a antropofagia. E, enquanto as “nossas mulheres” continuavam a falar de culinária, o kota explicou, «Trata-se de tradições antiquíssimas que ainda hoje se realizam em muitos bosques e florestas do mundo inteiro. É verdade que a África é actualmente o continente em que mais se praticam rituais desse tipo, digamos, campestre. E como não, se o colapso que se deu na nossa história e a maneira como ele foi vivido nos diferencia do resto do mundo? Esse salto repentino para o que os europeus chamam o Renascimento, da azagaia para o arcabuz e o canhão, faz com que nós estejamos fatalmente mais próximos dos rituais animistas celebrados à vista de toda a gente na pré-história da humanidade. Assim, o que nessa matéria passou a ser kijila, proibido em Angola há cem ou duzentos anos, em certas províncias nem isso, foi proibido muito antes noutras latitudes, por exemplo, na Europa foi há coisa de mil anos. Mas nenhum interdito impediu que vestígios desses rituais tenham resistido ao passar dos séculos e existam ainda hoje. Um amigo meu, um português que foi preso pela PIDE e depois ficou a viver em Luanda, contou-me que ainda aqui há uns anos, nas serranias isoladas de Trás-os-Montes e da Beira realizavam-se cerimónias rituais cujas origens datam do tempo dos Iberos e dos Godos, quer dizer, coisa de dois ou três mil anos atrás. E factos desses foram relatados por um dos mais ilustres escritores de língua portuguesa de sempre, Aquilino Ribeiro. Por exemplo, contou ele, perto da casa dos seus pais, em Ferrães, uma aldeia nos contrafortes da Serra da Estrela, realizavam-se sabbats numa clareira do bosque que começava no fundo do quintal. Ele próprio foi curado de uma hérnia nessa clareira.
“Tiraram-no da cama já noite feita, saíram de casa e levaram-no ao colo até ao bosque. Com ele iam pai, mãe, avó, os empregados da casa e gente da aldeia. Caminharam até chegar à clareira e estacaram. O homem do ofício, o feiticeiro, curandeiro, fosse lá o que fosse, cortou com uma faca o fuste dum carvalhiço ainda tenro ao meio, no sentido longitudinal, fez força com as mãos para separar as duas partes assim obtidas e continuou a fazer pressão até formar uma elipse. À meia-noite, nem minuto a mais, nem minuto a menos, começou a cerimónia. O rapaz, o meu amigo, que nessa altura devia ter uns dez ou onze anos, foi erguido à força de braços, passaram-no para os do cura pagão ou lá o que era, depois passaram-no para os braços do pai e da mãe, fizeram-no balançar de um lado para o outro enquanto o cura a andar em seu redor fazia as suas preces, deitaram-lhe para cima do corpo um líquido cuja composição era secreta, e em seguida fizeram-no passar pela fenda elíptica do carvalhiço fendido. Receberam-no do outro lado, estenderam-no no chão, por cima dum pano ali posto para o efeito, e cobriram-no. A terminar o ritual, o “feiticeiro” português reajustou as duas partes do fuste que tinha sido fendido, botou barro à volta e ligou o tudo com vimes e tiras de pano tosco. E disse: “Se o carvalhiço soldar, se não morrer e vingar, o menino também soldará”. Era o que toda a gente esperava, para que a hérnia também solde, senão...Mas a árvorezinha mártir vingou, e ele ficou curado».
A Lena e a Lia estavam agora de orelha espetada a ouvir, e o kota Kiala esforçou-se para que a conclusão fosse educativa, «De qualquer forma, tal como as portuguesas, ou outras quaisquer, as nossas raízes, por mais fortes que sejam estão condenadas a sair dos usos e costumes, é fatal. Não é contra tal oráculo que devemos lutar. Devemos sim, ao invés da maioria dos países modernos, respeitar os mistérios que elas albergam, preservar do esquecimento a seiva dignificante que delas nos vem, e continuar a praticá-las nos terreiros que são delas, sem prosápia nem vergonha».
