Chegou o dia da Dipanda, glorioso dia, momento histórico a celebrar com lápide de ouro. Ficou-me na memória a contagiosa alegria de Luanda e de toda Angola. Depois... depois só sei que sofremos, mais nada, tudo o resto esqueci. Era tão pequeno... O que me valia, como a todos os angolanos, era a Liberdade conquistada, a recompensar todos os sacrifícios.
Ouvia então muitas vezes o meu pai falar de fábricas, de barcos e de redes que tinham passado a ser propriedade do povo de Angola. E de facto, nos primeiros tempos da Dipanda foram fundadas cooperativas e até aconteceu o produto do trabalho, o dinheiro, por uma vez na História de Angola, ser distribuído de maneira justa e dignificante entre todos os agentes de produção. Mas, talvez porque haja razões para o afirmar, vem-me o Diabo à cabeça dizer que Deus, já de si avarento de céu limpo, requeira tanto serviço do astro rei que este não chega para dar calor aos homens, o que explica que também o sol da Dipanda tenha sido de pouca dura, e o seu calor por demais efémero para deixar florir tão belos frutos do trabalho.
Rapidamente tudo se foi por água abaixo. Não havia fundos de maneio, alguns deles foram desviados, não havia peças, não havia técnicos, o pessoal do Sul que trabalhava com os portugueses regressou às suas terras de origem, ou procurou emprego nas novas empresas estatais; os barcos foram-se imobilizando, muitos deles afundaram-se, alguns, poucos, foram levados para os estaleiros, aguardando uma reparação impossível, a menos que com tanta espera as galinha viessem a ter dentes em forma de peças de substituição. No final de contas o Governo recuperou apenas alguns barcos. E nessa hecatombe salvaram-se, de par com os navios do Estado, uma ou outra empresa privada mais previdente... e as redes.
A Dipanda também veio modificar a nossa maneira de trabalhar. Antes dela vendíamos a maior parte do peixe a comerciantes brancos, às pescarias industriais, nos mercados oficiais e às peixeiras que percorriam a cidade com a banheira à cabeça a vender peixe a domicílio. Depois, com as ameaças e as pressões contínuas da comunidade internacional, ou seja, a força do capital dos países ricos concretizada na nossa guerra civil, estrangularam-se-nos as fronteiras; e como ninguém nos tinha ensinado a gerir bens próprios, nem estávamos habituados a tão espinhosa tarefa, estragaram-se as fábricas, afundaram-se os barcos, começou a faltar peixe; e apareceu uma espécie de predador que agarrou, devorou e digeriu quase todo o negócio: o mercado negro. Desapareceram as peixeiras a domicílio. Trabalho e clientes era o que não faltava; as redes, tanto as grandes como as pequenas, e os pescadores como o meu pai, não tinham mãos a medir. Mas havia falta de muita coisa...sobretudo de dinheiro.
Passaram os anos, e já lá iam sete depois da Dipanda, a bolinar, a ir para o mar e a ter folga aos fins-de-semana. E como há quase vinte anos atrás, lá vinha o meu pai, agora depois da morte da tia Chiquinha aos sábados e aos domingos, comer as suas funjadas. Trazia duas garrafas de vinho se viesse sozinho, quatro quando se fazia acompanhar pelo tio Augusto. Sentavam-se à mesa, debaixo do imbondeiro, e falavam muito. Coisas da pesca, do Carnaval e, acima de tudo de futebol. Broncas sem-fim no Benfica e no nosso clube, o Marítimo. Como de costume a minha mãe não abria a boca, e a vó Júlia, já a cair de velha, não se cansava de falar dos reis do Kongo. No que me diz respeito ouvia e calava o bico para evitar os já clássicos «Cala a boca!» do Luisão.
Chegou, num desses sábados, o dia em que o meu pai, depois de se ter queixado de tudo e de mais alguma coisa, que no Rapsoka havia falta de peixe, que as senhoras das salgas não recebiam pescado que chegasse para as encomendas, que o mar não ajudava, no final de contas, ele e o tio Augusto estavam bem, muito obrigado. Tinham acabado de ser admitidos numa sociedade e agora eram sócios da rede da Câmara que, dizia-se, apanhava no mar tudo o que houvesse para pescar, exactamente como a Câmara Municipal de Luanda apanhava todo o lixo que houvesse pelas ruas. «Só garganta», pensei eu. A rematar salientou que ser admitido como sócio duma dessas importantíssimas sociedades de pesca não era nada fácil, entre cem que requeriam só eram admitidos um ou dois. Ele e o Augusto tinham sido admitidos! Quanto aos lucros a tirar dessa associação - uma loucura! - só disse, «Esperem, vocês vão ver». Sobreveio um silêncio no zoeiro dos voos picados das moscas, furiosas com a ameaça insecticida do tio Augusto. Este, felizmente para elas e para nós, até aí pouco tinha falado. Só tinha metido o bico, possantemente alterado pelas quase duas garrafas de vinho que já lá iam no papo, a propósito da ousadíssima comparação que ele considerava poética entre o lixo e os peixes. Agora preparava-se para falar, mas a minha mãe não deixou. De índole suspicaz intrometeu-se, levantou dúvidas a respeito dos esperados lucros e contou a estória que se tinha passado com um dos seus parentes afastados, o Beto, da ilha do Cabo. Esse Beto tinha redes que vinham dos portugueses e foi admitido na sociedade de que era sócio o marido de uma ainda mais afastada prima. Um dia cedeu as redes, “encostou”, como se costuma dizer, participou na faina como auxiliar, e quando chegou o momento de distribuir o kumbu recebeu dez reis de mel coado pela sua parte, pouco mais do que receberia qualquer auxiliar. «Tás a ver o que te vai acontecer?», concluiu. Os dois homens pouco faltou para que se levantassem, indignados!, que não senhora!, o Augusto na Câmara não arriscava nada, era da família, e o Luisão, esse, tinha-se feito admitir na família do Papá Dya Kota, sim senhora, por se desconfiar de que o avô do pai da sua mãe tinha sido primo-como-irmão dum antepassado do Kota. E de concluir, «Eu sou “akwa zanga” e ninguém me passa a perna, isso digo-to eu!» Com estas fortes palavras levantou-se e saiu com o Augusto, rumo à tasca do Guedes, onde nem se podia dizer que iam apanhar uma bruta bebedeira, pois isso já era um facto consumado .