Neste preciso momento, o kota calou-se, olhou para mim com olhos muito abertos e perguntou-me, «Rui, diz-me por favor, porque é que alguns de nós, angolanos, sobretudo muitos dos que fazem parte das elites mais requintadas do país, têm vergonha das nossas tradições? Porque é que não veio ainda ninguém clamar alto e forte, para o mundo inteiro, que as nossas tradicionais relações com o “Sagrado” são tão dignas de respeito como as que deram origem às “grandes religiões”, como o judaísmo o cristianismo, passando por todas, todas as outras, desde os muçulmanos aos hindus, budistas e zens, animistas de toda as espécie?...Olha, e que fique bem claro na tua cabeça, Rui, todas essas religiões a um dado momento da sua história recorreram a sacrifícios rituais, muitas das vezes envolvendo vidas humanas. Todas, Rui, todas! Temos o privilégio de possuir as mais antigas raízes da humanidade e sermos um dos povos que mais próximo estão delas. Guardemo-las. E mostremos ao mundo, que tem a memória curta, que é de tradições semelhantes às nossas que todos os povos provêm. E um dia, daqui a dez, cem, mil, ou mais anos vá-se lá saber, se não houver mais lugar para tradições algures, nós não, devemos continuar a guardar as nossas na memória colectiva e transmiti-las às gerações vindouras. De qualquer maneira uma coisa é certa, se esse for o caso, os vestígios das nossas raízes ainda serão raízes. E acredito que nunca morrerão».
Chegou o dia marcado para o kakulu. Partimos de madrugada para a Barra do Kwanza, a Lia o Luisão e eu, no carro do pai Faria, que se tinha proposto a dar-nos um empurrão não sem prevenir, «Levar, levo, mas depois vocês desenrascam-se para o regresso». O pai Faria tinha casa na Avenida e ia à missa, mas respeitava as tradições e de vez em quando até lhe acontecia ir ao kimbanda. Isso fica aqui entre nós. Era um tipo “fixe”, como se costuma dizer. Pelo caminho, o meu pai falou muito com a Lia para compensar a frustração que a entristecia e contou-lhe à sua maneira como era o kakulu antes da chegada dos portugueses. O pai Faria sorria sem parar, não sei se de satisfação se a zombar, enquanto eu, de caderno na mão -«Estejas onde estiveres o que te pareça interessante anota», tinha dito o kota Kiala -, anotava tudo o que o Luisão contava sem largar a Lia dos olhos, que, queda e muda, ouvia. Ouvia e não se fartava de fazer perguntas, porque na descrição que o meu pai fez não só havia muitos termos em língua kimbundu, assim como a cerimónia em si não é simples, estende-se por muitas horas, dias pode-se dizer, e o mais importante, as preces, nem delas se podia falar, pois não se sabia o que o Kilamba-Kiaxi iria dizer. Desse modo a sua descrição, por mais fina que fosse, apresentar-se-nos-ia de qualquer modo, como de facto se nos apresentou por sua via, uma linda carcassa esvaziada do seu misterioso recheio. Mesmo assim, mais tarde fiz o resumo das passagens mais interessantes. (Nota 3)
Quando o meu pai terminou, a Lia fez uma pergunta, «E agora também é assim?». O Luisão olhou para ela e só disse, «Vamos ver». Ele viu, nós não. Por outro lado, o kakulu do Kwanza não se ficou pela cerimónia de apelo, preces e pedidos de perdão às yanda. Já depois de tudo ter acabado, estávamos nós em nossa casa sentadinhos à mesa, o meu pai explicou como decorreu a bênção de todas as praias que dão peixe (Nota 4), que teve lugar no Mussulo, no dia seguinte ao ritual do Kwanza, e terminou numa das praias da Samba. Estava consumado o kakulu e esperava-se que houvesse mais peixe nas redes nos dias vindouros. E houve. Quanto ao resto, o melhor talvez seja deixar ao culto das yanda o seu mistério. Aos iniciados o que é dos iniciados, aos leigos a liberdade de pensar o que lhes apetecer.
Acabou a festa, maneira de dizer que por obra do acaso se tinham sucedido dois acontecimentos que marcariam para sempre a minha vida futura, o casamento e o kakulu. Este último marcou-me porque não pude participar nele! Pensando bem, não teria sido pelo facto de ser proprietário de um motor de popa que se levantaram reticências em redor da minha participação ao kakulu? Talvez não, talvez sim. Em todo o caso sentia no meu foro íntimo o elo que me unia à raiz antiga, em despeito do progresso invadir tudo e todos, modificando comportamentos, impondo ritmos que conduzem ao stress e pela mesma ocasião nos levam a olvidar que tudo o que somos, no essencial de nós próprios, no bom e no mau, o devemos ao passado.
De facto, tudo muda. No Bairro dos Imbondeiros, por exemplo, já não era como no tempo do Papá dya Kota. As garinas e os muadiés “natos” casavam-se mais com gente “de fora”, empregavam-se outros meios de pesca, tinhas o telefone, o piloto automático, o sonar e a sonda eléctrica, as casas modernas, a maneira de vestir, de falar, de namorar...toda a conduta tinha mudado.
Imagem: cacussos. lusofolia.blogspot.com
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