Assim ia correndo a vida, numa luta constante para a adoçar.
SEGUNDA PARTE. A tradição e o progresso
O tempo que passa não só sara as nossas feridas como nos dá sempre a possibilidade de sanar ou aliviar o mal que fizemos aos outros, na condição de termos a coragem de reconhecer que estávamos errados. Quando passei a fasquia do quarto de século de vida e me sucedia pensar no meu pai, que me ignorou, me espezinhou moralmente, talvez sem ter consciência disso, e agiu de maneira a levar-me por um caminho que faria de mim o contrário do que ele gostaria que eu fosse, não o via com os olhos acerbos do adolescente que o desvirtuava. Passei a vê-lo, como dizer, mais de longe, com ponderação, e descobri-lhe um amor recalcado por uma timidez agressiva, que desabrochou e se manifestou no orgulho que ele manifestava por ter um filho bom pescador. Sou pescador, sim senhor, e esse “rame-rame”, vida no mar, sono pesado e curto e muito esforço, valeu-me para ser um homem forte, mas incapaz de imaginar a vida sem ir para o mar. À parte essa faceta ligada ao meu trabalho, um único assunto me interessava, as estórias que a minha mãe contava sobre o reino do Kongo. Por certo posso avançar que não passou dia sem pontos de interrogação a meterem-se-me na cabeça, como se fossem cornos de diabretes impertinentes, depois das discussões entre ela e o meu pai, quando nos encontrávamos a sós em casa. Discussões que no fundo apenas eram conversas muito animadas, como que uma troca de picardias entre dois adeptos de equipas de futebol rivais, nunca azedas. Mas mesmo que o mais das vezes o animado duelo verbal se terminasse em risota, por trás dele apareciam as tais interrogações que me afligiam. Não que me parecesse importante escolher entre ser bakongo ou ambundo, mas porque o desejo de conhecer a verdadeira história da ilha de Luanda, única pátria do meu coração de par com Angola, cresceu tanto que ocorria dar-me à ousadia de abordar o assunto com algumas pessoas de maior confiança. Tanto bati na mesma tecla que acabei por encontrar uma moça bem-posta que me apresentou a um parente seu, conhecedor das histórias dos povos angolanos, um kota que vivia na ilha, perto da Salga. Mais tarde vim a saber que o senhor era escritor e, segundo parece, com assento no Governo
Era filha de uma amiga da tia Londa e chamava-se Lia. Quando a vi pela primeira vez confesso que fiquei um pouco tonto, de olhos compridos em cima dela. Tinha uma cara de menina e uns olhos muito grandes e ternos, tão brilhantes que até cegos os veriam, e só pecavam, se é que pecavam, por não poderem esconder a sensualidade do seu corpo enxuto e roliço de felino. Fiquei tonto, é verdade, e mais tonto fiquei quando ela me apresentou ao kota que ela dizia ser do Governo, viúvo de uma prima por aliança da sua mãe. Mal o senhor soube o que me preocupava mostrou a alegria que ressentia, talvez por lhe ser dada uma oportunidade de acudir ao povo. Antes, porém, quis saber quem eu era e por que razão manifestava tanto interesse pela História de Angola, e eu disse-lhe que era por causa das conversas da minha mãe, bakongo, com o meu pai, mundongo, e cada um deles tinha versões diferentes da história da ilha de Luanda. Riu-se muito e deu-me umas palmadas carinhosas nas costas. Alguns dias mais tarde convidou-me a ir até sua casa, aí estaríamos à vontade para falar de tão vasto assunto. Um dia fui, com a Lia. Chegámos e instalámo-nos à mesa da sala de jantar. O kota confessou que estava admirado por vir de um pescador tão grande interesse pela História; estava convencido de que, à parte o nome dos peixes e todas essas coisas do mar, pouco ou nada sabiam, nem lhes interessava saber, estavam virados para o mar e só o mar contava nas suas vidas. Também me ri, não era mentira nenhuma o que ele dizia. Mentira foi a explicação que eu dei, que na nossa família, a do Papá dya Kota, ninguém faltava à escola, e que a minha mãe tinha feito o 5º ano do Liceu. «Agora compreendo», disse ele. E perguntou, «O que é que tu sabes, por exemplo, sobre a História do Kongo?», «Quase nada, pai».
Imagem: agualisa5.blogs.sapo.pt
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